sexta-feira, agosto 4

Por que um lixeiro na rua lendo um livro me emocionou

Às vezes, a insignificância de ontem se torna a maravilha de hoje. Se alguém tivesse me dito há apenas 20 anos que um dia eu me emocionaria ao ver alguém lendo um livro, isso teria me feito sorrir. Isso é o que, no entanto, aconteceu comigo esta manhã.

Na pequena e sorridente cidade de Saquarema onde moro, no Bairro dos Lagos, no Estado do Rio, onde as pessoas ainda te cumprimentam na rua sem te conhecer, costumo sair para passear bem cedo, antes do nascer do sol. Somos quase sempre os mesmos. Quem mais me cumprimenta costuma ser o pescador, que se vê alegremente carregando suas roupas em uma velha bicicleta ou caminhando a pé em direção ao mar. Esta manhã, porém, pela primeira vez, encontrei um homem idoso que andava de bicicleta carregado com sacolas plásticas, provavelmente velhas ferramentas de ferro recolhidas do lixo para revender como sucata.

Na volta, passando pela praia, vi sua bicicleta estacionada e ele sentado em frente ao Oceano Atlântico lendo um livro. Não era um folheto. Era um livro certamente recolhido no lixo. Hesitei em me aproximar para ver, por curiosidade, o que ele lia, até porque aqui no Brasil já é um milagre um pobre saber ler, quanto mais um livro.

Quando me sentei diante do computador para escrever minha coluna, não consegui me desvencilhar da figura do lixeiro, não com um celular velho na mão, mas com um livro. E é que dias atrás eu havia lido a triste notícia do fechamento, em São Paulo, de uma das maiores livrarias da América Latina, por onde passaram os escritores mais famosos para apresentar seus livros.

Sim, eu sei, o importante é ler, seja na pedra, no papel, no meio digital, mas o que é triste é que, no fundo, o desaparecimento do livro conduz a um déficit de leitura. Quando vemos todos os dias a cena de casais em um restaurante, ou caminhando pela rua, cada um absorto em seu celular, temos a certeza de que não estão lendo um livro.


Alguém chegou a escrever, talvez com certo exagero, que o motivo é a sepultura da literatura e principalmente da conversa. E a desculpa é que hoje não sobra tempo para ler um livro. O celular absorve tudo. Muitas vezes especula-se sobre o futuro de uma humanidade que já não lê, sem literatura, sem imaginação, filha e escrava apenas da pressa e da imagem, sem tempo sequer para pensar, por mais que a psicologia insista que a melhor terapia contra o estresse e a angústia é a meditação, o silêncio e a amizade, que podem existir no silêncio.

E é curioso que precisamente num momento crucial para a humanidade em que a solidão, a ansiedade pelo futuro e até o medo de ter filhos estão a aumentar, impõe-se ao mesmo tempo um regresso à sabedoria dos antigos clássicos, os gregos, latinos ou egípcios.

Vivemos um momento de inquietude e de busca desesperada pela velocidade e pelo novo, ao mesmo tempo em que persiste em nossas celas a saudade do que estamos perdendo a ponto de, como aconteceu comigo hoje, me surpreender e até me emocionar ao ver um colecionador de ferros velhos fazendo uma pausa para sentar e ler um livro que alguém jogou fora.

Eu não sou um pessimista. No mínimo, me acusam de ser muito otimista na minha idade, porque acredito que no final das contas não é verdade que os tempos passados foram melhores. É por isso que tentamos esquecê-los. Você não vive sem ilusões, sem esperança, sem amigos de verdade, sem acreditar que o amor ainda é possível. Sim, amor por tudo, a começar pela natureza que havíamos esquecido, desprezado e arruinado e hoje ela se vinga de nós e começa a nos assustar.

Estamos tão acostumados ao pessimismo, ao medo, às vezes tão desiludidos com a própria vida, mesmo jovens, que passamos a internalizar que o amor é impossível. Que tudo é desgosto, hipocrisia e interesse. E os índices de violência e até de suicídios estão crescendo no mundo.

Há dias, folheando o meu livro de conversas com o José Saramago, da editora Planeta, lembrei-me de uma anedota que então me fez sorrir e que às vezes, porém, me volta à cabeça, como nesta manhã, como reflexão filosófica .

Depois de muita discussão com o Prêmio Nobel de Literatura Portuguesa e sua esposa Pilar sobre o título que daríamos à semana de conversas que acabara de ter com o escritor, decidimos chamá-la: Amor Possível. Não sei se por lapso freudiano dado o conhecido pessimismo do autor, ou porque no fundo da alma humana continua a ideia de que o amor, pelo menos aquele que gostaríamos de viver, é impossível, a verdade é que nas primeiras resenhas que saíram do livro o título parecia errado: “O amor impossível”.

E o mais curioso é que neste mesmo jornal, depois de nos divertirmos comentando a anedota, quando saiu um artigo explicando que o verdadeiro título era “El amor posible”, também a manchete do artigo, que depois foi corrigida, tropeçou na mesma pedra intitulando-se “O amor impossível.”

Há muitas coisas em nossas vidas que são ou parecem impossíveis para nós e que nos inclinamos mais para o pessimismo do que para o otimismo. O próprio Saramago me disse que se constrói mais com o “não” do que com o “sim”. É um conceito filosófico que realmente revela nossa tentação ao pessimismo.

Talvez seja por isso que hoje carrego comigo a imagem forte e terna ao mesmo tempo, que me parecia impossível, do lixeiro, sentado no chão, sem pressa e sem celular, lendo um livro. Nada mais? Sim. Já não é pouca coisa saber que o impossível se recusa a morrer.

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