quarta-feira, agosto 9

Droenha

Amanhecendo o sol dava em desverde de rochedos e pedregulho, fazia soledade, de repente, silêncio. Ventava, porém. Era ali lugar para pasmos; estava-se também perto das nuvens. Ele é que não podia retroceder. Voavam gaviões. Jenzirico nunca imaginara ter de matar um homem e vir se esconder na Serra.

De noite Izidro ao topo escalvado o guiara, dizendo que lá em seguro viviam certos fugidos criminosos; surpreendia-o agora ser um deles. Muito fino respirava. Tinha de resguardar mochila e saco, para descanso, dormir mesmo pudesse; numa reentrância, quase gruta, se agasalhara do ar. Diante avistava penhasqueira, a pique, prateleiras de pedra. Só perigos o esperassem, repelia pensamentos, ninguém está a cobro da doideira de si e dos outros. Ali era um alpendre.

Das fendas do paredão, a intervalos, apareciam pequenos entes, à espreita, os mocós. Jenzirico preservava chapéu na cabeça. Dispunha apenas de espingarda e faca, o revólver botara fora, após o susto do ato. Izidro voltaria, certo, com mais coisas, conselhos, comida, pelo tempo que lhe cabia parar aqui. Mesmo a Serra estava nos arrabaldes do mundo. Seu ânimo se sombreou. Zèvasco, tranca-ruas, ele tivera de a tiro acabar, por própria justa defesa, é quando a gente se estraga. Viu que temia menos a lei que caso de desforra dos parentes; aprumou-se e andou. Os mocós assoviavam sumindo-se nas luras.

Precisava de conhecer o situado: o chão, em que permeio os burgaus rareava grama, o facheiro, cardos; tufos de barbacena e arnica cerrando o adro pedrento. De lá devia um pouco descer. Sobrestado, tardador, quis escolher qual rumo, mão em arma. Jenzirico... — ele súbito se advertiu, vez primeira atentava em seu nome, vasqueiro, demais despropositado. Se benzeu, sacou de ombros, tudo sucedia por modo de mentira.

Depassou volumes de rochas erguidas e lajes em empilho, pisava alecrins, o sassafrás-serrano, abeirava despenhadeiros. Ia topar de perto os outros definidos foragidos, se dizia que plantavam mandiocal, milhos, deparando com esses não havia de estranhar o acaso. De pau em-pé, só se notando ainda candeias, bolsas-de-pastor, alguma que uma tipuana. Pássaros cantavam feito sabiás, vai ver sabiás mesmos. Em mente de olhos ele aprendia o caminho, ali era já chão mole, catou para provar mangabas caidiças. Entanto estranhava o que avistava — não o feitio dos espaços, mas o jeito dele mesmo enxergar — afiado desenrolado. Até assim ramas e refolhagem verdeando com luz de astúcias. Agora, altas árvores.

Sustou-se por rumor, mas só de espavento: as brujajaras. Teve de querer rir simples. Desaprazível a Serra não era, piava o lindo-azul, jeojeou o bico-miúdo; embora convindo voltar: caçadores e seus cachorros frequentavam os campestres das vertentes. Entortado espiava. De temer a gente tinha de fazer costume.
Inda então andou mais. Deu com miriquilho de vala, ajoelhou-se, bebia água e sol. Mas — no relancear — viu! Desregulado enxergara, a sombra, assomo de espectro? Por trás de buranhém e banana-brava, um homem, nu, em pelo.

Ninguém, nem. O ruído nenhum, rastro não se dando de achar. Correu, de través levantada a espingarda, rolou quase por pirambeira, chegou à meia-gruta frente ao mocozal. Caindo se sentou, com restos de tremer, sentia no oco da boca o tefe do coração. Só apalpou a cabeça: o chapéu, de toda aba, ele perdera.
Jenzirico mais nem pôde que assar em brasas carne-seca; faltava café, tomou cachaça.

Virava falseio, divago, a visão de antes: senão as brujajaras, as aves pintadas e listradas de amarelo ou branco, fracas no esvoaçar, rabos trescompridos. Apurado caçou e não achou o chapéu, pouca sorte. Devia já arrancar feixes de capim, para cama, enrolado em cobertor, noite por noite. Precavia-se ficando no limpo do pedregal, mesmo lá divisara cobra, por essas é que revinham a acauã e o enorme gavião-roxo: um perto dele pousou em penha, escuro, escancaradas as asas.

Dormitou. Desagrado eram os guinchos dos mocós, por igual agadanhados, no bico das águias aves. Tudo se despercebia. O mocó, bicho esquisito, que sai a meio de entre pedras: — Có, có, có... — sem defesa. Tonteava a velocidade das nuvens para oeste ou este. De fatos mal acontecidos, de jeito nenhum queria lembrar, com farinha também comeu dentada de rapadura. Trepou em árvore, deixando em baixo o paletó; desceu — ele ali mais não estava.

Houvesse aí reinadios macacos, esses qualquer trem surripiam! De tantas tramoias Izidro nem lhe dera esboço, a Serra avultava, esconderija, negando firmeza. As estrelas mesmas se aproximavam. De dia o calor, na regência do sol, as fragas amareladas alumiavam, montanhitância, só em madrugadas e tardes se sofria o enfrio e vento. Os homiziados outros prosperavam quilombo, em confim de macegal e matos, velhacoutos; tivesse um o ousio de aqueles ir procurar, por companhia? A gente tem de temer a gente. Jenzirico sempre receava acender o fogo, alguém se instruísse do lumaréu. Mas rebém as lavaredas de canela-de-ema e candeia o aquentavam, permanecido no esconso. Despertou — ouvindo espirro humano.

Salteado avançou derredor os vultos pedrouços, seguia o que não via, por trás de qualquer instante, inimigo o observava. O chão nenhuma calcadura marcava, aquele nem era chão, pedroenga, ondeonde os chatos cactos, dependuradas as vagens secas da tipuã, o jacarandá-de-espinho balançando douradas grandes flores. De novo o mocoal, pedreira cinzenta. — Cooó! cóoo... — escutando. Teria disposição de repetir morte? Matar era a burra ação, tão repentina e incerta, que fixe quase não se crê nem se vê, semelha confuso ato de espetáculo, procedido longe, por postiças mãos. Bateu-lhe o arrepio, doentemente, a sede, o sol; acabara a cachaça. Então, ele mesmo era quem tinha espirrado?

Veio, penoso se despiu, entrado na lagoazinha, água-de-grota. Em febre se esqueceu, desconheceu as horas, até outra calafriagem. Concebia um pressentir. Deu fé: roupa, espingarda, alpercatas — tudo desaparecido.

Jenzirico molhado se arrastou, doía de amedrontado, até a suas pedras moradias. Nu chorando ele fechava os olhos, com vergonha da solidão. Medo. Esperou o de vir, pavor, era como os transes. Ele remexia no podre dos pensamentos.

Tão então. — Matei, sim... — gritou, padecidamente, confessava: ter atirado no perverso Zèvasco, que na rua escura o agredira, sem eis nem pois; e fugido, imediato, mais de nada se certificando... Escutasse-o o ermo, ninguém? Clamou, assim mesmo alto e claro falou, repetia, o quanto de si mesmo o livrasse, provia algum perdão.

Porém, para repuxo e sobressalto. Viu, enfim, no sacudimento: aquele, o qual! Semelhante homem — trajado sabido, enchapelado — de suspapés, olhava-o, bugiava? O indivíduo — solerte vivo de curiosidades. Ia investir. Mas inesperado se afastou, com passos, expedido, campou no mundo. Virou o já acontecido.

Tornado a si, após, Jenzirico tiritou, variava de querer qualquer calhau pontudo ou um pau: pelos mocós, que à noitinha descem das frinchas pedredas para caminhar, os coelhos-ratos. Vai, o frio de grimpa fazia o tamanho do medo. Ventava por um canudo.

Até que, a retorno do tempo, chamavam-lhe o nome. Izidro e Pedroandré, eram os dois, mesmo montando mulas: — Que há? Introduzido nos capins o achavam. E diziam o desassombro: Zèvasco não morrera, na ocasião. — Agora, sim... — morto estava. Sujeito sandeu aparecera, direto para o exterminar, a toda a lei. Semelhante antigo homem, um Jinjibirro, em engraçadas encurtadas roupas, chapelão; o que, de havia muitos anos, levara sumiço, desertor serrão, revel por intimado de crime, ainda que se sabendo, depois, que nem não era o exato assassino.

— Tòvasco vingou o irmão, à faca ainda pegou o estúrdio reaparecido, o derribou, porém se foi também, com muito barulho... De vez e revez, os terríveis estavam terminados.

Jenzirico pedia o de que se revestir, e voltar para o mundo sueto, ciente só de mais fortes fazêres, trouxesse um mocó, por estripar, trem único que aqueles dias caçara, num dali e dalém, coitado, alto, no meio da Serra, em pedra e brenha.
Guimarães Rosa, "Tutameia"

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