Eu descobri como ganhar o jogo entre um sujeito pobre, como eu, e um rico. Não é me tornando rico, eu nunca conseguirei isso. “Ser rico” disse um deles num programa, “é uma propensão genética que nem todo mundo tem.” Esse milionário fizera sua fortuna saindo do zero. O meu pai era pobre, eu nada herdei quando ele morreu, nem o gene que motiva o cara a ganhar dinheiro.
O único bem que tenho é a minha vida, e a única maneira de ganhar o jogo é matar um rico e continuar vivo. É uma coisa parecida com comprar o iate maior. Sei que isso parece um raciocínio extravagante, mas uma forma de ganhar o jogo é criar pelo menos parte das regras, coisa que os ricos fazem. Esse rico que eu vou matar tem que ser um herdeiro, o herdeiro é uma pessoa como eu, sem disposição de ficar rico, mas que nasceu rico e goza fagueiro a fortuna que caiu do céu no seu colo. Para fruir bem a vida, aliás, é preferível que apenas o pai, e não o herdeiro, nasça com o tal gene.
Eu preferia matar um dos ricaços estrangeiros que vejo na televisão. Um homem. As mulheres deles, ou as suas filhas, são ainda mais ostensivamente ricas, porém uma mulher, por mais joias que tenha nos dedos e em volta do pulso e do pescoço, não é o iate maior. Também não me interessaria uma daquelas mulheres que obtiveram sua fortuna trabalhando, certamente portadora do tal gene, donas que aparecem na televisão vestidas de tailleur. Não, teria que ser um homem. Mas como esses homens ricos ideais vivem em outros países, tenho que procurar um rico aqui mesmo, um que herdou a grana e os bens de que desfruta.
A dificuldade para alcançar esse objetivo não me deixa nem um pouco preocupado. Traço meu plano cuidadosamente e, quando deito, alguns minutos depois estou dormindo e não acordo durante a noite. Não apenas tenho paz de espírito, mas uma próstata que funciona bem, ao contrário do meu pai, que levantava a cada três horas para urinar. Não tenho pressa, devo escolher com muito rigor, pelo menos igual ao do rico que comprou o iate grande. As pessoas que aparecem, em sua maioria, nas revistas publicadas aqui no meu país podem ser chamadas de ricas e famosas, mas matar uma figura dessas seria fácil, não me faria ganhar o jogo.
Todo rico gosta de ostentar sua riqueza. Os novos-ricos são mais exibidos, mas não quero matar um desses, quero um rico que herdou a sua fortuna. Esses, das gerações seguintes, são mais discretos, normalmente demonstram sua riqueza nas viagens, eles adoram fazer compras em Paris, Londres, Nova Iorque. Gostam também de ir a áreas distantes e exóticas, mas que possuam bons hotéis com serviçais gentis, e os mais esportistas não podem deixar de esquiar na neve uma vez por ano, o que é compreensível, afinal moram num país tropical. Exibem sua riqueza entre eles mesmos (não há vantagem em jogar com os pobres), nos jantares de milionários, onde o vencedor pode confessar que foi por inveja que comprou o que comprou, e os outros brindam alegremente à sua saúde.
Um sujeito como eu, branco, miserável, magro e famélico não tem irmãos nem aliados. Não foi fácil conseguir um emprego no mais caro e exclusivo bufê da cidade, precisei fazer demorados planos e manobras, levei dois anos nisso, perseverança é a única virtude que possuo. Os ricos costumavam contratar os serviços desse bufê quando ofereciam um jantar. A proprietária, descendente de uma família ilustre, não vou dizer o nome dela, não vou dizer o nome de ninguém, nem o meu, era uma mulher dominadora que mantinha suas anotações e cronogramas num pequeno computador que carregava numa bolsa a tiracolo. Impunha rígidos padrões aos que trabalhavam no bufê, cozinheiros, decoradores, compradores de mercadorias, garçons e os demais. Era tão competente que os seus empregados, além de obedecer sem piscar, ainda a admiravam. Se algum funcionário não se comportava conforme o modelo estabelecido, era mandado embora. Isso era raro, pois todos, antes de serem admitidos, eram submetidos a uma seleção e a um treinamento rigorosos. Fazíamos o que ela mandava, eu era um dos mais obedientes. E o bufê cobrava um dinheirão para cozinhar e alimentar os ricos. A dona do bufê tinha o tal gene.
Antes da avaliação e treinamento a que me submeti para ser garçom do tal bufê, fiz o meu próprio aprendizado. Primeiro, cuidei da minha aparência, arranjei um dentista barato e bom, o que é muito raro, e comprei roupas decentes. Depois, o que foi mais importante, aprendi, no meu adestramento solitário, a ser um servo feliz, como são os bons garçons. Mas fingir esses sentimentos é muito difícil. Essa subserviência e felicidade não podem ser óbvias, devem ser muito sutis, percebidas inconscientemente pelo destinatário. A melhor maneira de representar essa impalpável dissimulação era criar um estado de espírito que me fizesse realmente feliz por ser garçom dos ricos, ainda que provisoriamente. A dona do bufê me apontava como um exemplo de empregado que realizava o seu trabalho orgulhando-se do que fazia, por isso eu era tão eficiente.
Os ricos, como os pobres, não são todos iguais. Há os que gostam de parolar com um charuto caro entre os dedos ou com um copo de líquido precioso na mão, há os galanteadores, os que são reservados, os solenes, os que alardeiam erudição, os que exibem riqueza com seus paramentos de grife, há até os circunspectos, mas no fundo todos são faroleiros, faz parte da mímica. Que acaba sendo uma linguagem de sinais verdadeira, pois permite ver o que cada um realmente é. Sei que os pobres também fazem a sua mímica, mas os pobres não me interessam, não está nos meus planos jogar com nenhum deles, o meu jogo é o do iate maior.
Esperei pacientemente que o rico ideal surgisse para mim. Eu estava preparado para recebê-lo. Não foi fácil conseguir o veneno, insípido e inodoro, que eu transferia de um bolso para o outro em minha romaria. Mas não vou contar os riscos que corri e as torpezas que cometi para obtê-lo.
Afinal, um rico do tipo que eu tanto procurava apareceu num jantar de lugares marcados nas cinco mesas colocadas nas salas da mansão. Eu conhecia a sua história, mas nunca o vira, nem em retrato. Foi a dona do bufê que me disse, e pela primeira vez eu a vi alvoroçada, que “ele” acabara de chegar e que eu estava destacado para atendê-lo pessoalmente. Rico gosta de ser bem servido. Eu ficaria a certa distância, sem olhar para ele, mas todo gesto de comando que fizesse, por mais tênue que fosse, eu teria que me aproximar e simplesmente dizer, “senhor?” Eu sabia fazer isso muito bem, era um garçom feliz.
Ele chegara, como os outros convidados, num carro blindado, cercado de seguranças. Era um sujeito baixo, moreno, um pouco calvo, de gestos discretos. A mulher dele, a quarta, era uma loura alta e esbelta que parecia ainda mais comprida devido aos altos saltos dos sapatos que usava.
Havia oito comensais em cada mesa, quatro homens e quatro mulheres. Ainda que o serviço não fosse à francesa, cada mesa era atendida por dois garçons, o meu colega era um negro alto com dentes perfeitos. Havia bebidas para todas as preferências, até mesmo cerveja, mas não me lembro de alguém da minha mesa ter solicitado esse líquido vulgar e engordativo. Conforme as instruções da dona, o outro garçom estava subordinado a mim. Discretamente eu determinava que o meu colega atendesse aos pedidos dos demais comensais que, entretidos em suas conversas, nem percebiam o tratamento especial dispensado por mim a um deles.
Atendi-o com perfeição. Ele comia pouco, bebia sem se exceder. Não usava, comigo, as palavras “por favor” nem “obrigado” Suas ordens eram lacônicas, sem afetação. O jantar se aproximava do fim.
“Senhor?” eu me aproximei quando ele virou o rosto dois centímetros para o lado, sem olhar para ninguém, mas eu sabia que era para mim.
“Um curto.”
Era a oportunidade que eu esperava.
Fui à cozinha, eu mesmo preparei o café na máquina italiana de último tipo fornecida pelo bufê. Coloquei o veneno dentro.
“Aqui está, senhor.”
Ele sorveu o café conversando com sua vizinha. Sem pressa, peguei a xícara vazia, voltei à cozinha e lavei-a com esmero.
Demorou algum tempo até descobrirem que estava morto, pois ele havia pousado a cabeça sobre os braços apoiados na mesa e parecia estar dormindo. Mas como milionário não faz uma coisa dessas, tirar uma soneca numa mesa de banquete, os circunstantes acabaram estranhando e percebendo que alguma coisa grave ocorrera. Um colapso circulatório, provavelmente.
Foi uma comoção, enfrentada com relativa elegância pela maioria dos presentes, principalmente pela esguia mulher dele. Os seguranças, porém, ficaram muito nervosos. O jantar foi encerrado pouco depois que uma ambulância particular levou o corpo.
Creio que vou continuar por mais algum tempo servindo aos ricos. Terá que ser em outro bufê, aquele onde eu trabalhava caiu em desgraça. Os jornais no início noticiaram apenas que a causa mortis do ricaço fora um mal súbito. Porém uma dessas revistas semanais publicou uma enorme matéria de capa falando em envenenamento, com retratos dos participantes do banquete, principalmente daqueles, homens e mulheres, sobre quem pudesse ser feita uma insinuação maldosa. A vida do milionário morto, seus negócios, seus vários casamentos e separações, principalmente as circunstâncias escandalosas de uma delas, receberam extensa cobertura.
A polícia está investigando. Gostei de ir depor na delegacia. Não demorei muito lá, a polícia achava que eu não tinha muito a dizer sobre o envenenamento, afinal eu era um garçom burro e feliz, acima de qualquer suspeita. Quando fui dispensado pelo delegado encarregado do caso, eu disse de maneira casual.
“Meu iate é maior do que o dele.”
Alguém precisava saber.
“Já disse que está dispensado, pode se retirar.”
Quando estava saindo, ouvi o delegado dizer para o escrivão: “Mais um depoimento de merda.”
Ganhei o jogo. Estou na dúvida se jogo mais uma vez. Com inveja, mas sem ressentimentos, apenas para ganhar, como os ricos. É bom ser como os ricos.
Rubem Fonseca, "Pequenas Criaturas"
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