Julieta não viajara num foguetão até à Lua, não cartografara mares desconhecidos, não liderara exércitos em batalhas sangrentas; mas quem trocava algumas palavras com a velha senhora, sentada numa poltrona rodeada de outras poltronas de velhas e velhos, percebia estar perante uma mulher extraordinária. Mesmo sem milagres que a levassem à beatificação, mesmo sem feitos épicos no seu passado, mesmo enrugada e sumida, Julieta surgia superior a qualquer personagem romanesca ou cinematográfica: uma heroína da vida real. Um ser maior do que a simples existência terrena.
Alguns desses visitantes tinham conhecido Julieta ainda de pé, atarefada a cuidar da grande casa, dos vários familiares, de um sem-fim de animais. Na verdade, talvez Julieta fosse conhecida por bastante gente. Resgatar-lhe o passado, relatar-lhe a vida, e com isso validar ou contrariar o seu estatuto de ser humano excecional, capaz de suportar agruras inimagináveis, jamais poderia resultar num exercício de incertezas.
Saiba-se que Julieta, como ela própria dizia, se tornou muito velhinha. Viverá mais de cem anos e mostrar ou ocultar o último sopro de vida será decisão do narrador. A morte de uma pessoa tanto pode assumir a imensidão do universo como a insignificância de um átomo. Tanto pode conter o lirismo de um corpo a desagregar-se em poeira estelar como a crueza de um cadáver a arder num forno crematório. A morte, qualquer morte, tanto será tudo como nada.
Paulo M. Morais, "A Boneca Despida"
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