domingo, agosto 13

Velha Jucundina

Zefa resmungou as costumeiras palavras ininteligíveis e se dirigiu para os fundos da casa. O crepúsculo caia, demorado e triste, sobre os campos. O vulto do velho Jeronimo, tangendo a criação para o pequeno curral, desenhava-se contra o horizonte e uma sombra longa ondulava sobre o capim rasteiro. A vaca parou seu tardo caminhar para arrancar umas folhas da plantação de mandioca que já começava a crescer. Jeronimo soltou então seu grito de boiadeiro – recordação de um tempo distante quando conduzira grandes rebanhos para as feiras de gado – inútil grito porque os jumentos, as cabras e os porcos, sete cabeças ao todo, iam pacificamente para o seu destino noturno. E, quanto a vaca, era tao velha e mansa que mais parecia uma pessoa da família, de tal maneira se encontrava ligada aquelas existências. Mas Zefa estremeceu com o grito, era como se lhe recordasse uma obrigação indeclinável. Murmurou novas palavras, agitou-se, animaram-se seus olhos parados. A velha Jucundina, sem largar o menino, voltou toda a sua atenção para os movimentos de Zefa. Aquilo durava ha muitos anos, mas a velha não se acostumara ainda de todo, esperava sempre uma surpresa, qualquer coisa como um estranho milagre, um fato assombroso. Nascera naquelas bandas, ali crescera, casara, tivera filhos e netos, conhecia cada palmo de terra, tinha as mãos calosas do plantio e da colheita, vira as secas e os jagunços, o assassinato na casa-grande que provocara tanto rebuliço, mas nada se comparava com aquilo. Estava certa de que um espírito encostara no corpo de Zefa para cumprir ali sua sentença de sofrimento, pagando os malfeitos do tempo de vivo, e essa era uma opinião generalizada pela gente da fazenda, agregados e colonos. Quando chegava a hora das rezas, marcada pelo grito saudoso de Jeronimo tangendo a criação, a velha Jucundina ficava sempre na expectativa, pois poderia acontecer de repente. O que, ela mesma não sabia. Talvez o espírito se fosse, seu tempo de sentença tivesse terminado, e pudesse ele enfim retomar o caminho das regiões celestes onde não havia nem fome, nem doenças, nem lágrimas. E Zefa, que, algum dia, num passado esquecido, fora uma bonita moca, cobiçada pelos trabalhadores, de pernas grossas e cupidos olhos, talvez retornasse a razão e reconhecesse os seus parentes, seu irmão Jeronimo, sua cunhada Jucundina, seus sobrinhos e primos. Como iria acontecer, Jucundina não sabia. Apenas esperava que o fato se desse, e a cada crepúsculo, quando Zefa se agitava para o início das suas orações, a velha ficava a espreita, porque com certeza seria naquela hora solene do fim do dia, quando as sombras começavam a cair criando um clima de mistério, quando as velas se acendiam, os ruídos se modificavam, e a cor do mundo era outra, que o milagre sucederia. Esperava já sem susto e quase sem emoção. Mas esperava. Tanto podia ser hoje, como amanha ou no fim da semana, porém alguma vez seria e, quando acontecesse, a velha Jucundina ver-se-ia livre de um peso que estava de há muito sobre o seu coração.

Era um momento importante no dia trabalhoso da velha Jucundina, porque sempre sucedia que juntavam-se na sua memoria, ao grito do velho Jeronimo, os fatos referentes a Zefa, a expectativa dos acontecimentos milagrosos que poderiam suceder, e a recordação dos três meninos que haviam partido. Eram já rapazes quando se foram, cada um por seu caminho, cada um para uma vida diversa. Menos Nenén, cujo nome era Juvêncio, quase uma criança ainda quando fora assentar praça. Os outros dois já eram homens feitos, mas para Jucundina continuavam sendo os “meninos” e neles pensava todos os dias naquela mesma hora do fim da tarde, talvez porque tivesse sido ao cair do crepúsculo que deram por falta de Nenén (só tempos depois viriam a saber que ele assentara praça na polícia militar) e ate hoje a voz desencantada do velho Jeronimo ressoa aos ouvidos de Jucundina no amargo e único comentário do acontecido:

– Num fica ninhum cum nóis, veia... Só nóis e que vai morrer nessa terra, cumo os bichos e os pé de pau...

Apontava Agostinho, criançola ainda:

– Um dia vai esse também...

Os anos tinham passado e nenhum dos três rapazes voltara. Essa era outra secreta esperança da velha Jucundina. Vê-los regressar para que ajudassem Jeronimo no trabalho da terra. E, apesar de que haviam partido em datas diversas, cada um por sua vez, cada um por um caminho, cada um para um destino, imaginava – eram poucos e pequenos quadros, formados no correr do tempo, que se sucediam inalteráveis na sua imaginação – que regressariam juntos, juntos atravessariam a cancela e juntos lhe diriam a benção. Onde se encontrariam nessa viagem de regresso, a velha não sabia e já refletira mesmo sobre o assunto algumas, vezes. Mas não conseguira marcar um lugar que aos três servisse e desistira pois lhe dava um cansaço na cabeça, e aumentava a tristeza, ja que assim tinha que pensar sobre o que poderia ser a vida atual de cada um dos meninos. Como marcar o umbuzeiro para o encontro se José não tinha pouso nem caminho certo, podia vir por qualquer estrada, sempre como um fugitivo amedrontado? E Jaó por onde chegaria, se a velha Jucundina não sabia direito a cidade onde ele estava destacado? Ao demais ela não queria pensar no presente dos rapazes, no que lhes estaria sucedendo naquele dia e naquela hora. Bom era vê-los chegando, no rastro de Jeronimo e dos animais, juntos os três, os sacos de viagem cheios de coisas de outras terras, de coisas ate da cidade, e a voz, áspera mas cálida, pedindo a benção. A voz que ela ouvia, mistura das três vozes, era a de Nenen, o menor dos três, o mais querido também. E como tudo podia acontecer – “Deus e grande” – num mesmo dia, quem sabe se, quando os meninos chegassem de regresso, não partisse para sempre o espirito que perturbava Zefa, que enchia sua boca de palavras diferentes e escabrosas, que tornava fixos e amedrontados os seus olhos, que derramava aquela tristeza pelo corpo antes alegre e robusto? Foi aos poucos, devagarinho, que a velha Jucundina juntou numa única data os dois acontecimentos. Antes pensava num ou noutro separadamente. “Pode que hoje o espirito vá embora, tenha cumprido sua pena.” “Pode que hoje cheguem os meninos de volta, tenham cumprido seu destino.” E os dias se passavam e os crepúsculos sucediam-se, repetia-se monótono o grito melancólico de Jeronimo, Zefa rezava suas orações sem nexo e a porteira não se abria ao passo dos fugitivos. E uma e outra esperança foram-se fundindo, se misturando no passar do tempo, e agora tudo ia suceder num só dia, numa única tarde, e então – pensava a velha Jucundina – ela poderia morrer descansada. Porque tudo que desejava nesse mundo, onde se esta para sofrer, teria sucedido, e não lhe restaria mais nada em que pensar, pois de ha muito aprendera que desejar a posse da terra que trabalhavam era um sonho impossível e irrealizável.
Jorge Amado, "Seara Vermelha"

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