Era um momento importante no dia trabalhoso da velha Jucundina, porque sempre sucedia que juntavam-se na sua memoria, ao grito do velho Jeronimo, os fatos referentes a Zefa, a expectativa dos acontecimentos milagrosos que poderiam suceder, e a recordação dos três meninos que haviam partido. Eram já rapazes quando se foram, cada um por seu caminho, cada um para uma vida diversa. Menos Nenén, cujo nome era Juvêncio, quase uma criança ainda quando fora assentar praça. Os outros dois já eram homens feitos, mas para Jucundina continuavam sendo os “meninos” e neles pensava todos os dias naquela mesma hora do fim da tarde, talvez porque tivesse sido ao cair do crepúsculo que deram por falta de Nenén (só tempos depois viriam a saber que ele assentara praça na polícia militar) e ate hoje a voz desencantada do velho Jeronimo ressoa aos ouvidos de Jucundina no amargo e único comentário do acontecido:
– Num fica ninhum cum nóis, veia... Só nóis e que vai morrer nessa terra, cumo os bichos e os pé de pau...
Apontava Agostinho, criançola ainda:
– Um dia vai esse também...
Os anos tinham passado e nenhum dos três rapazes voltara. Essa era outra secreta esperança da velha Jucundina. Vê-los regressar para que ajudassem Jeronimo no trabalho da terra. E, apesar de que haviam partido em datas diversas, cada um por sua vez, cada um por um caminho, cada um para um destino, imaginava – eram poucos e pequenos quadros, formados no correr do tempo, que se sucediam inalteráveis na sua imaginação – que regressariam juntos, juntos atravessariam a cancela e juntos lhe diriam a benção. Onde se encontrariam nessa viagem de regresso, a velha não sabia e já refletira mesmo sobre o assunto algumas, vezes. Mas não conseguira marcar um lugar que aos três servisse e desistira pois lhe dava um cansaço na cabeça, e aumentava a tristeza, ja que assim tinha que pensar sobre o que poderia ser a vida atual de cada um dos meninos. Como marcar o umbuzeiro para o encontro se José não tinha pouso nem caminho certo, podia vir por qualquer estrada, sempre como um fugitivo amedrontado? E Jaó por onde chegaria, se a velha Jucundina não sabia direito a cidade onde ele estava destacado? Ao demais ela não queria pensar no presente dos rapazes, no que lhes estaria sucedendo naquele dia e naquela hora. Bom era vê-los chegando, no rastro de Jeronimo e dos animais, juntos os três, os sacos de viagem cheios de coisas de outras terras, de coisas ate da cidade, e a voz, áspera mas cálida, pedindo a benção. A voz que ela ouvia, mistura das três vozes, era a de Nenen, o menor dos três, o mais querido também. E como tudo podia acontecer – “Deus e grande” – num mesmo dia, quem sabe se, quando os meninos chegassem de regresso, não partisse para sempre o espirito que perturbava Zefa, que enchia sua boca de palavras diferentes e escabrosas, que tornava fixos e amedrontados os seus olhos, que derramava aquela tristeza pelo corpo antes alegre e robusto? Foi aos poucos, devagarinho, que a velha Jucundina juntou numa única data os dois acontecimentos. Antes pensava num ou noutro separadamente. “Pode que hoje o espirito vá embora, tenha cumprido sua pena.” “Pode que hoje cheguem os meninos de volta, tenham cumprido seu destino.” E os dias se passavam e os crepúsculos sucediam-se, repetia-se monótono o grito melancólico de Jeronimo, Zefa rezava suas orações sem nexo e a porteira não se abria ao passo dos fugitivos. E uma e outra esperança foram-se fundindo, se misturando no passar do tempo, e agora tudo ia suceder num só dia, numa única tarde, e então – pensava a velha Jucundina – ela poderia morrer descansada. Porque tudo que desejava nesse mundo, onde se esta para sofrer, teria sucedido, e não lhe restaria mais nada em que pensar, pois de ha muito aprendera que desejar a posse da terra que trabalhavam era um sonho impossível e irrealizável.
Jorge Amado, "Seara Vermelha"
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