sábado, setembro 30

Leitura na areia


 

Do fim do mundo

Escrevo-lhe do fim do mundo. É preciso que o saiba. Amiúde as árvores tremem. Apanham-se as folhas. Têm uma imensa quantidade de nervuras.

Mas de que servem? Não há mais nada entre elas e a árvore, e dispersamo-nos, incomodados.

Será que a vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou será preciso que tudo trema sempre, sempre?

Há também tumultos subterrâneos, e dentro de casa, como raivas que surgissem à nossa frente, como seres severos que quisessem arrancar confissões.

Não se vê nada, como se importasse muito pouco ver. Nada, e todavia treme-se. Porquê?

Henri Michaux, "Escrevo-lhe de um país distante"

Romance de coruja

Ave noturna, agoureira,
Não me apavora teu canto…
Lourival Açucena

Anoiteceu. Na moldura do oco no tronco da mangueira o vulto claro de Sofia aparece. As asas escuras, ferrugem com tintas de canela, destacam o papo alvacento, com listas horizontais feitas com tinta delicada de negro pálido. Na gorjeira, placas de matiz carregado, salientando-se como um colar de três voltas, condecorador. O bico curvo, forte, dá uma impressão de ferocidade meditativa que os olhos claros, límpidos, completam, no ar clássico de decisão e cisma estudiosa. Na altura das orelhas as penas se elevam, cucurutando como um boné de jogral. As patas, de dedos firmes, são garras, sabendo prender-se em qualquer galho, e também agarrar e suspender a presa, varando-a com as adagas das unhas implacáveis.

Equilibrada no rebordo, balança-se como medindo o espaço que escurece. Há uma lenta claridade invasora, leitosa, transparente, acariciante. É luar. Luar de agosto. Será noite de caça festiva e fácil. Esperança otimista de repleção antes do frio da madrugada.

As pupilas negras de Sofia restringem-se concentricamente. Pisca. Bem desejaria ela explicar quanto é mentirosa a lenda obstinada que a diz ver de noite quando não enxerga de dia, deslumbrada pela claridade cegante do sol. Nem tanto. Verdade é que não pode ver sem luz, sem alguma luz. De noite cerrada, bem trevosa, nada distingue, nada caça, voando baixo, quase às apalpadelas, temendo esbarros e batidas nos espinhos, nas urtigas, nas cascas ásperas e rugosas que a molestam, arrancando-lhe as penas da garganta e do peito.

É uma Strix flammea, Gmel, a Effraie dos poemas de França, a sinistra “rasga-mortalha” na sinonímia popular, coruja de igreja que também vive em oco de pau, imóvel e assombradora. Eleos dos gregos. Aluco dos latinos, Sofia precisa de luz mesmo difusa e tênue para agir. Ao entardecer, quando a luminosidade se arrasta nos retardados crepúsculos de verão, até que a noite torne o arvoredo maciço, é o tempo ideal para as proezas da coruja alvacenta.

É a hora em que os animais se recolhem e os pássaros zombeteiros e atrevidos, que irritam sua impassibilidade soturna, procuram os ninhos. Miríades de insetos revoam. Também há uma fauna noturna e rastejante, amiga deste horário. Morcegos e ratos pululam. Gô e Quiró saem para caçar, levando seu povo esfomeado.

Sofia ouve maravilhosamente e pode fechar ou abrir o pavilhão, movimentando sua coroa de penas, obstrutora. O bico é imóvel nas duas partes, como o dos papagaios, alcançando maiores proporções preadoras que escorregam pela garganta enorme, deglutindo ratos e morcegos inteiros. O estômago generosamente encarrega-se de expelir o couro peludo em forma de bolinhas. O bico permite bicoradas decisivas e também o rumor estalante de castanholas, sinal de intranquilidade e também de pacificação digestiva. Seu andar de velho marujo não a leva para longe mas aproxima-a de quem deseja ver de perto. O voo é macio, silencioso, pesado, graças à penagem mole que a reveste. Há, entretanto, corujas – e Sofia é uma delas – denunciadas às vezes por um súbito ranger quando voam mais baixo que o habitual. Parada, resfolega ou ressona surdamente, com imprevistas representações sônicas de estrangulamento estertorante. Por sua culpa é que a fama se espalhou, de anunciadora da morte, arauto dos cemitérios e núncio fatal quando voa resmungando por perto da câmara dos agonizantes.

Seu canto – canto? – é um piado triste e continuado, com pausas sonolentas que iniciam a continuação. Na época do amor Sofia ulula sem parar, teimosa, chamando, indicando a coordenada geográfica ao seu amor ou indo buscá-lo, se ouve a cadência entrecortada da réplica interessada. Horas a fio repete a última vogal, bem acentuada, ligada mas clara, espécie monótona de um rosário merencório de mágoas inconsoláveis. Nas noites enluaradas, o canto parece sair da terra e de todos os recantos onde Sofia não esteja.

Em qualquer país do mundo e tempo da História a coruja é mensageira da morte infalível. Morávamos numa chácara e numa noite, muito doente meu pai, a coruja começou no seu ululado arrepiante. Meu pai fez um sinal a um dos criados. Um tiro estrondou e o servo voltou com a corujinha morta, pintada de sangue, olhos imensos, abertos, sem saber por que morrera. Meu pai disse a frase consagrada pelo uso: “– Vá agourar outro...”

O doente que vê morta a coruja que o agourou cantando perto da casa, sobreviverá.

Meu pai viveu mais 25 anos. No Rio de Janeiro, bairro da Tijuca, visitamos um doente. Inexplicavelmente ouvia-se a coruja cantar, teimosa e distante nos intervalos da conversa. Voltando, um grande político da época afirmou, convicto:

 “– Está perdido! Não ouviram a coruja cantar?”

O doente faleceu, efetivamente, na noite seguinte. Estes acasos credenciam Sofia irremediavelmente como o sinistro pássaro da morte, como dizia Plínio. Sofia é tão responsável pelas mortes humanas como pela orientação política dos Estados Unidos ou União Soviética.

Criei mais de um ano uma coruja e esta comia tudo que se lhe desse. Apenas, aristocraticamente, só comia sozinha, com lentidão e gravidade. Nunca a vi beber. Libertou-se numa noite de luar, véspera de “festa” (24 de dezembro) e não sei como se arranjou levando um pedaço de corrente de latão na pata direita. Jamais habituou-se com as pessoas de casa, mesmo com quem a alimentava. Olhava-os fixa, desesperadamente, meneando a cabeça chata e dando um rosnado meio bufado que seria cólera justa e desprezo. Nunca se dignou cantar. Comia camundongos e morcegos vivos. Mortos, recusava-os sem olhar. Servia-se de carne crua, insetos. Também desdenhava frutas. Inexplicavelmente apreciava pirão de leite, farinha de mandioca, leite e açúcar. Metia o bico, lambuzando-se como um periquito glutão. Não tentava beliscar os curiosos e também não permitia intimidades nem verificações por contato. O primeiro sinal de impaciência não era abrir o bico e sim uma ou duas asas, semiabrir. O bico aberto ocorria imediatamente a esta preparação. Dei-lhe nome familiar de Maroca. Não parecia, muito justamente, entender. Não deixou saudades a ninguém.

Serviu-me, para teste, sobre a conservação do seu terrível prestígio. Todas as pessoas que nos visitavam, ilustres e humildes, desde o Governador do Estado ao vendedor de carvão, surpreendiam-se com a coruja, aconselhando sua imediata libertação. Não convém manter a coruja presa. Reuniam todos os prejuízos multisseculares sobre Sofia, dizendo, muito sérios: “– Faz mal...”. Era tudo.
Decepcionou-me em muitas experiências. Uma delas era a constatação da coruja beber óleo das lâmpadas da igreja. Buffon afirma. Pus junto a Maroca a lâmpada de óleo do oratório de minha mãe (indignação de vários dias pelo sacrilégio) por duas vezes, mas a coruja deixou-o intacto. Buffon informa que o apetite de Maroca pelo óleo santo é maior se ele coagula... surtout si elle vient à se figer. Não pude obter óleo coagulado.

Na Europa é comum os estrigídeos reunirem-se durante o inverno nos palheiros, tolerando-se mutuamente pela necessidade de obter calor. Será um dos efeitos socializantes do clima. No Brasil, especialmente no Norte, que é um verão eterno, as corujas são adversários do gregarismo e vivem isoladas. Mesmo no cio, que é rápido, permanecem nas grutas, buracos do chão, muros antigos, torres de velhas igrejas, ocos de árvores robustas. O casal pode ser visto em certas noites de luar, cantando, trocando apelos mas separado, cada personagem na sua árvore privativa. Nunca vi duas corujas no mesmo pouso.

A versão popular é que lutam quando se encontram as do mesmo sexo macho. Não há delicadeza para a fêmea, fora ou dentro do clima amoroso. Vendo-a com uma boa presa, tenta arrebatar-lha. Um meu parente, caçador noturno de tatus, assistiu justamente a um desses combates aéreos pela tomada de uma ratazana que uma coruja levava e fora encontrada por outra, irmã de pai e mãe, decidia o informante. Terminava a justa o rato escapulindo.

No tempo em que o amor lhes sopra a tentação sedutora, cantam mais e é a época dos ululos que chamam a morte, mas realmente suplicam a presença da noiva requestada e tardia. Permutam os agouros até que o macho toma coragem e voa ao encontro do desejado par.

Por isso Sofia estava cantando naquela noite e não caçando os ratos de Gô ou os morcegos de Quiró.

Imóvel no galho, como que feita de porcelana, Sofia lança o seu chilrear conclamativo. As notas encadeiam-se, sem espaços, os u-u-u-u se estiram, conjugadas as terminações, obtendo uma única ressonância suplicativa. Ratos e morcegos ocultam-se ou fogem, avisados da proximidade da caçadora. A coruja quando caça não canta. Outra era a caça para o apelo ululante de Sofia.

O canto, firmado interminamente na derradeira vogal, é bem diverso dos outros constantes do repertório da Strix flammea perlata. Seu epitalâmio consiste naquela teimosa epizeuxe certamente irresistível aos ouvidos femininos da coruja, ouvinte e recatada.

Não é o piado longo e tétrico, levemente interrogativo às vezes, nem o estalo surdo e brusco que faz voando, rumor semelhante a um rompimento de tecido e daí a ideia fúnebre do rasga-mortalha. Nem a cadeia das notas se interrompe pelo prolongamento sobre uma vogal, espécie de marcação de uma neuma no entoado de uma jubilação gregoriana. O canto amoroso, terno e eterno nas vogais profundas e valorosas de intenção, possui um término variado, inflexões diversas que findam por um ralentando preguiçoso ou espaços intervalares que salientam as três derradeiras notas, cheias de subentendidos e chamamentos maviosos.

A repetição na mesma intensidade de certas notas dá à simulcadência um significado intencional, fazendo ressaltar na própria intermitência melódica o fraseado convencional do convite amoroso. O canto, monótono, inacabável, não é rigorosamente igual. Um floreio quase imperceptível, uma acentuação mais demorada em segundos, um final diverso, modifica a mensagem musical na noite branca.

Tanto é assim que a outra coruja respondeu por um pio longo, duas ou três vezes ressoando, como um “sim” de renúncia à resistência remorada e cruel. Sofia abriu as asas perladas, com o listrão vivo de ferrugem e canela heráldicas, e voou para a cajazeira matrimonial.

Estão agora as duas figuras hirtas, lado a lado, no galho curvo abrigador de tanta felicidade. Acabaram-se os cantos. Não há espaço entre os noivos. Apenas a sombra de uma ave que se volta, erguendo as penas do uropígio, que ocultam a vulva, acima o ânus. No mesmo ponto Sofia possui a breve verga muscular fecundadora. O contato é de minutos e o esposo feliz não acompanha a fêmea complacente. Voa, calado e jubiloso, para a casa distante. A fêmea tratará de todos os encargos.

Durante uns dois meses Sofia repetirá, todas as noites, o seu apelo de paixão transbordante, não sei se à mesma ou outra coruja sentimental. Viverá o seu romance na cajazeira ou em qualquer árvore de abrigo. Mas não fará ninho e nem alimentará os filhos de bico aberto na exigência do cibo. O ninho não precisa ser feito porque é oco-de-pau ou reentrância de muro, torre patinada, com um leve forro de palha ou capim sem arranjo circular, rústico quanto o da cegonha.

As aves de preia, as grandes ornamentais, poderosas de força, águias, abutres, gaviões, não têm amor prolongado pela pequenina ninhada. Expulsam os filhos bem cedo dos ninhos malfeitos, obrigando-os a buscar a vida batalhada, matando para comer. As aves humildes e fracas são, em sua maioria, as enamoradas da prole e da fêmea, as românticas que fazem serenatas, aquelas que buscam alimentos para o choco, sustentam os filhos com paixão e defendem o lar com sacrifício comovedor.

Certamente Sofia conhecerá os filhos a distância e os terá na classe de concorrentes à caça e rivais no futuro amor. Dispensa-se cordialmente de protegê-los ou morrer por eles. Nunca vi e nem soube que alguém encontrasse em ninho de coruja mais de uma ave adulta. Buffon, lui, toujours lui, informa que: “– Elle nourrit ses petits d’insectes et de morceaux de chair de soris”. Pode ser que exista no Brasil esta regra de que Sofia é uma consabida exceção.

Ponhamos, prudentemente, o eles no singular, ela. Buffon narra emocionalmente que prendera uma Effraie e esta, emitindo o seu grito de socorro, determinara que as companheiras corressem para junto da prisão repetindo o apelo amargurado e mesmo se deixassem prender nos laços, et s’y laisser prendre au filet. Suicídio pelo solidarismo. No Brasil a coruja evoluiu psicologicamente para o plano do egoísmo superior. Se contarem a Sofia esta notícia, balançará a cabeça ornamental, imaginando a resposta: “– Outras terras, outros costumes...”.

Sofia não faz ninho, ensinam, porque as aves noturnas não costumam construir suas residências. Não têm tempo oportuno porque as horas de caça coincidem com o horário apertado em que podem ver alguma coisa. Tendo que escolher entre o ninho e o alimento todas se decidem pelo segundo. O ninho é trabalho diurno. Os psitacídios veem deliciosamente de dia e nunca uma criatura humana chegou a encontrar o papagaio ocupado em fazer sua casa. Um ditado de Minas Gerais afirma, lógico: “– Quem tem asas para que quer casa?” É generalizar demasiado.

Um ditado do Ceará, recolhido por Leonardo Mota: “– Coruja é quem gaba o toco”. Toco é a residência. Até hoje não quis outro. Para que fazê-lo se já o depara feito a seu gosto?

Nos assuntos maternais a coruja é clássico exemplo devotado e completo. Incomparável à solicitude na procura de alimentos e cuidados minuciosos na manutenção e resguardo da progênie. Perpetuamente esfomeadas, exigentes e piantes, as corujinhas são satisfeitas com todos os sacrifícios e a coruja velha esvoaça, num ciúme de bom gosto, o toco de pau que esconde aos olhos profanos aquelas maravilhas.

É popular na Europa de onde veio para América o episódio com a raposa que ia iniciar seu almoço e consultava a coruja sobre os tabus alimentares. De todas as aves novas, a coruja recomendou unicamente as mais lindas e sedutoras, de aspecto irresistível no encanto imediato. Eram as horrendas corujinhas. Pequenas mal-ajambradas, a grande cabeçorra pelada desproporcional ao corpinho molenga e úmido, o bico aparado anunciando a bocarra incomensurável, a penugem branquicenta, molhada e suja, os olhos redondos, imensos, assombrados da própria hediondez, lembrando os restos de um vômito, repugnante e confuso. A raposa devorou-as com mau gosto e bom apetite. A coruja, inconsolável, ainda guarda rancor à falta de justiça estética da gente vulpina. Para o julgamento de todas as mães do mundo o modelo fiel é o da coruja, mater admirabilis.

Os insetos maiores, ortópteros e coleópteros, Sofia apanha-os no voo e os engole sofregamente. Não podendo mastigar, língua cartilaginosa e seca, não creio que tenha o sentido do paladar. Sabe, pela riqueza da experiência de tantas gerações, os melhores coeficientes nutritivos. Entre os insetos e os ratos e morcegos, especialmente os ratos novos e os camundongos vestidos de penugem cinzento-clara, fina como arminho, prefere os últimos e a perseguição é mais encarniçada e teimosa na captura dos roedores.

Vi muitas vezes nas vilas do interior, onde a matriz fica silenciosa ao cair da noite e há tranquilidade em todo o quadro da rua, as corujas-de-igreja, suiná, suinara, suindá, suindara, atacando os quirópteros, seguindo-os acesamente a ponto de esbarrarem na parede branca do templo, com o raspar violento da asa no obstáculo imprevisto. Um informador, digno de crédito pela idade e circunspecção, descreveu-me a pegada de um Gô, ratazana alentada e veloz que correu, defendendo a vida, no fio do beiral da casa enquanto Sofia o acompanhava em voo que se tornava mais e mais tragicamente baixo. O guabiru antes de ser fisgado pelo bico e garras da coruja soltou um guincho de pavor atroz, lamento e apelo de socorro que deveria estarrecer os companheiros distantes. Sofia agadanhou-o e passou voando pela calçada onde se encontrava o meu informador. A luz da lua mostrava perfeitamente o perfil estrebuchante do guabiru, sacudindo o seu inútil grito solicitador de auxílio. Foi dilacerado no cimo da torre iluminada pelo luar sereno.

Numa noite branca é que Sofia suspendeu Tim pelo dorso esverdeado e levou-o, imóvel e resignado, para final de sua ceia. Tim, calango verde listrado de negro, vagamundo e turista gratuito, fora em semanas anteriores o matador de um pirilampo. Sem querer, Sofia castigou-o pela sua falta de respeito artístico por uma pequenina obra-prima da criação. Apesar da obnubilação diurna Sofia é atraída pelas luzes domésticas. Fatalmente as corujas-do-campo ou as “buraqueiras” (Speotyto cunicularia, Temm), Caboré intrometido e curioso e mesmo Sofia, não resistem ao apelo cintilante e vão verificar de perto a origem daquele clarão, derramando sustos e recebendo protestos, tiros e pedradas reacionárias. As lâmpadas elétricas dos postes nas avenidas remotas e de pouco trânsito alta noite são inevitavelmente visitadas pelas corujas, visitas apressadas, meramente cerimoniosas, um círculo respeitoso ao derredor do foco antes de remergulharem na escuridão. É uma homenagem ao elemento misterioso cuja desacamodação às suas pupilas fá-las retraídas e sinistras, fora do convívio das aves, haloadas de lendas e seguidas de maldições seculares.

Vezes acompanham, virando lentas o pescoço móbil, os faróis que passam, não podendo apartar a vista daquele listrão que acorda a paisagem, mudando o cenário no lampejo atordoante. Quase dão o completo giro na cabeça, o bico no meio das costas, olhos parados, fosforescentes, seduzidos e encantados, abertos e contemplativos no deslumbramento inesquecível da visão rutilante.

As menores, inexperientes ou mais sensíveis, voam de encontro aos vidros dos para-brisas, cegas, fascinadas na ofuscação súbita daquele milagre perturbador de suas pupilas. O choque as sacode atordoadas e contusas para a margem da estrada. Viajando numa noite de escuro, de Goiânia para o Recife, o automóvel focou os olhos distantes de uma coruja que estava empoleirada num galho na curva do caminho. Vimo-la voar na direção do veículo e sentimos o embate do seu corpo no radiador. Quando a fui ver já estava morta; uma patinha crispava-se vagarosa na última convulsão. Manchas de sangue nodoavam-lhe a cabeça chata, de penas claras, ouro pálido. Os dois olhos grandes, desmesuradamente abertos, pareciam guardar a impressão imediata de uma revelação que lhe custara a vida. Estavam mais luminosos, molhados de sangue, vitoriosos pela conquista que fora aquela aproximação ansiada e definitiva. Matara-a a luz irresistível, fascinadora e fatal.

Na sua lenta e pesada diagonal, Sofia atravessou o céu tranquilo da madrugada e pousou, nobre e séria, no umbral da sua casa. Um instante alvejou seu vulto senhorial oscilando, balançando-se como velho marujo nas alturas do mastro grande. Ficou olhando a placidez das coisas adormecidas e a vida palpitante que continuava, terna e dominadora, matando, amando, morrendo para reproduzir-se.

Depois, apagou-se na sombra…
Luís da Câmara Cascudo, "in Canto de Muro"

O pequeno rei vira-lata

Todas as tardes, lá estava ele. Longe dos outros, o garoto se sentava na sombra do arvoredo, com as costas contra o tronco de uma árvore e a cabeça inclinada. Os dedos de sua mão direita dançavam debaixo de seu queixo, dançavam sem parar como se ele estivesse coçando o peito com uma incontida alegria, e ao mesmo tempo sua mão esquerda, suspensa no ar, se abria e fechava em pulsações rápidas. Os outros tinham aceito, sem perguntas, o hábito.


O cão se sentava, sobre as patas de trás, ao seu lado. E ali ficavam até a chegada da noite. O cão paralisava as orelhas e o garoto, com a testa franzida atrás da cortina de cabelos sem cor, dava liberdade aos seus dedos para que se movessem no ar. Os dedos estavam livres e vivos, vibrando na altura de seu peito, e das pontas dos dedos nasciam o rumor do vento entre os galhos dos eucaliptos e o repicar da chuva nos telhados, nasciam as vozes das lavadeiras no rio e o bater das asas dos passarinhos que voavam, ao meio-dia, com os bicos abertos pela sede. Às vezes, dos dedos brotava, de puro entusiasmo, um galope de cavalos; os cavalos vinham galopando pela terra, o ruído dos cascos sobre as colinas, e os dedos se enlouqueciam na celebração. O ar cheirava a miosótis e ervilha-de-cheiro.

Um dia, os outros deram-lhe de presente um violão. O garoto acariciou a madeira da caixa, lustrosa e boa de se tocar, e as seis cordas ao longo do diapasão. E ele pensou: que sorte. Pensou: agora, tenho dois.
Eduardo Galeano, "Vagamundo"

quinta-feira, setembro 28

Fonte de todo dia

 


Porcelanas da China

A força de uma estrada do campo é uma se alguém anda por ela, e outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve.

Quem voa vê apenas o modo como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio e de como, daquela mesma região que, para o que voa, é apenas uma planície desenrolada, ela faz sair, a seu comando, a cada uma de suas voltas, distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz sair soldados de uma fila.

Assim comanda unicamente o texto copiado a alma daquele que está ocupado com ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo perspectivas de seu interior, tais como as abre o texto, essa estrada através da floresta virgem interior que sempre volta a adensar-se: porque o leitor obedece ao movimento de seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o copiador o faz ser comandado. A arte chinesa de copiar livros foi, portanto, a incomparável garantia de cultura literária, e a cópia, uma chave para os enigmas da China.

Walter. Benjamin, “Rua de Mão Única”

Eles vinham de longe

Se tivessem conhecido o idioma da cidade, poderiam ter perguntado quem fez o homem branco, de onde saiu a força dos automóveis, quem segura os aviões lá no céu, por que os deuses nos negaram o aço.

Mas não conheciam o idioma da cidade. Falavam a velha língua dos antepassados, que não tinham sido pastores nem vivido nas alturas da serra nevada de Santa Marta. Porque antes dos quatro séculos de perseguição e espoliação os avós dos avós dos avós tinham trabalhado as terras férteis que os netos dos netos dos netos não puderam conhecer nem de vista nem de ouvir falar.

De modo que agora eles não podiam fazer outro comentário que aquele que nascia, em chispas bem-humoradas, dos olhos: olhavam essas mãos pequeninas dos homens brancos, mãos de lagartixa, e pensavam: essas mãos não sabem caçar, e pensavam: só podem dar presentes feitos pelos outros.

Estavam parados numa esquina da capital, o chefe e três de seus homens, sem medo. Não os sobressaltava a vertigem do trânsito das máquinas e das pessoas, nem temiam que os edifícios gigantes pudessem cair das nuvens e despencar em cima deles. Acariciavam com a ponta dos dedos seus colares de várias voltas de dentes e sementes, e não se deixavam impressionar pelo barulho das avenidas.

Seus corações sentiam pena dos milhões de cidadãos que passavam por cima e por baixo, de costas e de frente e de lado, sobre pernas e sobre rodas, a todo vapor: “Que seria de todos vocês” – perguntavam lentamente seus corações – “se nós não fizéssemos o sol sair todos os dias?”
Eduardo Galeano, "Vagamundo"

O casamento das crianças

Eu adoro casamentos. Adoro ir comprar roupas com jacarés aos outlets, ter as cores todas a combinar, estrear tudo de novo como se fosse a Páscoa de antigamente, pentear o cabelo à maneira, meter um protetor gástrico no bolso a pensar nos aperitivos, ficar à espera de ver quem bebe porque eu nunca bebo e nunca me esqueço das partes picantes de todas as festas.

Quando era criança eu não queria sair de casa e só acompanhava os meus pais porque me prometiam um sumol. Os casamentos são o jackpot do sumol, o euromilhões, a disneylândia das guloseimas e das roupas com jacarés, como se fizéssemos, por um dia, um mundo mais perto de ser perfeito.

Tenho uma alma lambona, cheia de fome de coisas e nunca me basto com a maravilha. A mim, o que parece normal é catar milagres porque há milagres em toda a parte, dependem apenas da nossa capacidade de encantamento. Para uma alma assim, o amor é o cimo da montanha, o extremo do sol, a luz levantada sobre todas as cabeças.

Os que casam são melhores porque apostam tudo. As modas estão para moderações, compromissos cada vez mais pequenos, cheios de medo, mas alguns ainda são bravos para acreditarem e para sonharem o sonho inteiro. Admiro muito quem tem coragem para o sonho inteiro porque não se fazem as maiores aventuras sem heróis e eu já há muito que me convenci de que a heroicidade é toda no amor e no exercício da paz.

Que duas pessoas se juntem pelo límpido custo de se amarem é redentor. Parece que tudo na vida conspira para que existamos por alguém. Somos impelidos para alguém mas nem sempre estamos à altura de fazer o acordo, harmonizar as vontades, ceder o necessário para que funcionemos como múltiplos, um ser plural. Duas pessoas que se juntem significam esse sentido profundo da vida. Juntar não nos diminui nem nos divide, faz-nos o dobro.

Chega o tempo em que casam as nossas crianças. Que tempo de espanto. As nossas crianças são adultas e educam seus destinos. Assim, a minha sobrinha Raquel e o seu Rui. Nem sei o que pensar. Ela pode bem estar licenciada, doutorada, conduzir automóveis e pagar suas contas com o fruto do seu trabalho, mas eu tenho a impressão de que ainda nos compete mandá-la fazer o tpc, e não deixar que veja algumas notícias muito gráficas no telejornal, pedir que vista saias mais compridas, porque os palermas dos rapazes hoje já não saem à rua por um sumol.

Não tenho filhos mas sei bem que as nossas crianças jamais poderão crescer definitivamente. Nós não deixamos. Por isso, vemo-las casar incrédulos, gratos por, de alguma forma, ter tudo dado certo. Para os velhos, que as crianças casem é uma certa meta, um lugar de chegada. Temos a sensação de completar todos os ciclos de acompanhamento. É como uma batalha ganha, uma Aljubarrota de glória em que pensaremos sempre como guerreiros felizes.

Eu não gosto de princesas porque as princesas são francamente decorativas, bastante inúteis e preocupadas com enfeitar salas, eu gosto de mulheres brilhantes, que se tenham levantadas em seus próprios pés e caminhem por seu próprio destino. Assim é a Raquel. E os melhores homens são naturalmente aqueles que não temem as mulheres brilhantes. Os homens que valem a pena são os que vivem a par, brilham por eles mesmos sem escurecer a mulher que amam. Assim é o Rui.

O que queremos para as nossas crianças não é o que queremos para nós. Isso é um equívoco. O que lhes queremos é o que se lê nos livros e se vê nos filmes, nas histórias arrebatadoras que nos comovem e nos inspiram. Queremos muito mais do que temos coragem. Queremos que tenham coragem para muito, muito mais do que nós algum dia tivemos. As crianças são a promessa de melhor. Por isso lhes cedemos tudo para que a sua felicidade seja intocada. Uma felicidade que é o cimo das montanhas, o extremo do sol, a luz levantada sobre todas as cabeças.

Valter Hugo Mãe

quarta-feira, setembro 27

Recarregando

 


Memória de livros

Aracaju, a cidade onde nós morávamos no fim da década de 40, começo da de 50, era a orgulhosa capital de Sergipe, o menor estado brasileiro (mais ou menos do tamanho da Suíça). Essa distinção, contudo, não lhe tirava o caráter de cidade pequena, provinciana e calma, à boca de um rio e a pouca distância de praias muito bonitas. Sabíamos do mundo pelo rádio, pelos cinejornais que acompanhavam todos os filmes e pelas revistas nacionais. A televisão era tida por muitos como mentira de viajantes, só alguns loucos andavam de avião, comprávamos galinhas vivas e verduras trazidas à nossa porta nas costas de mulas, tínhamos grandes quintais e jardins, meninos não discutiam com adultos, mulheres não usavam calças compridas nem dirigiam automóveis e vivíamos tão longe de tudo que se dizia que, quando o mundo acabasse, só íamos saber uns cinco dias depois.

Mas vivíamos bem. Morávamos sempre em casarões enormes, de grandes portas, varandas e tetos altíssimos, e meu pai, que sempre gostou das últimas novidades tecnológicas, trazia para casa tudo quanto era tipo de geringonça moderna que aparecia. Fomos a primeira família da vizinhança a ter uma geladeira e recebemos visitas para examinar o impressionante armário branco que esfriava tudo. Quando surgiram os primeiros discos long play, já tínhamos a vitrola apropriada e meu pai comprava montanhas de gravações dos clássicos, que ele próprio se recusava a ouvir, mas nos obrigava a escutar e comentar.

Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obsedada por livros e às vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde moramos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela — na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e de todos os tipos. Até mesmo ciências ocultas, assunto que fascinava meu pai e fazia com que ele às vezes se trancasse na companhia de uns desenhos esotéricos, para depois sair e dirigir olhares magnéticos aos circunstantes, só que ninguém ligava e ele desistia temporariamente. Havia uns livros sobre hipnotismo e, depois de ler um deles, hipnotizei um peru que nos tinha sido dado para um Natal e, que, como jamais ninguém lembrou de assá-lo, passou a residir no quintal e, não sei por quê, era conhecido como Lúcio. Minha mãe se impressionou, porque, assim que comecei meus passes hipnóticos, Lúcio estacou, pareceu engolir em seco e ficou paralisado, mas meu pai — talvez porque ele próprio nunca tenha conseguido hipnotizar nada, apesar de inúmeras tentativas — declarou que aquilo não tinha nada com hipnotismo, era porque Lúcio era na verdade uma perua e tinha pensado que eu era o peru.

Não sei bem dizer como aprendi a ler. A circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu convivia com eles todas as horas do dia, a ponto de passar tempos enormes com um deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e, na verdade, se não me trai a vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de que entendia nelas o que inventara. Segundo a crônica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatros anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não aguentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.

– D. Gilete — disse ele, apresentando-me a uma senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo —, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.

“Aplicar as regras”, soube eu muito depois, com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de fato já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis.

– Esses daí agora não — disse ele. — Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são umas porcarias, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias.

Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa — e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.

– Seu filho está doido — disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando. — Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.

– Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro ótimo.

– Ele ontem passou a tarde inteira lendo um dicionário.

– Normalíssimo. Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?

– O Lello.

– Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação.

Sim, tínhamos muitas conversas sobre livros. Durante toda a minha infância, havia dois tipos básicos de leitura lá em casa: a compulsória e a livre, esta última dividida em dois subtipos — a livre propriamente dita e a incerta. A compulsória variava conforme a disposição de meu pai. Havia a leitura em voz alta de poemas, trechos de peças de teatro e discursos clássicos, em que nossa dicção e entonação eram invariavelmente descritas como o pior desgosto que ele tinha na vida. Líamos Homero, Camões, Horácio, Jorge de Lima, Sófocles, Shakespeare, Euclides da Cunha, dezenas de outros. Muitas vezes não entendíamos nada do que líamos, mas gostávamos daquelas palavras sonoras, daqueles conflitos estranhos entre gente de nomes exóticos, e da expressão comovida de minha mãe, com pena de Antígona e torcendo por Heitor na Ilíada. Depois de cada leitura, meu pai fazia sua palestra de rotina sobre nossa ignorância e, andando para cima e para baixo de pijama na varanda, dava uma aula grandiloquente sobre o assunto da leitura, ou sobre o autor do texto, aula esta a que os vizinhos muitas vezes vinham assistir. Também tínhamos os resumos — escritos ou orais — das leituras, as cópias (começadas quando ele, com grande escândalo, descobriu que eu não entendia direito o ponto e vírgula e me obrigou a copiar sermões do Padre Antônio Vieira, para aprender a usar o ponto e vírgula) e os trechos a decorar. No que certamente é um mistério para os psicanalistas, até hoje não só os sermões de Vieira como muitos desses autores forçados pela goela abaixo estão entre minhas leituras favoritas. (Em compensação, continuo ruim de ponto e vírgula.)

Mas o bom mesmo era a leitura livre, inclusive porque oferecia seus perigos. Meu pai usava uma técnica maquiavélica para me convencer a me interessar por certas leituras. A circulação entre os livros permanecia absolutamente livre, mas, de vez em quando, ele brandia um volume no ar e anunciava com veemência:

– Este não pode! Este está proibido! Arranco as orelhas do primeiro que chegar perto deste daqui!

O problema era que não só ele deixava o livro proibido bem à vista, no mesmo lugar de onde o tirara subitamente, como às vezes a proibição era para valer. A incerteza era inevitável e então tínhamos momentos de suspense arrasador (meu pai nunca arrancou as orelhas de ninguém, mas todo mundo achava que, se fosse por uma questão de princípios, ele arrancaria), nos quais lemos Nossa vida sexual do Dr. Fritz Kahn, Romeu e ]ulieta, O livro de San Michele, Crônica escandalosa dos Doze Césares, Salambô, O crime do Padre Amaro — enfim, dezenas de títulos de uma coleção estapafúrdia, cujo único ponto em comum era o medo de passarmos o resto da vida sem orelhas — e hoje penso que li tudo o que ele queria disfarçadamente que eu lesse, embora à custa de sobressaltos e suores frios.

Na área proibida, não pode deixar de ser feita uma menção aos pais de meu pai, meus avós João e Amália. João era português, leitor anticlerical de Guerra Junqueiro e não levava o filho muito a sério intelectualmente, porque os livros que meu pai escrevia eram finos e não ficavam em pé sozinhos. “Isto é merda”, dizia ele, sopesando com desdém uma das monografias jurídicas de meu pai. “Estas tripinhas que não se sustentam em pé não são livros, são uns folhetos.” Já minha avó tinha mais respeito pela produção de meu pai, mas achava que, de tanto estudar altas ciências, ele havia ficado um pouco abobalhado, não entendia nada da vida. Isto foi muito bom para a expansão dos meus horizontes culturais, porque ela não só lia como deixava que eu lesse tudo o que ele não deixava, inclusive revistas policiais oficialmente proibidas para menores. Nas férias escolares, ela ia me buscar para que eu as passasse com ela, e meu pai ficava preocupado.

– D. Amália — dizia ele, tratando-a com cerimônia na esperança de que ela se imbuísse da necessidade de atendê-lo —, o menino vai com a senhora, mas sob uma condição. A senhora não vai deixar que ele fique o dia inteiro deitado, cercado de bolachinhas e docinhos e lendo essas coisas que a senhora lê.

– Senhor doutor — respondia minha avó —, sou avó deste menino e tua mãe. Se te criei mal, Deus me perdoe, foi a inexperiência da juventude. Mas este cá ainda pode ser salvo e não vou deixar que tuas maluquices o infelicitem. Levo o menino sem condição nenhuma e, se insistes, digo-te muito bem o que podes fazer com tuas condições e vê lá se não me respondes, que hoje acordei com a ciática e não vejo a hora de deitar a sombrinha ao lombo de um que se atreva a chatear-me. Passar bem, Senhor doutor.

E assim eu ia para a casa de minha avó Amália, onde ela comentava mais uma vez com meu avô como o filho estudara demais e ficara abestalhado para a vida, e meu avô, que queria que ela saísse para poder beber em paz a cerveja que o médico proibira, tirava um bolo de dinheiro do bolso e nos mandava comprar umas coisitas de ler — Amália tinha razão, se o menino queria ler, que lesse, não havia mal nas leituras, havia em certos leitores. E então saíamos gloriosamente, minha avó e eu, para a maior banca de revistas da cidade, que ficava num parque perto da casa dela e cujo dono já estava acostumado àquela dupla excêntrica. Nós íamos chegando e ele perguntava:

– Uma de cada?

– Uma de cada — confirmava minha avó, passando a superintender, com os olhos brilhando, a colheita de um exemplar de cada revista, proibida ou não proibida, que ia formar uma montanha colorida deslumbrante, num carrinho de mão que talvez o homem tivesse comprado para atender a fregueses como nós. — Mande levar. E agora aos livros!

Depois da banca, naturalmente, vinham os livros. Ela acompanhava certas coleções, histórias de “Raffles, Arsène Lupin”, Ponson du Terrail, Sir Walter Scott, Edgar Wallace, Michel Zevaco, Emilio Salgari, os Dumas e mais uma porção de outros, em edições de sobrecapas extravagantemente coloridas que me deixavam quase sem fôlego. Na livraria, ela não só se servia dos últimos lançamentos de seus favoritos, como se dirigia imperiosamente à seção de literatura para jovens e escolhia livros para mim, geralmente sem ouvir minha opinião — e foi assim que li Karl May, Edgar Rice Burroughs, Robert Louis Stevenson, Swift e tantos mais, num sofá enorme, soterrado por revistas, livros e latas de docinhos e bolachinhas, sem querer fazer mais nada, absolutamente nada, neste mundo encantado. De vez em quando, minha avó e eu mantínhamos tertúlias literárias na sala, comentando nossos vilões favoritos e nosso herói predileto, o Conde de Monte Cristo — Edmond Dantès! — como dizia ela, fremindo num gesto dramático. E meu avô, bebendo cerveja escondido lá dentro, dizia “ai, ai, esses dois se acham letrados, mas nunca leram o Guerra Junqueiro”.

De volta à casa de meus pais, depois das férias, o problema das leituras compulsórias às vezes se agravava, porque meu pai, na certeza (embora nunca desse ousadia de me perguntar) de que minha avó me tinha dado para ler tudo o que ele proibia, entrava numa programação delirante, destinada a limpar os efeitos deletérios das revistas policiais. Sei que parece mentira e não me aborreço com quem não acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos, eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra traduzida de Shakespeare, O elogio da loucura, As décadas de Tito Lívio, D. Quixote (uma das ilustrações de Gustave Doré, mostrando monstros e personagens saindo dos livros de cavalaria do fidalgo, me fez mal, porque eu passei a ver as mesmas coisas saindo dos livros da casa), adaptações especiais do Fausto e da Divina comédia, a Ilíada, a Odisseia, vários ensaios de Montaigne, Poe, Alexandre Herculano, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Dickens, Dostoievski, Suetônio, os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola e mais não sei quantos outros clássicos, muitos deles resumidos, discutidos ou simplesmente lembrados em conversas inflamadas, dos quais nunca me esqueço e a maior parte dos quais faz parte íntima de minha vida.

Fico pensando nisso e me pergunto: não estou imaginando coisas, tudo isso poderia ter realmente acontecido? Terei tido uma infância normal? Acho que sim, também joguei bola, tomei banho nu no rio, subi em árvores e acreditei em Papai Noel. Os livros eram uma brincadeira como outra qualquer, embora certamente a melhor de todas. Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que se entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju.
João Ubaldo Ribeiro

Vídeo-tape da insônia

Da casa em que nasci não me lembro nada. Contam que via o demônio e o apontava na parede, alvoroçadamente, como se fora um anjo. Minha vida começa em Saúde, arraial de minha infância, de onde me surgem as estampas essenciais: brincando com Íris no jardim; Íris no caixão sobre a mesa escura; a notícia do assassinato de meu tio Arquimedes, chegada cautelosamente no serão familiar; seu Rodolfo Caçador com sua perna de pau (derrubou o cacho de cocos com um tiro); minha mão de revólver procurando ladrão no quintal; o leproso dos Correios que comia ovos cozidos; meu encontro com a morte do tuberculoso na casa desconhecida; o guizo da mula sem cabeça tilintando na várzea.

Sempre parti sem pena. Ainda hoje é a mesma emoção, uma alegria doloridamente física, uma névoa infantil nos olhos, imitando as lágrimas. Da infância não trouxe no coração uma saudade direta, e tive terror dos mascarados e do batuque noturno dos tambores.

Em Belo Horizonte, ao grito de “avião! avião!”, corria para a rua numa agitação de fim de mundo. Quantas tristezas de sexo precoce eu tive, sentindo, como um alarme, a violência do corpo.

As primeiras letras. Meu ódio à disciplina. O mistério do pátio das meninas. Minha primeira paixão chamava-se Maria e usava tranças. Minha segunda paixão era Maria e tinha olhos bonitos. As fitas em série aos domingos: O grande guerreiro! Bob Steele! Buck Jones!Ruas de Nova Iorque! Tempestade sobre a Ásia! A importância de retirar um livro da biblioteca pública!

Quando veio a Revolução de 30, estava de braço quebrado. As negras se arrastavam da Barroca até a Serra e aí chegavam famintas, esfarrapadas, apavoradas. Meu pai comprava e distribuía alimentos no armazém. Da caixa-d’água vi um avião bombardear o quartel.

Nossas molecagens! Nossas maldades! As brigas da nossa quadrilha! As árvores não cresciam em nossas ruas, a grama não pegava nos jardins, as lâmpadas não ficavam acesas nos postes. A mão imensa e brutal do padre alemão.

Aos onze anos, fugi de casa. Em companhia de Georges e Aristeu, demandei Goiás para viver com os índios. A primeira sede violenta. O desconhecido amedrontando e tentando. Cardoso, velho lenheiro, nos deu em sua choupana cama de palha, café com broa e conselhos mansos: “Acho que vocês vão dar uma estopada, meninos: o mundo é grande e mau”.

Reprovado no primeiro ano ginasial, fui mandado para o colégio interno. Lágrimas convulsas na primeira noite. Conheço a pusilanimidade, a traição, a delação, a covardia, a bofetada de um padre. Feroz é coração da infância. Um pátio com uma paineira e um retângulo de estrelas. A saudade à hora do crepúsculo estragou-me os outros crepúsculos. Dramas do sexo e da afeição tiveram apenas o testemunho irreal dos professores. Rebeldia, medo do inferno, sensibilidade ― tudo me fez a vida até hoje infeliz. No segundo ano, segundo a linguagem salesiana, comecei a ficar tíbio; participava da Société Impieté.

Não esqueço as férias e o esperar por elas, quando a primeira horda de bichinhos de luz invadia o estudo da noite. Não esqueço nada que haja escapado à vigilância, nenhuma rebeldia, alunos que desafiavam professores, os que fugiam e levavam nossos votos de boa sorte, o ridículo, a oratória besta, a vaidade, a crueldade, a raposice dos pedagogos. Não esquecerei nada. Seu João Maria me chamava de Laplace: não me puniu quando me viu roubar laranja. Obrigado, João Maria. Seu Vicente era manso e consolava os que choram. Seu Gilberto era um ótimo sujeito. Era suave o perfume do eucalipto, suave era o ar, doces eram as ameixas, ásperos e belos eram os caminhos da montanha. Coisas da natureza, obrigado. Obrigado, amigos meus. Que contentamento deixar Dom Bosco e seus fantasmas! Ah! Se pudesse levar comigo o aroma das resinas! Que contentamento tomar o trem na antiga Hargreaves e voltar! Que alvoroço de abelhas voltar! As férias vão terminar como sempre e o pórtico negro que me espera é ainda mais negro do que o outro.

Em São João del-Rei conheci sadios holandeses franciscanos e várias liberdades desconhecidas. Os primeiros amigos mortos a desfiar um rosário de tristezas minhas. Aplicação e desprezo pelos estudos, uma adivinhação de poesia nos florilégios estúpidos, frustradas inquietações políticas e patrióticas. A voz grossa e rápida de Frei Rufino, a vaguidão de Frei Lau querendo escrever com o charuto, o irrepreensível Frei Noberto, coisas inocentes que gelam dentro de mim um bloco irremovível.

Em dez meses de estudos bélicos, de marchas, ordem unida, maneabilidade, manobrando fuzis e metralhadoras, não descobri dentro de mim o soldado. Fui definitivamente um paisano.

Elza era delicada e ia ser dentista. Uma judia guardei como lembrança de perfeição adolescente. E as decaídas inesquecíveis: são ásperas e conservam purezas intratáveis.

A adolescência é um tribunal inesperado: o julgamento do pai pelo filho, o julgamento do filho pelo pai. Nesse conflito de culpas, apreensões e incertezas está o mistério dos caminhos da vida, sempre errados. Toda a perplexidade do homem cabe no encontro do pai e do filho, quando se encaram com um rancor de acusados à luz da madrugada. Cabe às mulheres a melhor parte do amor e do sofrimento porque as mães não podem julgar, e este é o mais linear dos mistérios.

Folha morta, déçà délà, fui arrastado pelas ruas da madrugada. Havia um poder suicida em cada coisa.

Já não entendo teu clamor, ó confusa adolescência. Morreu contigo o sol denso da tragédia. Morreu contigo o pássaro rubro amigo de meu ombro. Morreu contigo meu inconformismo cruel, minha dignidade na desgraça. Contigo a parte de mim mais infeliz e fiel.
Paulo Mendes Campos, Manchete, 12/12/1970

terça-feira, setembro 26

Leitura vem de berço

 


A céu aberto

Dessas costas vazias me restou, sobretudo, a abundância de céu. Mais de uma vez me senti diminuído sob esse céu dilatado: na praia amarela, éramos como formigas no centro de um deserto. E se, agora que sou velho, passo meus dias nas cidades, é porque nelas a vida é horizontal, porque as cidades dissimulam o céu. Lá, de noite, ao contrário, dormíamos a céu aberto, quase achatados pelas estrelas. Estavam como ao alcance da mão e eram grandes, inumeráveis, sem muito negrume entre uma e outra, quase faiscantes, como se o céu tivesse sido a parede perfurada de um vulcão em atividade, que deixasse entrever, por seus orifícios, a incandescência interna.

Juan José Saer, "O enteado"

As três experiências

Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O “amar os outros” é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.

E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.

Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha estarei cumprindo o destino de todas as mulheres.

Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.

Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.
Espero em Deus não viver do passado. Ter sempre o tempo presente e, mesmo ilusório, ter algo no futuro.

O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna. E depois morrer vai ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será um dos atos mais importantes da minha vida. Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte.

Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem. Eu queria que houvesse encarnação: que eu renascesse depois de morta e desse a minha alma viva para uma pessoa nova. Eu queria, no entanto, um aviso. Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que nesta encarnação fui eu que os escrevi.

Está-me faltando um aviso, um sinal. Virá como intuição? Virá ao abrir um livro? Virá esse sinal quando eu estiver ouvindo música?

Uma das coisas mais solitárias que eu conheço é não ter a premonição.

Clarice Lispector, "Crônicas para jovens: de escrita e vida"

Na cabeceira do rio

Ouviu a queixa do rio e prometeu salvá-lo. Dali por diante ninguém mais despejaria monturo em suas águas. Contratou vigilantes, e ele próprio não fazia outra coisa senão postar-se à margem, espingarda a tiracolo, defendendo a pureza da linfa.

Seus auxiliares denunciaram que alguém, nas nascentes, turvava a água. Foi lá e verificou que um casal de micos se divertia corrompendo de todas as maneiras o fio d’água. Os animais fugiram para reaparecer à noite. E explicaram, antes que levassem tiro na barriga:

— Não fazemos por mal, apenas brincamos. Que pode um mico fazer para se divertir, senão imitar vocês?

— A mim vocês não imitam, pois estou justamente lutando para proteger este rio.

— Já não se pode nem imitar — observaram os micos, fugindo outra vez. — O homem é um animal impossível. Agora deu para fazer o contrário.
Carlos Drummond de Andrade, "Contos plausíveis"

Os tristes descaminhos

Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco - e pelo menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, porque o que é que adianta ver?

São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências - e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? - que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? - que esperança!

Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios - palha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.

Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?

No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?

São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? - que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.

Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.

Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.

Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.

segunda-feira, setembro 25

Leitura para todos

 


Os perigos desta vida

Viver é muito perigoso… Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério — foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo… Seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro — grande homem príncipe! — era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo prêço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó — severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o “Urutú-Branco”? Ah, não me fale. Ah, esse… tristonho levado, que foi — que era um pobre menino do destino…

Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar — Deus espera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca — e afia — que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo — um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta…

Guimarães Rosa, "Grande sertão: veredas"

A nossa garça

Penso que têm nostalgia de mar estas garças pantaneiras. São viúvas de Xaraés? Alguma coisa em azul e profundidade lhes foi arrancada. Há uma sombra de dor em seus voos. Assim, quando vão de regresso aos seus ninhos, enchem de entardecer os campos e os homens.

Sobre a dor dessa ave há uma outra versão, que eu sei. É a de não ser ela uma ave canora. Pois que só grasna — como quem rasga uma palavra.

De cantos portanto não é que se faz a beleza desses pássaros. Mas de cores e movimentos. Lembram Modigliani. Produzem no céu iluminuras. E propõem esculturas no ar.

A Elegância e o Branco devem muito às garças.

Chegam de onde a beleza nasceu?

Nos seus olhos nublados eu vejo a flora dos corixos.

Insetos de camalotes florejam de suas rêmiges. E andam pregadas em suas carnes larvas de sapos.

Aqui seu voo adquire raízes de brejo. Sua arte de ver caracóis nos escuros da lama é um dom de brancura.

À força de brancuras a garça se escora em versos com lodo?

(Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garças. Insinuando contrastes — ou conciliações? — entre o puro e o impuro etc. etc. Não estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre!)

Manoel de Barros, "Meu quintal é maior do que o mundo"

Daquelas coincidências

Algumas dessas histórias são, talvez, politicamente incorretas. No dia 16 de julho de 1945, os EUA cometeram o primeiro teste nuclear, no deserto de Nevada. Um membro da tribo local, os peiutes, comunicando-se por sinais de fumaça com um colega da montanha vizinha, viu subir ao longe o cogumelo atômico e exclamou: "Era isso o que eu queria dizer!!!".

Três semanas depois, no exato momento em que os americanos despejaram a bomba sobre Hiroshima, um japonês numa cidade próxima deu a descarga em seu banheiro, escutou a explosão e achou que tinha sido o causador da tragédia.

Essas coincidências acontecem. Aqui no Rio, um marinheiro irlandês bebum, o que lhe dava terrível sentimento de culpa, desceu do navio na praça Mauá e saiu para conhecer a noite carioca. Assim que pôs o pé em terra, um Cristo gigante iluminado surgiu de repente no céu aos seus olhos. Atônito, ele viu ali uma mensagem. Voltou para o navio e nunca mais bebeu. Era a noite de 12 de outubro de 1931, e o Cristo do Corcovado estava sendo aceso pela primeira vez, por um sinal elétrico disparado à distância.

Caso parecido foi o de Little Richard, o pioneiro do rock and roll. Ao se apresentar no Alasca, no dia 4 de outubro de 1957, viu uma bola de fogo no céu e também enxergou naquilo um aviso. Paralisou sua carreira no ato e se tornou um devoto da seita Renascer em Cristo. Só voltou aos palcos cinco anos depois, quando lhe provaram que a bola de fogo tinha sido o satélite soviético Sputnik 1, lançado ali perto, às 22h28, hora Moscou.

Eu próprio já fui bafejado por uma dessas coincidências. Há anos, num antiquário em Copacabana, pensando começar mais uma coleção inútil, comprei uma antiga bengala com cabo de marfim. Ao sair da loja, pisei de mau jeito na calçada e torci feio o pé. A dor era horrível e ficou muito difícil caminhar. Por sorte, eu acabara de comprar uma bengala.

Ulisses


Era uma vez... Era uma vez: eu!

Mas aposto que você não sabe quem sou eu.

Prepare-se para uma surpresa que você nem adivinha.

Sabe quem sou eu? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice.

Eu fico latindo para Clarice e ela - que entende o significado de meus latidos - escreve o que eu lhe conto. Por exemplo, eu fiz uma viagem para o quintal de outra casa e contei a Clarice uma história bem latida, resultado de uma observação minha sobre essa casa.

Antes de tudo, vou me apresentar melhor.

Dizem que sou bonito e sabido. Bonito parece que sou. Tenho um pêlo castanho, cor de guaraná. Mas, sobretudo, tenho olhos que todos admiram: são dourados.

Minha dona não quis cortar o meu rabo porque acha que cortar seria contra a natureza.

Dizem assim: "Ulisses tem um olhar de gente".

Gosto muito de me deitar de costas para coçarem minha barriga.

Mas, sabido, sou apenas na hora de latir palavras.

Sou um pouco malcriado, não obedeço sempre, gosto de fazer o que quero.

Fora disso, sou um cachorro quase normal. Ah, esqueci de dizer que sou um cachorro mágico: adivinho tudo pelo cheiro. Isto se chama ter faro. No quintal onde estive hospedado cheirei tudo, figueira, galo, galinha etc.

Se você chamar: "Ulisses, vem cá" - eu vou correndo e latindo para o seu lado, porque gosto muito de criança, e só mordo quando me batem.

Pois não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade? Só é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu.

Clarice Lispector, "Quase de verdade"

domingo, setembro 24

Conto Verde

Estranha é a cabeça das pessoas.

Uma vez, em São Paulo, morei numa rua que era dominada por uma árvore incrível. Na época de floração, ela enchia a calçada de cores. Para usar um lugar-comum, ficava sobre o passeio um verdadeiro tapete de flores; esquecíamos o cinza que nos envolvia e vinha do asfalto, do concreto, do cimento, os elementos característicos desta cidade.


Percebi, certo dia, que a árvore começava a morrer. Secava lentamente, até que amanheceu inerte, em folha. "É um ciclo, ela renascerá", comentávamos no bar ou na padaria. Não voltou. Pedi ao Instituto Botânico que analisasse a árvore, e o técnico concluiu: fora envenenada.

Surpresos, nós, os moradores da rua, que tínhamos a árvore como verdadeiro símbolo, começamos a nos lembrar de uma vizinha de meia-idade que todas as manhãs estava ao pé da árvore com um regador. Cheios de suspeitas, fomos até ela, indagamos, e ela respondeu com calma, os olhos brilhando, agressivos e irritados:

- Matei mesmo aquela maldita árvore.

- Por quê?

- Porque na época da flor ela sujava minha calçada, eu vivia varrendo essas flores desgraçadas.
Ignácio de Loyola Brandão

Leitura para os pobres

 


O menino e o velho

Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy.

Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d'água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho.

Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa - foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar.

Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta.

Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada.

Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto.

No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou!...

Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada.
Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo.
Lygia Fagundes Telles, "Invenção e memória"

Procura-se fugitivo em Ipanema

Avisa-se às pessoas de bem que um mimoso bicudo desapareceu da casa de seu amo e senhor no bairro de Ipanema. O fugitivo ainda é jovem e não atingiu a idade em que se torna preto de bico branco.

Come alpiste e vários outros alimentos, mas tem uma fraqueza especial por sementes de cânhamo. Quando estas sementes lhe são oferecidas pela manhã, ele vem comer na mão; mas uma vez alimentado não convém introduzir nem a mão nem um dedo sequer na gaiola, pois o intruso será recebido com uma forte bicada. Há muito, entretanto, ele não tem a sua semente predileta, pois as autoridades (in) competentes descobriram que o citado cânhamo, em latim Cannabis sativa, é a mesma espécie cuja resina produz efeitos estupefacientes quando as plantas são dissecadas e trituradas por pessoas viciosas para obter o produto vulgarmente chamado maconha.

Meu bicudo é, de seu natural, desconfiado e valente, já tendo derrotado em pelejas memoráveis dois canários-da-terra e um grande pássaro-preto. É também muito ciumento, pois parou de cantar desde o dia em que o referido pássaro-preto foi admitido na mesma varanda onde reside e começou a cantar alto e desafinadamente.

Apesar de seu natural aguerrido, é propenso a folguedos juvenis. Qualquer objeto estranho que se coloque na gaiola é inicialmente examinado de longe, primeiro com o olho esquerdo, depois com o direito. Depois é examinado mais de perto, e afinal recebe uma bicada.

Se o objeto não reage, e é leve, é logo transformado em brinquedo; pedaços de barbante, principalmente coloridos, são de agrado especial.

Dispondo de água limpa, o fugitivo se banha diariamente, e no rigor do verão mais de uma vez por dia; já atingiu o nível de educação em que não procura se banhar no bebedouro nem beber a água destinada ao banho. Depois do banho faz sua meticulosa toalete com o bico e coca várias vezes a orelha com a patinha.
Quando está dormindo e é despertado demonstra um terrível mau humor e se posta em atitude de defesa, de bico aberto, produzindo um grasnar semelhante ao de uma galinha choca.

Bem tratado é, entretanto, capaz de gestos suaves e atitudes distintas.

O fugitivo foi criado na roça e não conhece a topografia do Rio de Janeiro, de maneira que dificilmente voltará a sua varanda. Caso ele venha a cair em algum alçapão, a pessoa que o encontrar fará obra caridosa devolvendo-o ao seu dono, que é homem já de certa idade, com a vida esburacada de tristezas e desilusões, não possuindo gato, nem mulher, nem cachorro por falta de espaço no lar.
O dono desolado antecipadamente agradece.
Rubem Braga, "Recado de primavera"

sexta-feira, setembro 22

Balanço aéreo

 


Árvores

As árvores sempre foram para mim os oradores mais convincentes. Eu as venero entre suas famílias e povos, as florestas e os bosques, mas, ainda mais as adoro quando estão a sós. Então são como os seres solitários, mas não como eremitas que por causa de alguma fraqueza se isolaram, mas como os grandes homens solitários: como Beethoven e Nietzsche. Em suas copas cicia o mundo, suas raízes jazem no infinito. Solitárias, elas não se perdem, senão com toda a força de seu ser procuram a única meta, preencher a sua própria lei desenvolvendo suas formas e se autorrepresentando. Não existe nada mais santo, mais exemplar do que uma bela e forte árvore. Quando uma árvore é cortada e seu ferimento mortal fica exposto ao sol, então é possível ler-se em seu toco, que ao mesmo tempo lhe serve como lápide, toda a sua história. Quem sabe como falar-lhes, ouví-las, esse conhece a verdade. Elas não pregam ensinamentos e receitas, pregam isoladamente a primária lei da vida.


Uma árvore diz: eu trago em mim uma luz, um pensamento, um âmago, pois eu sou a vida da vida eterna. Vivo o segredo da minha semente até o fim, além disso nada mais me preocupa. Eu tenho a certeza de ter Deus em mim e que a minha missão é santa e dessa confiança vivo.

Quando estamos tristes, sem mais nenhuma vontade de aturar a vida, então uma árvore pode falar conosco. Ela dirá: Calma, calma! Olhe-me! Viver não é fácil, mas nem tão difícil, pensamentos assim são criancice, cale, deixe que Deus fale em você.

Quem já aprendeu a ouvir uma árvore não deseja mais ser uma, não desejará ser nada mais do que é e isso é a pátria, a felicidade.

Hermann Hesse, "Caminhada"