terça-feira, setembro 19

É preciso restaurar o Homem

Quem vê nisso uma doutrina de fraco? O chefe é responsável por tudo. Ele diz: Fui vencido. Ele não diz: “Meus soldados foram vencidos”. O verdadeiro homem fala assim. Hochedé diria: Eu sou responsável.

Compreendo o sentido da humildade. Ela não é um aviltamento de si. É o próprio princípio da ação. Se, com o intuito de absolver-me, justifico meus infortúnios pela fatalidade, submeto-me à fatalidade. Se os justifico pela traição, submeto-me à traição. Mas se assumo o erro, reivindico meu poder de homem. Posso agir sobre aquilo que sou. Sou parte constituinte da comunidade dos homens.

Há, então, alguém em mim que combato para crescer. Foi necessária essa viagem difícil para que distinguisse em mim, de um jeito ou de outro, o indivíduo que eu combato do homem que amadurece. Não sei o que vale a imagem que me vem, mas penso: o indivíduo é apenas uma via. Só importa o Homem que a emprega.
Já não posso me satisfazer com verdades de polêmica. De nada serve acusar os indivíduos. Eles são apenas vias e passagens. Não posso mais justificar o enregelamento de minhas metralhadoras por negligências de funcionários, nem a ausência de povos amigos por seu egoísmo. A derrota, decerto, se exprime por falhas individuais. Mas uma civilização molda os homens. Se aquela a que julgo pertencer está ameaçada pela derrota dos indivíduos, tenho o direito de perguntar-me por que ela não os forjou diferentemente.

Uma civilização, assim como uma religião, acusa a si mesma se deplora a moleza dos fiéis. Cabe-lhe exaltá-los. O mesmo vale se deplora o ódio dos infiéis. Cabe-lhe convertê-los. Entretanto, a minha, que outrora passou suas provações, inflamou seus apóstolos, arrebentou os violentos, libertou povos escravos, não soube, hoje, nem exaltar nem converter. Se desejo arrancar a raiz das diversas causas de minha derrota, se tenho ambição de reviver, devo reencontrar primeiro o fermento que perdi.

Pois acontece numa civilização como para o trigo. O trigo nutre o homem, mas o homem, por sua vez, salva o trigo, cuja semente ele armazena. A reserva de grãos é respeitada, de geração de trigo para geração de trigo, como uma herança.
Não me basta saber qual trigo desejo para que ele germine. Se quero salvar um tipo de homem — e seu poder — devo salvar também os princípios que o fundam.
Todavia, se conservei a imagem da civilização que reivindico como minha, perdi as regras que a transportavam. Descubro esta noite que as palavras que usava não tocavam mais o essencial. Eu pregava assim a Democracia, sem suspeitar que enunciava, com isso, sobre as qualidades e a sorte do homem, não mais o conjunto de regras, mas um conjunto de aspirações. Desejava que os homens fossem fraternos, livres e felizes. Claro. Quem não concorda? Sabia expor “como” deve ser o homem. E não “quem” ele deve ser.

Falava, sem precisar as palavras, da comunidade dos homens. Como se o clima ao qual fazia alusão não fosse fruto de uma arquitetura particular. Parecia-me evocar uma evidência natural. Não há evidência natural. Uma tropa fascista, um mercado de escravos são, também, comunidades de homens.

Eu não habitava mais essa comunidade dos homens como arquiteto. Beneficiava-me de sua paz, sua tolerância, seu bem-estar. Não sabia nada a seu respeito, senão que estava instalado nela. Estava nela como sacristão ou como um papa-hóstias. Ou seja, parasita. Ou seja, vencido.

Assim são os passageiros de um navio. Usam o navio sem nada lhe dar. Ao abrigo dos salões, que eles tomam por cenário absoluto, prosseguem com seus jogos. Ignoram o trabalho das meias-naus sob o peso eterno do mar. Que direito reclamarão se a tempestade desmantelar seu navio?


Se os indivíduos se abastardaram, se fui vencido, do que vou reclamar?

Há um denominador comum com as qualidades que desejo aos homens de minha civilização. Há uma pedra angular na comunidade particular que eles devem fundar. Há um princípio de onde tudo saiu outrora, raízes, tronco, galhos e frutos. Qual é ele? Ele era grão potente no adubo dos homens. Só este me pode fazer vencedor.


Parece-me que compreendo muitas coisas na minha estranha noite de vila. O silêncio é de uma qualidade extraordinária. O mínimo ruído preenche o espaço inteiro, como um sino. Nada me é desconhecido. Nem esse lamento de gado, nem esse apelo longínquo, nem esse barulho de uma porta que se fecha. Tudo acontece como em mim mesmo. Não é preciso apressar-me em captar o sentido de um sentimento que pode esmaecer…

Eu penso: “É o tiro de Arras…”. O tiro rachou uma casca. Neste dia inteiro, eu certamente preparei em mim a morada. Eu era apenas um gerente resmungão. O indivíduo é isso. Mas o Homem surgiu. Ele se instalou em meu lugar, simplesmente. Olhou a multidão amontoada, e viu um povo. Seu povo. O Homem, denominador comum entre mim e esse povo. É por isso que, correndo para o Grupo, parecia-me correr a um grande fogo. O Homem olhava através dos meus olhos o homem denominador comum dos camaradas.


Seria um sinal? Estou a ponto de crer nos sinais… Tudo é, esta noite, entendimento tácito. Qualquer barulho me atinge como uma mensagem límpida e ao mesmo tempo obscura. Ouço um passo tranquilo preencher a noite:

— Ei, boa noite, Capitão…

— Boa noite!

Não o conheço. Foi entre nós como um “oi” de bateleiros, de uma barca a outra.
Ainda uma vez tive o sentimento de um miraculoso parentesco. O Homem que me habita esta noite não cessa de enumerar os seus. O Homem denominador comum dos povos e das raças…

Ele voltava, aquele ali, com sua provisão de preocupações, de pensamentos e de imagens. Com sua carga própria, encerrada dentro de si. Poderia tê-lo abordado e falado com ele. Na pureza de uma senda de vila, teríamos trocado algumas de nossas lembranças. Assim, os comerciantes trocam tesouros, caso se cruzem, retornando das ilhas.

Em minha civilização, aquele que difere de mim, longe de me lesar, enriquece-me. Nossa unidade, acima de nós, funda-se no Homem. Assim, nossas conversas à noite, no Grupo 2/33, longe de prejudicar nossa fraternidade, a apoiam, pois ninguém deseja ouvir seu próprio eco, nem olhar-se num espelho.

No Homem se encontram, também, os Franceses da França e os Noruegueses da Noruega. O Homem os liga em sua unidade, ao mesmo tempo que exalta, sem contradizer-se, seus costumes particulares. A árvore também se exprime, por galhos que não se parecem com as raízes. Se, então, lá, escrevem-se contos sobre a neve, se tulipas são cultivadas na Holanda, se flamencos se improvisam na Espanha, estamos todos enriquecidos no Homem. É talvez por isso que desejemos, nós do Grupo, combater pela Noruega…


E eis que me parece chegar ao termo de uma longa peregrinação. Não descubro nada, mas, como o despertar de um sono, revejo simplesmente o que eu não olhava mais.

Minha civilização repousa sobre o culto do Homem através dos indivíduos. Elaentou, por séculos, mostrar o Homem, como se tivesse ensinado a distinguir uma catedral através das pedras. Ela pregou esse Homem que dominava o indivíduo…

Pois o Homem de minha civilização não se define a partir dos homens. São os homens que se definem por ele. Há nele, como em todo Ser, alguma coisa que a matéria que o compõe não explica. Uma catedral é bem diferente de uma soma de pedras. É geometria e arquitetura. Não são as pedras que a definem, é ela que enriquece as pedras com seu próprio significado. Essas pedras são enobrecidas por serem pedras de uma catedral. As pedras mais diversas contribuem para sua unidade. A catedral absorve até as carrancas mais careteiras em seu cântico.

Mas, pouco a pouco, esqueci a minha verdade. Eu acreditei que o Homem resumia os homens, como a Pedra resume as pedras. Confundi a catedral e a soma de pedras e, pouco a pouco, a herança desvaneceu. É preciso restaurar o Homem. É ele a essência de minha cultura. É ele a chave de minha Comunidade. É ele o princípio da minha vitória.
Antoine de Saint-Exupéry, "Piloto de Guerra"

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