Alertaram meu bisavô que iriam invadir as casas dos italianos e quebrar tudo. Ele, um homem culto, pacífico e elegante, balançando as mãos postas à altura do peito, perguntou ao vizinho:
— Ma perchè?
O tal sujeito, que se dizia comunista trotskista, aproveitou-se:
— Ah! Estamos numa guerra, numa luta de classes. O senhor é italiano; italiano é fascista. Logo, o senhor é inimigo do povo.
Meu bisavô soltou um palavrão e foi se instruir sobre o que ouvira. Da nacionalidade não tinha dúvidas; chegara a Santos no vapor “Espagne” com outras famílias oriundas da Toscana fugindo da fome. Mas, “fascista”, só tinha ouvido falar. Remexeu jornais antigos, folheou livros e trocou ideias com o vigário da paróquia de Santa Efigênia. Daí, concluiu: não era fascista; achava Mussolini um falastrão. Detestava política e políticos; amava os vinhos, a ópera, a música, Dante Alighieri e as morenas brasileiras.
Correu os olhos pela propriedade e fez um rápido inventário. A casa era modesta, porém digna e sempre bem arrumada. No fundo havia o quintal, sem cercas, confundindo-se com a paisagem bucólica da Serra. Foi de lá que ouviu o berro familiar da Carmela:
—Bééééé!
Aí seu coração apertou. Carmela era uma das três cabras que habitavam seus domínios e o abasteciam de leite para o queijo de sabor forte – um dos poucos luxos que mantinha. As outras eram Bela e Fiorela, três nomes italianos inspirados no som “é” prolongado, imitando o berro dos bichos. Bastava que meu bisavô gritasse “Béééla, Carméééla, Fioréééla!” para que as cabras viessem correndo, balançando os sinos dos pescoços.
Por perto também andava Benedito, um robusto bode nacional e senhor exclusivo do harém, desfrutando da miscigenação das raças sem preconceitos. Meu bisavô acariciou o pelo macio da cabrita e decidiu-se: ali ninguém entraria nem tocaria nos seus animais.
Segundo cochichavam, a invasão e o saque das casas das famílias italianas e alemãs seria no Sete de Setembro, data simbólica. Nesse dia, meu bisavô levantou-se cedo, ordenhou suas cabras e, ao invés de soltá-las como de costume, fechou-as no curral. Em seguida, tomou banho, aparou a barba grisalha, perfumou-se. Daí, vestiu seu terno branco de linho e caprichou no laço da gravata de seda. Foi à cozinha e arrastou uma das cadeiras pesadas até o portão de ferro da rua Pouso Alto. Assentou-se com a bengala ao colo, escoltado por Benedito, única companhia que se permitiu, já que a situação era pra machos.
— Daqui não passam, Benedetto – disse ao bode. E plantou-se na calçada, impassível, até à noite.
O nacionalismo exacerbado e beligerante felizmente ficou restrito ao desfile militar e, afinal, ninguém perturbou meu bisavô e suas cabras. De resto, não demorou até que a guerra acabasse na Europa; todos comemoraram com foguetes, cerveja e abraços patrióticos.
Alguns anos depois corri de pés descalços pelas mesmas trilhas de Bela, Carmela e Fiorela, apanhando goiabas e nadando nos córregos da Serra. Meus companheiros tinham sobrenomes esquisitos: Wilke, Scotti, Mattar, Shimba, Jeolás, Grisi, Brant, Polizzi. Era uma nova geração de brasileiros que subia o morro para jogar futebol com os meninos das favelas do Pendura Saia e do Pau Comeu. De coração aberto, sem medo, tínhamos nossa própria ideologia e não nos importavam território, raça, cor ou religião. Ninguém era nada. Éramos só amigos.
Fernando Fabbrini
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