E as mangueiras, que deixamos com alguns palmos de altura, enchem de sombra braças de chão; e o cajueiro de seis meses caiu com o vento e assim mesmo deitado cresceu e engrossou, já sem fazer diferença, com tanto tronco e tanta resina velha, dos cajueiros mais antigos que estão aqui diz que desde os tempos dos índios.
Os cachorros não são mais os cachorros antigos, nem se conhece a origem do casal de gatinhos que miam ao pé do fogão, tão mais donos da casa, os pequenos intrusos, do que nós próprios, que a ajudamos a construir com as nossas mãos. As laranjeiras não têm flor e em vão se aspira o ar procurando a única coisa que pode evocar o nome de primavera nestas latitudes quase equatoriais: o cheiro do laranjal. Lá está quebrado, junto ao banheiro velho, o coqueiro onde cantava a nossa graúna de estimação que o morcego degolou há vinte anos atrás. Degolada também vê-se no armário da sala a compoteira de cristal da minha avó, quebrada no fim da haste esguia como uma rosa decepada bem perto da corola.
Contudo, o que mais mudou é o que aparentemente não mudou nada. No açude velho, por exemplo, a água é nova; e quanta água nova já o encheu, já se evaporou, já correu pelo sangradouro, desde o tempo em que nele nos banhávamos? Aguapés que nós moças arrancávamos e tecíamos em colares, sereis avós, bisavós ou apenas antepassadas remotas dessas que hoje abrem a corola leitosa de cheiro doce na penumbra da boca da noite? E já que falamos em linhagens ― quantas gerações de piabas descobriremos que se sucederam em dez anos, se quisermos apurar direito a genealogia destas piabas de agora que nos rodeiam na água e nos beliscam as pernas, com a impudência, o atrevimento cândido que nem a passagem dessas centenas de gerações, nem lei nenhuma de evolução consegue alterar? Quantas saíram do ovo, simples fio gelatinoso dentro da água, e depois de comer e engordar se fizeram piabas adultas e amaram outra piaba, e tiveram filhos e por fim morreram? E tal como as piabas são as formigas tracuás, presentes em toda parte, e os aruás encaramujados nos degraus do banheiro do açude, e libélulas que lambem a água e tremulam as asas ao sol. Nada é o mesmo. Tudo parece o mesmo mas a verdade é que nada é o mesmo. Do que houve e já passou só resta a cópia em série das gerações seguintes ― e as folhas dos manacás, e os insetos, e os bichos grandes e os patos que pescam na água parada debaixo do carnaubal ― tudo é novo. Por isso que ao chegar e ao correr de coisa em coisa ― tudo aparentemente igual e imutável ― o primeiro e obscuro sentimento que nos atinge é de saudade, uma saudade que de início não se explica direito. Só aos poucos compreendemos que a vida da gente é comprida demais em comparação com a curta vida de quase tudo que amamos, seja um cachorro, uma planta ou um passarinho.
*
E carecemos de nos habituar à casa velha como se se tratasse de chegada em casa nova e desconhecida. Pois isso mesmo é o que ela é: nova e desconhecida. A sua própria velhice é uma novidade acrescentada ao novinho em folha das pinturas e da telha, no nosso tempo. Iguais são só as aparências; a realidade essencial de tudo mudou completamente. E correndo os quatro cantos do casarão e do pomar, no nosso coração se renova a sensação pungente e nunca mais esquecida do dia em que cruzamos na rua com a filha adolescente da nossa amiga de infância. Íamos nos dirigindo para ela de braços abertos, no alvoroço daquela semelhança que fazia do encontro primeiro um real reencontro. E eis que a moça passa por nós sem uma pausa de reconhecimento, indiferente, estranha, deslizando por nós o olhar ignorante, como luz pela vidraça ― simples cópia em carne e osso da amiga de infância que nos amou e que era quase nossa irmã e há tantos anos está morta debaixo do chão. Mortas ambas aliás ― a amiga e a infância.
Rachel de Queiroz
Nenhum comentário:
Postar um comentário