Após os bombardeamentos, a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes era chão é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente, nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs, dona Teófila pede ao marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente e faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.
Ao fim da tarde, quando o calor amaina, o casal sai dos seus escombros privados e atravessa em silêncio a defunta paisagem. Com passo trémulo, Diamantino empurra a cadeira de rodas, guiado pelas instruções murmuradas com firmeza pela esposa. Protegida por um sombreiro, a velha senhora vai sentada como se as ruínas fossem o seu reino, a cadeira fosse o seu trono, e Diamantino fosse o seu povo.
– Devagar, Diamantinho – comanda Teófila. E acrescenta – Estás farto de saber que esta poeira é um veneno – O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a boca e o nariz.
Desde os bombardeamentos que não chove, nem sopra a mais ténue brisa. Os sulcos das rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a perpétua poeira dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a pegada se torna eterna.
O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos vizinhos, os Pimentas. Ali se senta Dona Teófila numa mutilada sombra enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido. Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz regressar à realidade.
– Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro, está tudo morto, mais do que morto – vai avisando Diamantino. E depois, entediado, ele reclama – Porque tanto insistes em falar de mim, mulher?
– Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes – responde Teófila.
Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma. Apesar desse céu fechado – de onde para sempre se ausentou o sol e a lua – Dona Teófila não abdica do seu guarda sol. Protege-se, diz ela, da poeira que cai das nuvens.
– Os pássaros já começaram a voltar – afirma Teófila. – Gostava que os pudesses ver, Diamantinho.
– A verdade é que não os escuto – avisa o marido.
– Mas já andam por aí – insiste Teófila. – Não tarda que comecem a cantar.
– Mas e onde pousam esses pássaros se as árvores morreram?
– Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes. Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.
Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara descaída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto adverte:
– Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que voltarmos a casa vais lavar esse trapo.
– Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.
– Olha, está a passar agora uma garça! – proclama Téofila, com entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das dificuldades auditivas do marido – É pena não veres, é tão branca, parece um anjo…
– Porque é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça, os bombardeamentos. Tudo mentira, tudo pura mentira.
– Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.
O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Teófila opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia que os sobreviventes deambulam como sombras por detrás dos escombros. Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes mágicas de se enclausurar. Somos os mais competentes carcereiros de nós mesmos. É o que diz dona Teófila.
– Quando falas, mulher – reclama o homem – espalhas cuspe e levantas poeira e ambos são mortais venenos.
– Tem que haver pessoas, Diamantino – insiste a esposa. – Se assim não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente – prossegue Teófila. – Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigénio.
Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com quem nunca viu o seu próprio corpo.
– Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas poeiras e devias ter vergonha na cara – acusa Teófila – Porque continuas a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.
– Não entendo nada do que dizes, mulher – comenta Diamantino.
– Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? – interroga-se Teófila – Desconfio que à noite deixas de ser cego.
Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então que o marido se apercebe que Teófila se levanta e caminha por si mesma. O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.
Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe que ali se aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se, primeiro, o cego Diamantino. Depois, escuta uma das sombras que lhe dirige a palavra.
– Veio ao funeral, Diamantino?
– Funeral? Funeral de quem?
– Da Marlu. Morreu esta noite.
Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva os dedos ao rosto para certificar-se da existência de alguma furtiva lágrima.
– Não sei o que dizer – murmura ele, enfim — Sempre pensei que Marlu não tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.
– O que passa, Diamantino? – espanta-se um dos vizinhos – Desde que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a passear a nossa querida Marlu.
– Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? – pergunta um outro vizinho.
Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa a casa, o universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas, a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara tinha sido apenas ele.
Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São passos de mulher, isso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem chegou. Depois, o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a sombra entre as pedras e pergunta:
– Já germinou?
– Já despontam duas pequenas folhinhas – responde uma voz toldada pela comoção.
Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.
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