Ave noturna, agoureira,
Não me apavora teu canto…
Lourival Açucena
Anoiteceu. Na moldura do oco no tronco da mangueira o vulto claro de Sofia aparece. As asas escuras, ferrugem com tintas de canela, destacam o papo alvacento, com listas horizontais feitas com tinta delicada de negro pálido. Na gorjeira, placas de matiz carregado, salientando-se como um colar de três voltas, condecorador. O bico curvo, forte, dá uma impressão de ferocidade meditativa que os olhos claros, límpidos, completam, no ar clássico de decisão e cisma estudiosa. Na altura das orelhas as penas se elevam, cucurutando como um boné de jogral. As patas, de dedos firmes, são garras, sabendo prender-se em qualquer galho, e também agarrar e suspender a presa, varando-a com as adagas das unhas implacáveis.
Equilibrada no rebordo, balança-se como medindo o espaço que escurece. Há uma lenta claridade invasora, leitosa, transparente, acariciante. É luar. Luar de agosto. Será noite de caça festiva e fácil. Esperança otimista de repleção antes do frio da madrugada.
As pupilas negras de Sofia restringem-se concentricamente. Pisca. Bem desejaria ela explicar quanto é mentirosa a lenda obstinada que a diz ver de noite quando não enxerga de dia, deslumbrada pela claridade cegante do sol. Nem tanto. Verdade é que não pode ver sem luz, sem alguma luz. De noite cerrada, bem trevosa, nada distingue, nada caça, voando baixo, quase às apalpadelas, temendo esbarros e batidas nos espinhos, nas urtigas, nas cascas ásperas e rugosas que a molestam, arrancando-lhe as penas da garganta e do peito.
É uma Strix flammea, Gmel, a Effraie dos poemas de França, a sinistra “rasga-mortalha” na sinonímia popular, coruja de igreja que também vive em oco de pau, imóvel e assombradora. Eleos dos gregos. Aluco dos latinos, Sofia precisa de luz mesmo difusa e tênue para agir. Ao entardecer, quando a luminosidade se arrasta nos retardados crepúsculos de verão, até que a noite torne o arvoredo maciço, é o tempo ideal para as proezas da coruja alvacenta.
É a hora em que os animais se recolhem e os pássaros zombeteiros e atrevidos, que irritam sua impassibilidade soturna, procuram os ninhos. Miríades de insetos revoam. Também há uma fauna noturna e rastejante, amiga deste horário. Morcegos e ratos pululam. Gô e Quiró saem para caçar, levando seu povo esfomeado.
Sofia ouve maravilhosamente e pode fechar ou abrir o pavilhão, movimentando sua coroa de penas, obstrutora. O bico é imóvel nas duas partes, como o dos papagaios, alcançando maiores proporções preadoras que escorregam pela garganta enorme, deglutindo ratos e morcegos inteiros. O estômago generosamente encarrega-se de expelir o couro peludo em forma de bolinhas. O bico permite bicoradas decisivas e também o rumor estalante de castanholas, sinal de intranquilidade e também de pacificação digestiva. Seu andar de velho marujo não a leva para longe mas aproxima-a de quem deseja ver de perto. O voo é macio, silencioso, pesado, graças à penagem mole que a reveste. Há, entretanto, corujas – e Sofia é uma delas – denunciadas às vezes por um súbito ranger quando voam mais baixo que o habitual. Parada, resfolega ou ressona surdamente, com imprevistas representações sônicas de estrangulamento estertorante. Por sua culpa é que a fama se espalhou, de anunciadora da morte, arauto dos cemitérios e núncio fatal quando voa resmungando por perto da câmara dos agonizantes.
Seu canto – canto? – é um piado triste e continuado, com pausas sonolentas que iniciam a continuação. Na época do amor Sofia ulula sem parar, teimosa, chamando, indicando a coordenada geográfica ao seu amor ou indo buscá-lo, se ouve a cadência entrecortada da réplica interessada. Horas a fio repete a última vogal, bem acentuada, ligada mas clara, espécie monótona de um rosário merencório de mágoas inconsoláveis. Nas noites enluaradas, o canto parece sair da terra e de todos os recantos onde Sofia não esteja.
Em qualquer país do mundo e tempo da História a coruja é mensageira da morte infalível. Morávamos numa chácara e numa noite, muito doente meu pai, a coruja começou no seu ululado arrepiante. Meu pai fez um sinal a um dos criados. Um tiro estrondou e o servo voltou com a corujinha morta, pintada de sangue, olhos imensos, abertos, sem saber por que morrera. Meu pai disse a frase consagrada pelo uso: “– Vá agourar outro...”
O doente que vê morta a coruja que o agourou cantando perto da casa, sobreviverá.
Meu pai viveu mais 25 anos. No Rio de Janeiro, bairro da Tijuca, visitamos um doente. Inexplicavelmente ouvia-se a coruja cantar, teimosa e distante nos intervalos da conversa. Voltando, um grande político da época afirmou, convicto:
“– Está perdido! Não ouviram a coruja cantar?”
O doente faleceu, efetivamente, na noite seguinte. Estes acasos credenciam Sofia irremediavelmente como o sinistro pássaro da morte, como dizia Plínio. Sofia é tão responsável pelas mortes humanas como pela orientação política dos Estados Unidos ou União Soviética.
Criei mais de um ano uma coruja e esta comia tudo que se lhe desse. Apenas, aristocraticamente, só comia sozinha, com lentidão e gravidade. Nunca a vi beber. Libertou-se numa noite de luar, véspera de “festa” (24 de dezembro) e não sei como se arranjou levando um pedaço de corrente de latão na pata direita. Jamais habituou-se com as pessoas de casa, mesmo com quem a alimentava. Olhava-os fixa, desesperadamente, meneando a cabeça chata e dando um rosnado meio bufado que seria cólera justa e desprezo. Nunca se dignou cantar. Comia camundongos e morcegos vivos. Mortos, recusava-os sem olhar. Servia-se de carne crua, insetos. Também desdenhava frutas. Inexplicavelmente apreciava pirão de leite, farinha de mandioca, leite e açúcar. Metia o bico, lambuzando-se como um periquito glutão. Não tentava beliscar os curiosos e também não permitia intimidades nem verificações por contato. O primeiro sinal de impaciência não era abrir o bico e sim uma ou duas asas, semiabrir. O bico aberto ocorria imediatamente a esta preparação. Dei-lhe nome familiar de Maroca. Não parecia, muito justamente, entender. Não deixou saudades a ninguém.
Serviu-me, para teste, sobre a conservação do seu terrível prestígio. Todas as pessoas que nos visitavam, ilustres e humildes, desde o Governador do Estado ao vendedor de carvão, surpreendiam-se com a coruja, aconselhando sua imediata libertação. Não convém manter a coruja presa. Reuniam todos os prejuízos multisseculares sobre Sofia, dizendo, muito sérios: “– Faz mal...”. Era tudo.
Decepcionou-me em muitas experiências. Uma delas era a constatação da coruja beber óleo das lâmpadas da igreja. Buffon afirma. Pus junto a Maroca a lâmpada de óleo do oratório de minha mãe (indignação de vários dias pelo sacrilégio) por duas vezes, mas a coruja deixou-o intacto. Buffon informa que o apetite de Maroca pelo óleo santo é maior se ele coagula... surtout si elle vient à se figer. Não pude obter óleo coagulado.
Na Europa é comum os estrigídeos reunirem-se durante o inverno nos palheiros, tolerando-se mutuamente pela necessidade de obter calor. Será um dos efeitos socializantes do clima. No Brasil, especialmente no Norte, que é um verão eterno, as corujas são adversários do gregarismo e vivem isoladas. Mesmo no cio, que é rápido, permanecem nas grutas, buracos do chão, muros antigos, torres de velhas igrejas, ocos de árvores robustas. O casal pode ser visto em certas noites de luar, cantando, trocando apelos mas separado, cada personagem na sua árvore privativa. Nunca vi duas corujas no mesmo pouso.
A versão popular é que lutam quando se encontram as do mesmo sexo macho. Não há delicadeza para a fêmea, fora ou dentro do clima amoroso. Vendo-a com uma boa presa, tenta arrebatar-lha. Um meu parente, caçador noturno de tatus, assistiu justamente a um desses combates aéreos pela tomada de uma ratazana que uma coruja levava e fora encontrada por outra, irmã de pai e mãe, decidia o informante. Terminava a justa o rato escapulindo.
No tempo em que o amor lhes sopra a tentação sedutora, cantam mais e é a época dos ululos que chamam a morte, mas realmente suplicam a presença da noiva requestada e tardia. Permutam os agouros até que o macho toma coragem e voa ao encontro do desejado par.
Por isso Sofia estava cantando naquela noite e não caçando os ratos de Gô ou os morcegos de Quiró.
Imóvel no galho, como que feita de porcelana, Sofia lança o seu chilrear conclamativo. As notas encadeiam-se, sem espaços, os u-u-u-u se estiram, conjugadas as terminações, obtendo uma única ressonância suplicativa. Ratos e morcegos ocultam-se ou fogem, avisados da proximidade da caçadora. A coruja quando caça não canta. Outra era a caça para o apelo ululante de Sofia.
O canto, firmado interminamente na derradeira vogal, é bem diverso dos outros constantes do repertório da Strix flammea perlata. Seu epitalâmio consiste naquela teimosa epizeuxe certamente irresistível aos ouvidos femininos da coruja, ouvinte e recatada.
Não é o piado longo e tétrico, levemente interrogativo às vezes, nem o estalo surdo e brusco que faz voando, rumor semelhante a um rompimento de tecido e daí a ideia fúnebre do rasga-mortalha. Nem a cadeia das notas se interrompe pelo prolongamento sobre uma vogal, espécie de marcação de uma neuma no entoado de uma jubilação gregoriana. O canto amoroso, terno e eterno nas vogais profundas e valorosas de intenção, possui um término variado, inflexões diversas que findam por um ralentando preguiçoso ou espaços intervalares que salientam as três derradeiras notas, cheias de subentendidos e chamamentos maviosos.
A repetição na mesma intensidade de certas notas dá à simulcadência um significado intencional, fazendo ressaltar na própria intermitência melódica o fraseado convencional do convite amoroso. O canto, monótono, inacabável, não é rigorosamente igual. Um floreio quase imperceptível, uma acentuação mais demorada em segundos, um final diverso, modifica a mensagem musical na noite branca.
Tanto é assim que a outra coruja respondeu por um pio longo, duas ou três vezes ressoando, como um “sim” de renúncia à resistência remorada e cruel. Sofia abriu as asas perladas, com o listrão vivo de ferrugem e canela heráldicas, e voou para a cajazeira matrimonial.
Estão agora as duas figuras hirtas, lado a lado, no galho curvo abrigador de tanta felicidade. Acabaram-se os cantos. Não há espaço entre os noivos. Apenas a sombra de uma ave que se volta, erguendo as penas do uropígio, que ocultam a vulva, acima o ânus. No mesmo ponto Sofia possui a breve verga muscular fecundadora. O contato é de minutos e o esposo feliz não acompanha a fêmea complacente. Voa, calado e jubiloso, para a casa distante. A fêmea tratará de todos os encargos.
Durante uns dois meses Sofia repetirá, todas as noites, o seu apelo de paixão transbordante, não sei se à mesma ou outra coruja sentimental. Viverá o seu romance na cajazeira ou em qualquer árvore de abrigo. Mas não fará ninho e nem alimentará os filhos de bico aberto na exigência do cibo. O ninho não precisa ser feito porque é oco-de-pau ou reentrância de muro, torre patinada, com um leve forro de palha ou capim sem arranjo circular, rústico quanto o da cegonha.
As aves de preia, as grandes ornamentais, poderosas de força, águias, abutres, gaviões, não têm amor prolongado pela pequenina ninhada. Expulsam os filhos bem cedo dos ninhos malfeitos, obrigando-os a buscar a vida batalhada, matando para comer. As aves humildes e fracas são, em sua maioria, as enamoradas da prole e da fêmea, as românticas que fazem serenatas, aquelas que buscam alimentos para o choco, sustentam os filhos com paixão e defendem o lar com sacrifício comovedor.
Certamente Sofia conhecerá os filhos a distância e os terá na classe de concorrentes à caça e rivais no futuro amor. Dispensa-se cordialmente de protegê-los ou morrer por eles. Nunca vi e nem soube que alguém encontrasse em ninho de coruja mais de uma ave adulta. Buffon, lui, toujours lui, informa que: “– Elle nourrit ses petits d’insectes et de morceaux de chair de soris”. Pode ser que exista no Brasil esta regra de que Sofia é uma consabida exceção.
Ponhamos, prudentemente, o eles no singular, ela. Buffon narra emocionalmente que prendera uma Effraie e esta, emitindo o seu grito de socorro, determinara que as companheiras corressem para junto da prisão repetindo o apelo amargurado e mesmo se deixassem prender nos laços, et s’y laisser prendre au filet. Suicídio pelo solidarismo. No Brasil a coruja evoluiu psicologicamente para o plano do egoísmo superior. Se contarem a Sofia esta notícia, balançará a cabeça ornamental, imaginando a resposta: “– Outras terras, outros costumes...”.
Sofia não faz ninho, ensinam, porque as aves noturnas não costumam construir suas residências. Não têm tempo oportuno porque as horas de caça coincidem com o horário apertado em que podem ver alguma coisa. Tendo que escolher entre o ninho e o alimento todas se decidem pelo segundo. O ninho é trabalho diurno. Os psitacídios veem deliciosamente de dia e nunca uma criatura humana chegou a encontrar o papagaio ocupado em fazer sua casa. Um ditado de Minas Gerais afirma, lógico: “– Quem tem asas para que quer casa?” É generalizar demasiado.
Um ditado do Ceará, recolhido por Leonardo Mota: “– Coruja é quem gaba o toco”. Toco é a residência. Até hoje não quis outro. Para que fazê-lo se já o depara feito a seu gosto?
Nos assuntos maternais a coruja é clássico exemplo devotado e completo. Incomparável à solicitude na procura de alimentos e cuidados minuciosos na manutenção e resguardo da progênie. Perpetuamente esfomeadas, exigentes e piantes, as corujinhas são satisfeitas com todos os sacrifícios e a coruja velha esvoaça, num ciúme de bom gosto, o toco de pau que esconde aos olhos profanos aquelas maravilhas.
É popular na Europa de onde veio para América o episódio com a raposa que ia iniciar seu almoço e consultava a coruja sobre os tabus alimentares. De todas as aves novas, a coruja recomendou unicamente as mais lindas e sedutoras, de aspecto irresistível no encanto imediato. Eram as horrendas corujinhas. Pequenas mal-ajambradas, a grande cabeçorra pelada desproporcional ao corpinho molenga e úmido, o bico aparado anunciando a bocarra incomensurável, a penugem branquicenta, molhada e suja, os olhos redondos, imensos, assombrados da própria hediondez, lembrando os restos de um vômito, repugnante e confuso. A raposa devorou-as com mau gosto e bom apetite. A coruja, inconsolável, ainda guarda rancor à falta de justiça estética da gente vulpina. Para o julgamento de todas as mães do mundo o modelo fiel é o da coruja, mater admirabilis.
Os insetos maiores, ortópteros e coleópteros, Sofia apanha-os no voo e os engole sofregamente. Não podendo mastigar, língua cartilaginosa e seca, não creio que tenha o sentido do paladar. Sabe, pela riqueza da experiência de tantas gerações, os melhores coeficientes nutritivos. Entre os insetos e os ratos e morcegos, especialmente os ratos novos e os camundongos vestidos de penugem cinzento-clara, fina como arminho, prefere os últimos e a perseguição é mais encarniçada e teimosa na captura dos roedores.
Vi muitas vezes nas vilas do interior, onde a matriz fica silenciosa ao cair da noite e há tranquilidade em todo o quadro da rua, as corujas-de-igreja, suiná, suinara, suindá, suindara, atacando os quirópteros, seguindo-os acesamente a ponto de esbarrarem na parede branca do templo, com o raspar violento da asa no obstáculo imprevisto. Um informador, digno de crédito pela idade e circunspecção, descreveu-me a pegada de um Gô, ratazana alentada e veloz que correu, defendendo a vida, no fio do beiral da casa enquanto Sofia o acompanhava em voo que se tornava mais e mais tragicamente baixo. O guabiru antes de ser fisgado pelo bico e garras da coruja soltou um guincho de pavor atroz, lamento e apelo de socorro que deveria estarrecer os companheiros distantes. Sofia agadanhou-o e passou voando pela calçada onde se encontrava o meu informador. A luz da lua mostrava perfeitamente o perfil estrebuchante do guabiru, sacudindo o seu inútil grito solicitador de auxílio. Foi dilacerado no cimo da torre iluminada pelo luar sereno.
Numa noite branca é que Sofia suspendeu Tim pelo dorso esverdeado e levou-o, imóvel e resignado, para final de sua ceia. Tim, calango verde listrado de negro, vagamundo e turista gratuito, fora em semanas anteriores o matador de um pirilampo. Sem querer, Sofia castigou-o pela sua falta de respeito artístico por uma pequenina obra-prima da criação. Apesar da obnubilação diurna Sofia é atraída pelas luzes domésticas. Fatalmente as corujas-do-campo ou as “buraqueiras” (Speotyto cunicularia, Temm), Caboré intrometido e curioso e mesmo Sofia, não resistem ao apelo cintilante e vão verificar de perto a origem daquele clarão, derramando sustos e recebendo protestos, tiros e pedradas reacionárias. As lâmpadas elétricas dos postes nas avenidas remotas e de pouco trânsito alta noite são inevitavelmente visitadas pelas corujas, visitas apressadas, meramente cerimoniosas, um círculo respeitoso ao derredor do foco antes de remergulharem na escuridão. É uma homenagem ao elemento misterioso cuja desacamodação às suas pupilas fá-las retraídas e sinistras, fora do convívio das aves, haloadas de lendas e seguidas de maldições seculares.
Vezes acompanham, virando lentas o pescoço móbil, os faróis que passam, não podendo apartar a vista daquele listrão que acorda a paisagem, mudando o cenário no lampejo atordoante. Quase dão o completo giro na cabeça, o bico no meio das costas, olhos parados, fosforescentes, seduzidos e encantados, abertos e contemplativos no deslumbramento inesquecível da visão rutilante.
As menores, inexperientes ou mais sensíveis, voam de encontro aos vidros dos para-brisas, cegas, fascinadas na ofuscação súbita daquele milagre perturbador de suas pupilas. O choque as sacode atordoadas e contusas para a margem da estrada. Viajando numa noite de escuro, de Goiânia para o Recife, o automóvel focou os olhos distantes de uma coruja que estava empoleirada num galho na curva do caminho. Vimo-la voar na direção do veículo e sentimos o embate do seu corpo no radiador. Quando a fui ver já estava morta; uma patinha crispava-se vagarosa na última convulsão. Manchas de sangue nodoavam-lhe a cabeça chata, de penas claras, ouro pálido. Os dois olhos grandes, desmesuradamente abertos, pareciam guardar a impressão imediata de uma revelação que lhe custara a vida. Estavam mais luminosos, molhados de sangue, vitoriosos pela conquista que fora aquela aproximação ansiada e definitiva. Matara-a a luz irresistível, fascinadora e fatal.
Na sua lenta e pesada diagonal, Sofia atravessou o céu tranquilo da madrugada e pousou, nobre e séria, no umbral da sua casa. Um instante alvejou seu vulto senhorial oscilando, balançando-se como velho marujo nas alturas do mastro grande. Ficou olhando a placidez das coisas adormecidas e a vida palpitante que continuava, terna e dominadora, matando, amando, morrendo para reproduzir-se.
Depois, apagou-se na sombra…
Luís da Câmara Cascudo, "in Canto de Muro"
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