segunda-feira, setembro 18

Ivette

De saída do Café Riche1, Jean de Servigny disse para Léon Saval:

— Se quiseres, vamos a pé. O tempo está demasiado bom para apanharmos um fiacre. E o amigo respondeu:

— É mesmo o que me está a apetecer.

Jean prosseguiu:

— Ainda passa pouco das onze, iremos chegar muito antes da meia‑noite, portanto vamos com calma.

Uma multidão irrequieta fervilhava na alameda, aquela massa de gente que, nas noites de verão, se agita, bebe, murmura e flui como um rio, satisfeita e alegre. Aqui e ali, um café lançava um grande jorro de luz sobre o amontoado de bebedores, sentados no passeio diante de mesinhas cobertas de copos e garrafas, atrapalhando a passagem dos transeuntes apressados. E na calçada, fiacres de lanternas como olhos, vermelhas, azuis ou verdes, cruzavam de repente a claridade da fachada iluminada, revelando por um segundo a silhueta esguia e saltitante do cavalo, o perfil elevado do cocheiro e a carroçaria escura da carruagem. Os da L’Urbaine produziam manchas claras e rápidas, quando os seus painéis amarelos eram atingidos pela luz.

Os dois amigos caminhavam em passo lento, de charuto na boca e casaca, com o sobretudo no braço, flor na lapela e chapéu um pouco inclinado, como se põe às vezes, por negligência, quando se jantou bem e a brisa sopra morna.

Unia os dois uma afeição estreita, devotada e sólida, desde o tempo do colégio.
Jean de Servigny, baixo, esguio, um pouco calvo, com ar frágil, muito elegante, de bigode frisado nas pontas, olhos claros e lábios finos, era um desses homens da noite que parecem ter nascido e crescido na boémia. Incansável embora sempre com um ar extenuado, vigoroso embora pálido, era daqueles parisienses magros a quem o ginásio, a esgrima, os banhos e a sauna imprimiram uma força nervosa e artificial. Era tão conhecido pela sua estroinice como pela sua inteligência, a sua fortuna, as suas relações, e por aquela sociabilidade, aquela amabilidade e aquela galanteria mundana peculiares a certos homens.

Um verdadeiro parisiense, pois, fútil, cético, volúvel, cativante, enérgico e indeciso, capaz de tudo e de nada; egoísta por princípio e generoso por impulso, consumia os seus rendimentos com moderação e divertia‑se com higiene. Indiferente e apaixonado, deixava‑se levar e recuava constantemente, impelido por instintos antagónicos e cedendo a todos, para acabar a obedecer ao seu juízo de folgazão vivaço, cuja lógica de catavento consistia em deixar‑se ir com a corrente e tirar proveito das circunstâncias, sem se dar ao trabalho de as produzir.

O seu companheiro, Léon Saval, também rico, era um desses magníficos colossos que fazem as mulheres voltar a cabeça na rua para os mirarem. Parecia um monumento feito homem, um padrão da raça, à semelhança daqueles objetos que são enviados para exposições como modelos. Demasiado bonito, demasiado alto, demasiado largo, demasiado forte, pecava um pouco por excesso de tudo, por excesso de qualidades. Tinha provocado inúmeras paixões.

Chegados diante do Vaudeville2, perguntou:

— Preveniste a senhora de que me ias levar contigo?

Servigny desatou a rir.

— Prevenir a Marquesa Obardi! Acaso prevines o cocheiro de um fiacre de que vais apanhá‑lo à esquina da avenida?

Um pouco perplexo, Saval perguntou:

— Afinal, quem vem a ser essa pessoa?

O amigo respondeu:

— Uma arrivista, uma aventureira, uma cortesã encantadora; saída não se sabe de onde, apareceu um dia, não se sabe como, no mundo dos aventureiros, onde consegue fazer figura. O que não nos interessa para nada. Diz‑se que o seu verdadeiro nome, nome de solteira — pois permanece solteira a todos os títulos, exceto o da inocência —, é Octavie Bardin, daí o Obardi, afixando a primeira letra do nome próprio e suprimindo a última do apelido.


“À parte isso, é uma mulher amável, de quem vais inevitavelmente ser amante, pelo teu físico. Não se introduz Hércules na casa de Messalina sem que algo aconteça. Devo, no entanto, acrescentar que, por a entrada nesta morada ser livre, como nos bazares, não se é rigorosamente obrigado a comprar o que aí está à disposição. Temos amor e cartas para consumo, mas ninguém é obrigado nem a um nem às outras. A saída também é livre.

“Ela instalou‑se há três anos na Étoile, bairro duvidoso, e abriu os seus salões a essa escória dos continentes que vem a Paris exercer os seus diversos talentos, temíveis e criminosos.

“Fui dar à casa dela! Como? Já não me lembro. Apareci lá, como os demais, porque se joga, porque as mulheres são fáceis e os homens desonestos. Adoro esse mundo de embusteiros com insígnias variadas, todos estrangeiros, todos nobres, todos titulados e todos desconhecidos das respetivas embaixadas, com exceção dos espiões. Todos falam de honra a despropósito, citam antepassados a propósito de nada, contam histórias da sua vida a propósito de tudo; fanfarrões, mentirosos, trapaceiros, perigosos como os seus baralhos, falsos como os seus nomes, ousados por necessidade, como os assassinos que, para roubarem as pessoas, têm de pôr em risco a própria vida. Enfim, é a aristocracia do cárcere.
“Adoro‑os. São interessantes de entender, interessantes de conhecer, divertidos de ouvir, frequentemente espirituosos, nunca banais como os mangas de alpaca franceses.

“As mulheres são sempre bonitas, com um leve toque de malícia estrangeira e o mistério das suas existências anteriores, metade das quais eventualmente passadas nalguma casa de correção. Têm, de uma maneira geral, olhos magníficos e cabelos incomparáveis, a aparência certa para o ofício, uma graça inebriante, uma sedução que leva a loucuras, um encanto perverso e irresistível! São conquistadoras como os salteadores de estrada de outrora, vorazes, verdadeiras fêmeas de aves de rapina. Também as adoro.

“A Marquesa Obardi é uma dessas típicas cortesãs elegantes. Madura e  sempre bela, sedutora e felina, percebe‑se nela depravação até à medula. É grande a diversão em sua casa, joga‑se, dança‑se, come‑se… enfim, faz‑se tudo o que constitui os prazeres da vida mundana.”

Léon Saval perguntou:

— Foste ou és seu amante?

Servigny respondeu:

— Não fui, não sou e nunca serei. Vou lá sobretudo por causa da filha.

— Ah! Ela tem uma filha?

— Se tem uma filha! Uma maravilha, meu caro. É hoje a principal atração desse covil. Alta, magnífica, madura no ponto, dezoito anos, tão loira como a mãe é morena, sempre alegre, sempre pronta para a paródia, sempre a rir com gosto e a dançar com arrebatamento. Quem virá a possuí‑la? Ou quem já a possuiu? Não se sabe. Somos dez à espera, ansiosamente à espera.

“Uma rapariga assim, nas mãos de uma mulher como a Marquesa, representa uma fortuna. E elas fazem jogo duro, as duas libertinas. Não deixam perceber nada. Devem estar à espera de uma oportunidade… melhor… do que eu. Mas garanto‑te que a vou agarrar bem… a oportunidade, se a vir.

“Essa rapariga, a Yvette, deixa‑me absolutamente desconcertado. É um mistério. Se não é o monstro de astúcia e perversidade mais acabado que já conheci, é certamente o mais maravilhoso fenómeno de inocência que se pode encontrar. Vive naquele meio infame com um à‑vontade tranquilo e triunfante, como admirável celerada ou total ingénua.

“Rebento maravilhoso de aventureira, criada no meio do esterco daquele mundo, planta magnífica alimentada na podridão; talvez filha de um homem de alta linhagem, de algum grande artista ou de algum grande senhor, de algum príncipe ou de algum rei caído, certa noite, no leito da mãe — não se consegue perceber o que ela é, nem o que pensa. Mas vais vê‑la.”

Saval pôs‑se a rir e disse:

— Estás apaixonado por ela.

— Não. Sou parte interessada, o que não é a mesma coisa. Aliás, vou apresentar‑te os meus copretendentes mais sérios. Mas tenho boas hipóteses.
Disponho de vantagem, demonstram‑me alguma preferência.

Saval repetiu:

— Estás apaixonado.

— Não. Ela perturba‑me, seduz‑me e inquieta‑me, atrai‑me e assusta‑me. Desconfio dela como de uma armadilha e desejo‑a como se deseja um sorvete quando se tem sede. O seu encanto subjuga‑me e aproximo‑me sempre dela com a mesma apreensão que se tem em relação a um homem suspeito de ser um hábil ladrão. Perto dela, sinto uma atração irracional pela sua possível candura e uma desconfiança muito racional em relação à sua não menos provável astúcia. Sinto‑me em contacto com um ser anormal, fora das leis naturais, especial ou detestável. Não sei.

Saval pronunciou‑se pela terceira vez:

— Digo‑te que estás apaixonado. Falas dela com uma ênfase de poeta e um lirismo de trovador. Vá lá, olha para dentro, sonda o teu coração e confessa.

Servigny deu alguns passos sem falar, depois respondeu:

— É possível, de facto. De qualquer forma, ela preenche‑me muito o espírito. Sim, talvez esteja apaixonado. Cogito demasiado nela. Penso nela ao adormecer e também ao acordar… O caso está bastante grave.

Guy de Maupassant, 'Yvette'

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