segunda-feira, setembro 4

A leitura é meu alimento

Eu queria ser Castro Alves

Acho que a literatura pode mudar as pessoas, sim. Há quem diga que não, que não muda nada. Cada um tem sua ideia. A mim, mudou. Acho impossível que alguém, um dia, não tenha sido mudado por Madame Bovary e por Crime e castigo. Impossível não ser mudado por Kafka ou Machado de Assis. Eu fui. Vim de um mundo rural, agrário e ágrafo. Vim do sertão. Quando descobri os livros, descobri outro mundo. E se me perguntassem o que eu queria ser quando crescesse, eu responderia: “Castro Alves”. O cara era bonito como um corno e dava muita sorte com as mulheres. Quem é que não queria ser Castro Alves? Chegou a Recife, onde havia uma guerra entre a polícia e os estudantes, e gritou: “Soldados, parai. A praça é do povo como o céu é do condor”. E os soldados pararam. Sabendo dessas histórias, como é que eu não quereria ser Castro Alves? Pois a literatura me mudou. Sempre que leio algo que me move, sinto que mudo. Mudo meu jeito de pensar. Li muito tardiamente um escritor francês chamado Boris Vian, autor de A espuma dos dias. E pensei: “Meu Deus, por que não li isso mais cedo?”. Eu seria outro escritor se tivesse lido aquilo mais cedo. Para mim, aquele livro é fantasticamente novo. Vendeu milhões em Paris. E vende até hoje. O cara morreu com 38 anos e ainda tocava trompete. É de matar de raiva: o cara escreveu A espuma dos dias e ainda tocava trompete. Então, a mim, a literatura não só mudou, mas acho que vem mudando. É um processo que segue com o tempo. Como todo escritor deve ser, sou essencialmente um leitor. A leitura é meu alimento.

Verdes mares do sertão

Tive uma professora que me ensinava a ler em voz alta. Lá no Junco (BA). Uma professora da escola rural, do primário. E essa mulher fez a oficina literária da minha vida. A gente estudava na escola para meninos e meninas da professora Serafina, uma escola sob a influência da Era Vargas, meio militarizada. E a professora, logo de cara, me botou na praça pública para recitar Castro Alves: “Auriverde pendão da minha terra…”. Um belo dia, à porta da escola, chegam uma senhora e sua filha. E a filha diz: “Dona Serafina, vim buscar os alunos”. Daí, dona Serafina falou: “Leve os meninos”. E nós saímos murchos. Que graça ia ter irmos a uma escola só de meninos, se uma das nossas maiores motivações era nos sentarmos ao lado de uma menina, quem sabe darmos um beliscão na perna dela, pegarmos na sua mão e tal? Pois aquela professora vinha inaugurar um novo prédio, todo padronizado. Tinha aqui a sala de aula, ali a casa da professora e a área do recreio. Era uma coisa do governo, feita para invadir os fundões do Brasil. E essa professora Tereza chegou, abriu as janelas, pegou um livrinho e mandou todo mundo fazer fila. Para mim, caiu o seguinte: “Ver-des ma-res bra-vios da mi-nha ter-ra na-tal on-de can-ta a jan-daia”. Na segunda vez em que li aquilo, eu já estava melhorzinho. Na terceira, na quarta, já estava lendo legal. Agora, vocês não imaginam o efeito disso sobre um menino que nasceu e que vivia em um lugar onde nem rio havia. O que era esse tal de verde mar? E no plural, “verdes mares”? O que era uma jandaia? Eu nunca tinha visto uma jandaia. O que era uma carnaúba? Isso era coisa lá do Piauí, do Ceará, de muito longe de onde eu estava. Coisa de um Nordeste aquoso. Não tinha água na minha terra. Quando chovia, o povo vestia terno branco e rolava na lama, de tanta alegria. Então, imagina: “verdes mares”?“Como todo escritor deve ser, sou essencialmente um leitor. A leitura é meu alimento.”

Em voz alta

Às vezes, escrevo e leio o que escrevi em voz alta, como se estivesse aqui, falando com vocês, falando esse texto para o meu leitor. Não quero perder essa oralidade que vem da infância, da escola rural. Sou produto dessa cultura rural e de uma cultura oral, também. Meu imaginário foi feito dentro disso. Das histórias que me eram contadas e cantadas, do cordel. O cordel vem dessa cultura oral, dessas histórias muito imaginosas, sem tempo nem espaço, que me influenciaram muito. Adoro isso de ler em voz alta. Nas oficinas literárias que faço, boto todo mundo para ler em voz alta.

Meus monólogos

Acho que todos os meus livros são monólogos. Em Um cão uivando para a lua, por exemplo, vemos um cara internado. Minha idéia, ali, era escrever um conto sobre um doido batendo papo consigo mesmo. Dali a pouco, eu já tinha ultrapassado os limites de um conto e, oito meses depois, estava com um romance. E é isto: esse cara, depois de uma viagem de 36 horas de eletrochoques, começa a fazer uma viagem pelo país e por dentro dele mesmo. Quer dizer, faz em Um cão uivando para a lua, um personagem se chama A e o outro T. É bandeiroso: Antônio Torres, A e T. Esses dois personagens são  monólogo. Eu imagino esse personagem falando alto, contando aquilo tudo para alguém. São duas faces da mesma moeda. Na verdade, são um personagem só. Um está internado e outro está visitando. Um está na televisão, o outro é um repórter que pirou após uma viagem à Transamazônica — mas pirou mesmo por causa do LSD. Uma coisa da juventude dos anos 70. Uma parte dela estava na luta armada e a outra estava com Jimi Hendrix e Janis Joplin. E tome LSD! E eu pego esse personagem que explodiu e tento resgatá-lo pela consciência do louco. E também faço uma interrogação sobre onde fica a fronteira entre sanidade e loucura. É esse o jogo desse livro. É um monólogo.
Antônio Torres. no Paiol Literário (2018), com o mediador do encontro, o escritor e jornalista José Castello 

Nenhum comentário:

Postar um comentário