terça-feira, setembro 19

O Xá do Blá-blá-blá

Era uma vez, no país de Alefbey, uma triste cidade, a mais triste das cidades, uma cidade tão arrasadoramente triste que tinha esquecido até seu próprio nome. Ficava à margem de um mar sombrio, cheio de peixosos – peixes queixosos e pesarosos, tão horríveis de se comer que faziam as pessoas arrotarem de pura melancolia, mesmo quando o céu estava azul.


Ao norte dessa cidade triste havia poderosas fábricas nas quais a tristeza (assim me disseram) era literalmente fabricada, e depois embalada e enviada para o mundo inteiro, que parecia sempre querer mais. Das chaminés das fábricas de tristeza saía aos borbotões uma fumaça negra, que pairava sobre a cidade como uma má notícia.

E nas entranhas da cidade, atrás de uma velha zona de edifícios caindo aos pedaços, que mais pareciam corações partidos, vivia um garoto feliz, chamado Haroun, filho único de Rashid Khalifa, o contador de histórias, cuja alegria era famosa em toda aquela infeliz metrópole, e cujo fluxo interminável de histórias críveis e incríveis, entrelaçadas e serpenteantes, tinha lhe valido não só um apelido, mas dois. Para seus admiradores ele era Rashid, o Mar de Ideias, tão recheado de histórias gostosas como o mar era recheado de peixosos; mas, para seus invejosos rivais, ele era o Xá do Blá-blá-blá. Para sua mulher, Soraya, Rashid foi por muitos anos o marido mais amoroso que se poderia desejar, e durante todos esses anos Haroun foi criado numa casa onde, em vez de tristeza e rugas na testa, havia o riso fácil do seu pai e a voz doce da sua mãe cantando canções que voavam pelo ar.

Foi então que alguma coisa deu errado (quem sabe a tristeza da cidade acabou penetrando pelas janelas da casa?)

No dia em que Soraya parou de cantar no meio de um verso, como se alguém tivesse desligado uma chave, Haroun imaginou que alguma complicação estava começando. Mas ele nem desconfiava o quanto essa complicação era complicada.
Salman Rushdie, "Haroun e o Mar de Histórias"

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