sexta-feira, abril 30

A nova irrealidade

Só me permito certas intimidades com estranhos – disse a mulher. Eu já reparara nela. Era bonita, à sua maneira, com olhos ligeiramente estrábicos e um nariz forte, que lhe conferia uma aparência de lucidez e de veracidade, mesmo sob a luz insegura que nos dissolvia a todos numa mesma bruma de sonhos. O nariz era como uma âncora que a prendia à realidade. Movia a cabeça ao ritmo da música. No palco, o cantor parecia um náufrago, abraçado ao violão.

Um amigo, músico, recomendara-me o evento. Havia sempre boas surpresas, assegurara: cantores muito conhecidos e outros estreantes, brasileiros, portugueses, africanos. A mim, o público interessava-me tanto quanto os artistas. Sentado na minha poltrona, estudava as pessoas, imaginando que profissão exerceriam e o que as teria trazido até ali. Esqueci-me que também elas me podiam observar.

– Reparei em ti – continuou a mulher –, porque os tímidos têm um sexto sentido que faz com que se reconheçam uns aos outros ao primeiro olhar.



É verdade, sou tímido. Festas constrangem-me. Sou uma daquelas pessoas a quem o confinamento não desagradou, muito pelo contrário. Ou, pelo menos, eu pensava assim – até ontem. Vivi muitos anos em estado de semirreclusão. A mulher chamava-se Ingrid.
– O que fazes? – perguntou-me.
– Adivinha…
– És professor de Matemática.

Neguei, divertido. No palco, o cantor contava uma piada. O público riu-se. Ingrid também se riu. Não parecia tímida, pelo contrário, a sua gargalhada era clara e exuberante. Disse-lhe a verdade, que era tradutor literário, do francês para o português. A minha resposta pareceu surpreendê-la. Interessou-se. Quis saber que autores eu já traduzira. Naquele momento o cantor reinventava uma das minhas canções preferidas. Ouvindo-o, ausentei-me por um instante. Velhas canções têm esse poder de transportar-nos para outro tempo, e outros lugares. Ingrid percebeu.

– Já não estás aqui – disse.

Tive a sensação de que o cantor me observava. Parecia cantar só para mim. Quando ele terminou, todos bateram palmas.
– E tu, o que fazes? – perguntei a Ingrid.
– Adivinha…
– És professora de Matemática.
Riu-se:
– É que sou mesmo.
– Mentira…
– Quando isto acabar, podíamos ir beber qualquer coisa…
Ri-me:
– Em que cidade estás?
– Berlim.
– Caramba, acho que não vai dar, eu estou em Lisboa. Estamos muito longe um do outro.

Tão longe. Tão perto. Toquei-lhe o rosto, no ecrã do computador. Devia haver quase 30 pessoas no público. Cada uma delas no seu quadradinho, algumas na cozinha, outras no quarto, na sala ou no escritório. Em baixo de cada quadradinho, estava o nome do espectador. No quadrado maior, via-se o artista. Por vezes chamava um parceiro, que podia estar em Luanda, em Lisboa ou no Rio de Janeiro, e logo o outro surgia ao lado dele, num quadrado idêntico, e então tocavam e cantavam juntos, como se partilhassem realmente o mesmo palco. Uma moça (Adriana) colocara o ecrã na casa de banho e acompanhava o show estendida na banheira, enquanto brincava com um patinho de plástico. As pessoas podiam enviar mensagens em aberto, para os artistas, ou trocar ideias umas com as outras, em privado.

Ingrid estava sentada numa cadeira de espaldar alto, diante de uma estante com livros. Tentei, mas não era possível ler os títulos. Quis saber se ela aceitaria sair comigo, na realidade, caso isso fosse possível.
– Realidade? Qual realidade? – perguntou, parecendo genuinamente surpreendida com a minha questão.
– Bem, sabes, a realidade…
– Esta é a realidade. Nenhum de nós está a sonhar.
– Sim, refiro-me à outra realidade, mais real do que esta. O mundo lá fora.
– Não existe isso, um mundo lá fora. Aliás, não te convidei para sair, o que seria absurdo, mas para tomar um copo.
– Cada um na sua casa?
– Cada um na sua casa e cada casa na casa do outro, sim, como haveria de ser?

Passou-me o endereço dela – no Skype. O show terminou. Aplaudimos os artistas e estes despediram-se com uma última canção. O ecrã ficou vazio. Desliguei o computador e fui tomar um banho. Que roupa deveria vestir para sair com Ingrid? Ou melhor, para entrar na casa de Ingrid?

Atirei o laptop pela janela. Escutei o barulhinho bom que fez ao quebrar-se em mil pedaços contra o asfalto, Depois abri a porta da rua e saí. A realidade ainda estava lá.

Área aberta à imaginação

 

Rocio Bonilla

Fim do mundo

Quando o mundo estiver acabando, eu vou escrever esta crônica.


Ela vai me levar para a respiração de uma criança, e a sua barriguinha que sobe e desce serena, assim que ela encontra as cores que só existem quando a gente encontra, num sonho, um beija-flor.

A vida vai estar escorrendo pelas ruas, ladeiras, rios e mares, levando com ela toda a gente, sem discriminação. Como onda, ela carrega todo o asfalto, todas as prisões, muros que separam famílias e amantes, e eu vou estar aqui escrevendo, desprevenida, como se amanhã eu fosse acordar a mesma pessoa, descer no mesmo ponto, fritar os mesmos ovos, ouvindo esta mesma música.

O mundo estará caindo, e eu vou pensar nas florzinhas que eu arranquei numa praça para dar de presente pra vovó, e foi quando minha mãe me ensinou que isso não se deve fazer: depois desse dia entendi a importância de uma flor, e por isso o mundo acaba e eu só sinto um perfume bom.

A chuva vai descer com o céu, o chão vai se abrir pra terra respirar, todos os animais vão se ver livres, vai ser dia na Austrália, vai ser noite em algum lugar do mundo, um padeiro estará acordando, um segurança estará indo pra cama, um relógio vai parar, uma enfermeira vai olhar o seu paciente e dizer:

– Eu gosto de você.

O mundo vai gritar, de repente, que assim não pode mais ser, e eu vou pensar nesta crônica. Ela vai me levar pra correr sem nenhum medo, sem parar, em direção a uma estrada azul, a uma dança milenar, ao momento em que Maria volta a acreditar, ou àquela tarde em que um menino até então solitário, incompreendido e desconfortável, pega um lápis e um papel, e descobre que é poeta.

Teremos esquecido todo o resto, aceitado dividir, nos desfeito das mentiras e do sistema que exclui quem pede:

– Uma mão.

Vamos lembrar do que é preciso. Vamos parar pra pensar. Faz tempo – mas disseram que esse sempre há.

Vou reler, ler, escrever, até encontrar o rumo e a rima. Até a raiz.

Até esta hora amanhecer dentro de um verso bom, e o mundo que gira tão calmo, toda a justiça que existe,

as coisas
todas no

[lugar]
Drica Muscat

quinta-feira, abril 29

Semelhanças

O abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis.
Italo Calvino

Fique de olho!

 


Quatro livrarias de Lisboa que ajudam a explicar o vício dos livros

Um tigre em Lisboa

Logo à porta de entrada, há uns caixotes de fruta acolhendo livros usados a preços irrisórios. Não sendo um alfarrabista – como Fernando Ramalho, um dos fundadores, faz questão de realçar – a livraria Tigre de Papel prima pela intenção “de que os livros não se percam, queremos dar-lhes uma nova vida”.

Estamos na Rua de Arroios, no coração do bairro homónimo, um dos mais cosmopolitas da Europa. Em 2016, um artigo do Expresso identificava, na freguesia, pessoas de 79 nacionalidades. Em Junho desse mesmo ano, nascia este espaço dedicado aos livros, que rapidamente entrou nas rotinas da vizinhança. E não só.

“Já tinha uma ligação aos livros, trabalhando em editoras, como a Campo da Comunicação, ou ligado à Outro Modo, responsável pela publicação da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. Eu e o Bernardino Aranda estávamos ligados a uma associação, a Unipop, onde criámos seminários, espaços de debate e uma revista, a Imprópria. Foi dessa vontade de trabalhar com livros e programação que nasceu esta casa”, explica.

A zona junto à montra é, quinzenalmente, dedicada a um tema. Neste momento, o 25 de Abril serve de mote à escolha dos destaques. Aliás, em toda a loja, a escolha dos títulos não esconde uma costela ideológica, acentuada com a criação de uma chancela editorial, onde títulos como O Governo das Desigualdades ou Os Bancos: Antes da Nacionalização convivem com obras de Sallete Tavares ou as novelas gráficas de Júlio Barata.

Aqui, não se faz distinção entre livros novos e usados, partilhando ambos as respetivas secções. Ficção, Ciências Sociais e Humanas, Artes, Poesia, Infantil, Juvenil, são algumas das divisões que as estantes acolhem. E uma boa aposta no livro escolar. “O Bernardino já tinha uma livraria de família e tem muita experiência nesse sector, desde o início que entendemos dedicar-lhe muita atenção, até porque, é uma grande ajuda na sustentabilidade da livraria”, diz Fernando.Fernando Ramalho na livraria Tigre de Papel, a recitar um parágrafo do livro Casas Pardas, de Maria Velho da Costa.

Inicialmente, havia o Autor do Mês, em torno do qual eram organizadas as atividades, conforme testemunham os cartazes criados pelo argentino Alejandro Levacov, igualmente responsável pelo logótipo da loja, artista que morava na zona. “O primeiro grande evento foi sobre o José Saramago, tivemos aqui a Pilar Del Rio, a casa estava cheia até à porta”, recorda. E foi essa programação regular que fez destacar o local. Com frequência, autores que eram quase vizinhos marcaram presença, como Dulce Maria Cardoso, Manuel da Silva Ramos, Rui Tavares, Ricardo Pais Mamede ou José Tolentino Mendonça. “A dada altura, começámos a gravar as sessões em áudio e os podcasts estão disponíveis no site”.

Resta interpretar o nome da livraria, que surgia numa lista de hipóteses iniciais postas à discussão entre amigos. Quando se deram conta dos ecos de uma frase de Mao Tse Tung (“o Capitalismo é um tigre de papel”), tiveram a certeza de que estava encontrado o nome.

Nobreza de livreiros

A rua é pacata, apesar desta zona da cidade fervilhar, uma travessa inclinada que faz a ligação entre a Avenida Pedro Álvares Cabral e a extensa Rua de São Bento, batizada com o nome de uma jovem do séc. II, assassinada por recusar casamento, Santa Quitéria. Entra-se. As estantes altas a todo o comprimento, os sacos com livros espalhadas pelos cantos, as pilhas de volumes que exibem o colorido de algumas capas, são reflexo do dinamismo que transparece.

O pátio ao fundo, a céu aberto, será mais propício para momentos de leitura relaxante, dois dedos de conversa entre clientes habituais. Apesar da designação, a Livraria Snob prima pela descontração. Mas, quanto ao nome da casa, já lá iremos.

«Formei-me em Literatura, sabia que queria trabalhar com livros, mas não sabia bem de que forma. Ainda pensei em ser professora, mas percebi que não era isso o que queria. Saí da Faculdade em 2004, um ano depois, fiz uns audiolivros no Ministério da Cultura e, ainda em 2005, comecei a trabalhar na livraria da Fnac. Foi aí que percebi o que queria fazer», resume Rosa Azevedo, 38 anos.

A livraria nasceu em Agosto de 2014, ainda em Guimarães, fundada por Duarte Pereira. Um mês depois, Rosa e Duarte conheceram-se, foram mantendo o contacto e, quando a livraria arriscou vir para Lisboa, era 2016, não havia volta a dar, eram a dupla certa para levar a aventura adiante. Instalaram-se na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul (primeiro, na histórica sede, ao fundo da Av. D. Carlos I, depois, em São Bento). Até que tentaram a autonomia e montaram casa própria.

“A nossa maior aposta é na edição independente, se não fossem as pequenas editoras, quase não tínhamos os novos autores portugueses de poesia. E temos muitas edições de autor. O que marca a diferença numa livraria, é a surpresa, se não te surpreendes, não vais voltar. E fizemos muitas feiras, um pouco por todo país, as feiras têm a vantagem de decorrer em sítios que não são livrarias e, portanto, captarem outro tipo de público”, conta Rosa.

Integram a RELI – Rede de Livrarias Independentes, mas a defesa do pequeno negócio, é de há muito. De 2009 a 2014, Rosa integrou o Movimento Livreiro, participou nos Encontros Livreiros, em Setúbal, dinamizados em torno da Livraria Culsete, até morte do seu fundador, Manuel Medeiros. Desde 2007, cria cursos temáticos, sobre Literatura Portuguesa do séc. XX, ou do séc XXI, o Surrealismo ou aquele a que chamou As Mulheres Raras, em torno de escritoras esquecidas do séc XX, formações que têm passado por livrarias ou Câmaras Municipais.Rosa Azevedo na livraria Snob, a recitar O Poeta em Lisboa, um poema de António José Forte.

Mas, tínhamos prometido: e o nome da loja? Rosa sorri durante toda a resposta: “É uma brincadeira com a origem da palavra, ‘sine nobilitate”, ou seja, sem nobreza, significava exatamente o oposto do que passou a representar. Inicialmente, era uma provocação. Por nós, interpretem como quiserem”.

A tradição livreira da resistência

Foi em Abril de 2009 que Cristina Marques começou a trabalhar na Buchholz. Nasceu um ano antes destas portas se abrirem. “No Algarve, filha de um pescador e de uma doméstica, estudei em Portimão e vim para Lisboa quando casei. Comecei a trabalhar no Centro Comercial das Amoreiras, logo quando abriu, em 1985, mas foi por pouco tempo”, recorda. Quando a loja fechou, o marido de uma colega, que fazia a contabilidade do dono da Livraria Arco-íris apresentou-a ao importante livreiro Mário Reis, militante dinâmico do PCP – que acolhia com regularidade na sua loja figuras como António Guterres ou Paulo Portas, e seria o responsável por lançar Cristina neste mundo.

Ela lembra-se bem. “Comecei no dia 22 de Outubro de 1986, fui contratada para abrir o piso de cima da livraria”, recorda com pormenor, tal como recorda as visitas regulares do vizinho da loja, David Mourão-Ferreira, “muito delicado, um cavalheiro”, o então Presidente da República Mário Soares, “que fugia dos guarda-costas, para se perder pelas estantes” ou do escritor e professor universitário Rui Zink, “quando era ainda um estudante”.

Ficou até 2002, assistindo à falência da casa. “Isto dos livros é um vício, começa-se e nunca mais se para. Já são quase 35 anos desta vida.” No mesmo espaço, a Coimbra Editora – outra falência a que assistiria, anos mais tarde – lançou a sua nova loja Jurídica, e finalmente a Leya ficou com a loja, que integra hoje, sob a designação Leya na Buchholz.

“É um local muito especial”, comenta, enquanto sobe e desce o olhar pelos três pisos, pela escada de caracol, pelo elevador junto à porta que transporta os livros à cave, que acolhe agora uma Loja do Professor. A mesma cave onde, até 1974 funcionou uma galeria, acolhendo artistas como José Escada, Noronha da Costa, Eduardo Nery ou Malangatana. “As colunas, os banquinhos, tudo isto foi idealizado pelo fundador e uma boa parte veio da loja antiga”, conta Cristina Marques.

A loja data de 1943, quando Karl Buchholz abriu, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, uma livraria com o seu nome, depois da que tinha na Alemanha ter sido bombardeada levando-o a procurar paragens mais pacíficas. Em 1965 passou de armas a bagagens para a Rua Duque de Palmela e consolidou-se como um centro da intelectualidade e da nata política portuguesa, com Francisco Sá Carneiro, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes ou Vasco Graça Moura entre a clientela fiel. A oferta abundante de livros importados, a galeria de Arte e a secção de Música Clássica eram motivos fundamentais para cativar os clientes mais exigentes. Cristina Marques na livraria Buchholz, a recitar O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro.

Cristina não tem memórias tão longínquas, mas tem outras, igualmente importantes. Como aquele dia, inícios deste século, em que estava com uma banca na Faculdade de Direito. “Na secção de livros estrangeiros, um aluno perguntou por uma obra de Direito Administrativo, em Francês, uma coisa cara. Mostrou muito interesse, mas logo teve de confessar que era um livro demasiado pesado… para o seu bolso. O professor que estava ao lado, a folhear, percebeu o embaraço, perguntou-lhe que dinheiro tinha, pagou o restante na caixa e o rapaz saiu dali delirante de alegria”. O professor era um cliente já conhecido, leitor compulsivo e bibliófilo com pergaminhos, que dá pelo nome de Marcelo Rebelo de Sousa.

A poesia nunca estará completa

Changuito nasceu em Lisboa, em 1973, chamaram-lhe então Mário Guerra. Hoje, é pela alcunha familiar universalmente disseminada que todos o conhecem e tratam. A Poesia Incompleta, no Bairro da Lapa, é a forma que encontrou para se relacionar com o mundo.

“Geri um bar durante 12 anos, depois fiz outro bar, já com livros (em 2006) chamado A Mariquinhas, no Largo de Santo Antoninho, no fim do Elevador da Bica e, em 2008, abri a Poesia Incompleta, perto do Príncipe Real. Depois, fui para o Brasil. Apaixonei-me. No Brasil correu muito mal. A livraria! A paixão não, correu bem…”, esclarece.

Depois da entrada, discreta, percorrendo as estantes laterais, a oferta é clara. “Uma livraria de poesia, toda a poesia, interessa-me a poesia que saiu ontem e a que saiu há 150 anos. De poesia, dizia, e de correlatos, ou seja, biografias de poetas, ensaios sobre poetas, ou correntes estéticas, prosas de poetas… aquilo que há em volta da poesia. Quase todos novos, cada vez tenho menos coisas usadas”, vai descrevendo, salientando a como a poesia é a Rosa do Mundo (para citar a magistral antologia internacional organizada por Hermínio Monteiro). “Agora devo ter à volta de vinte e tal idiomas, quando fechei a loja do Príncipe Real tinha 59”.

Com exceção das antologias e de algumas propostas em áudio, as prateleiras são preenchidas por ordem exclusivamente alfabética, “o Ernesto Sampaio ao lado do Ezra Pound. E eles entendem-se”, graceja Changuito, acabando por defender a capacidade que a poesia terá de ultrapassar as ideologias, ao evocar “aquele vídeo do Pasolini, a ler as traduções ao Ezra Pound, já muito velhote… um tipo que foi acusado de ser tudo, anti-semita, branco, de um país dominante, a escutar, com a máxima atenção, as traduções de um homossexual, de um país pobre, de uma região pobre desse país, comunista… tu percebes que há uma espécie de entendimento pela beleza”, afiança.

Programação, houve e voltará a haver, como “leituras de poesia, que eu e alguns convidados fazemos, lançamentos de livros, conversas com editoras, e umas entrevistas que eu vou fazendo com gente de que gosto, que se chamam Tédio Talks. Conversas a partir do ócio, e não do lazer”, alerta, minucioso.

O nome da casa tem uma dupla motivação. Primeiro, é “uma homenagem ao Mário Dionísio, cujo volume de poesia reunida se chamava assim. Depois, mesmo que tivesse a Songanol a patrocinar-me, eu nunca conseguiria completar a poesia”, ironiza.

Esta vida excede a dimensão profissional, como facilmente se apercebe quem desfrute de dois dedos de conversa com o livreiro. “Abri porque não havia, mesmo em outros países, há muito poucas. Não é um movimento empresarial, é uma necessidade de um leitor. Nós podemos reler o Moby Dick, o Crime e Castigo, o Dom Quixote… um poema, um grande poema, quando te toca, uma leitura ressoa muito tempo, mas tu voltas, e voltas, e voltas… e um grande soneto lê-se em um minuto, não há capítulos de grandes livros que se leiam em um minuto”, comenta.João Morales a recitar Em Lisboa com Cesário Verde, um poema de Eugénio de Andrade.

A conversa deriva para a rapidez com que as livrarias, ditas mainstream, reduzem os livros a relâmpagos nos expositores, a mesma velocidade que nos dita os dias, a utilização das tecnologias em massa, um ritmo cego, desenfreado e decepcionante. Changuito acaba por deixar escapar: “Ler poesia é uma grande maneira de mandar este ritmo à merda”.

quarta-feira, abril 28

O mergulhador

 

Margherita Grasso

A senhora do retrato

Wada Eisaku
Os retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem das molduras e começassem a passear pela casa. Para falar verdade, estou convencido que isso aconteceu algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno, ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não gosto de atravessar os longos corredores das velhas casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de repente pode acontecer.


Havia na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante. Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca, se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste. Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez o único que não me assustava. Creio até que dele se desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me protegia.

Mas havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando passava diante do quadro. Às vezes fazia figas e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa passava sem olhar.

- Essa pergunta não se faz - disse-me um dia em que lhe perguntei quem era aquela senhora.

Percebi que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes descaía-me e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do retrato.

Com a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava das convenções, talvez das próprias pessoas. Por vezes era difícil saber quando estava a sério ou a brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido agudo do ridículo. Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que conheci. Era óbvio que tinha um fraco por mim. Pelo menos era o único membro da família a quem ela tratava como um igual. Dormia no andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do retrato.

Um dia, farto já de tanto mistério e ralhete e, sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a África do Sul.

Apareciam juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu primo estava de smoking e ela de vestido de noite. Via-se também a tia Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do retrato já de branco vestida.

- Natacha - murmurou a minha tia, com uma névoa nos olhos.

E depois de um silêncio:

- Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha, sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana. Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa. Era uma propensão do seu espírito.

- Tu também tens alma russa - dizia-me. E era como se me tivesse armado cavaleiro.
Manuel Alegre, "O Homem do País Azul"

Equilibrista sobre a fogueira

 

Lutfu Cakin (Turquia)

Um convite irrecusável

O convite era irrecusável: dar um depoimento para a campanha em prol das livrarias cariocas. Argumento, Da Vinci, Berinjela, Blooks, Malasartes, Janela, Lima Barreto, Folha Seca e outras estão em risco não só pela pandemia que esvaziou as ruas e o comércio, mas também pela concorrência das grandes corporações, que fazem uma competição desleal nos preços e inviabilizam o negócio para os pequenos. É uma campanha justa e necessária, uma cidade não é uma cidade sem suas livrarias.

O problema é que sou péssimo em depoimentos. Ao vivo minhas ideias parecem confusas e sem sentido, não sei se vou para lá ou para cá nos argumentos e acabo levando um baile na retórica. Acaba que ninguém entende nada, não se sabe se sou contra ou a favor e no fim nem eu mesmo compreendo o que disse. Sem falar na dicção péssima: engulo as sílabas e os esses como se fossem pipocas no cinema. Quando era criança a minha mãe repetia que eu deveria ir ao fonoaudiólogo, porque ninguém entendia o que dizia. Com o tempo passou a fazer campanha pela ida ao terapeuta, porque o problema é que ninguém entende o que penso. Uma visionária.

Ao gravar a primeira tentativa lembrei da mamãe. Parecia um tweet do Carluxo narrado pelo Chewbacca. Achei que era melhor dar uma olhada nos depoimentos dos outros e — na cara de pau — copiar o que fizeram. O Gregório falou muito bem na frente de uma biblioteca. A Miriam Leitão disse o fundamental com um monte de livros atrás e o Marechal, sábio, parecia desfilar na Biblioteca do Congresso. Eu, com rara perspicácia, percebi que havia algo em comum: livros. Para não dar vexame tirei do armário a coleção “Imortais da literatura universal” — que ganhei nos anos 70 e ainda não li —e botei “Crime e castigo” no lugar no “Manual do Escoteiro Mirim”, “Moby Dick” na frente do “Pequeno Príncipe” e “Os Irmãos Karamazov” escondendo a coleção de autoajuda. Mesmo assim não ficou bom, a iluminação da sala me deixou com olheiras profundas — praticamente um panda — e, com uma dicroica bem por cima, a cabeleira ficou no estilo piscina: “cheia, mas dá pra ver o fundo”. Um desastre visual, pecado mortal para um fotógrafo.


A solução foi ir para a Gávea, para o meu estúdio. Lá tem um espelho de camarim, aquele com um monte de lâmpadas em volta, que deixa todo mundo lindo. O importante é a cútis, já tinham me alertado o Cauby e a Hebe. Era só gravar na luz do camarim que estava resolvido, ninguém me daria mais do que 52. O problema é que por trás ia aparecer só uma dúzia de livros, os que estão exilados na Gávea.

Veja só leitor, a minha situação: ou eu gravava na sala, para tirar onda de inteligente em frente a um monte de livros, ou então com poucos livros, mas na luz favorável do estúdio, para ficar bonito. A eterna disputa entre aparência e conteúdo. A aparência, claro, venceu, afinal estamos em 2021. O depoimento ficou confuso, a voz parece a do Moro com gripe, mas reparem bem: nada de olheiras, nenhuma ruga. Um pêssego, diriam, orgulhosos, Hebe e Cauby.

Não acredito que o meu desastroso testemunho vá colaborar com esta justa campanha, que os leitores também devem apoiar, frequentando e comprando nas livrarias de rua. Melhor seria se eu encontrasse outra maneira de ajudar, que não envolva câmeras ou microfones. Prometo aos organizadores pensar em algo.

terça-feira, abril 27

Porta da felicidade

 


Tristeza

Fui outro dia ao Monte Carlo, grimpado na montanha, sobre as águas da lagoa onde Paulo Soledade e Fernando Lobo organizaram um show de qualidade, iluminado pela graça de algumas jovens realmente belas. O Grande Otelo, artista como sempre, brilha em seu número. Confesso, porém, que em certos momentos (na primeira noite; não sei se continua assim) as palavras do negro assumem, no meio de toda a brincadeira, um travo de ressentimento racial ou social que, justo ou não, destoa de uma atmosfera de show de boate.

Ontem à noite fui a outra boate, em que Josephine Baker sabiamente esconde as suas pernas outrora miraculosas e seu corpo outrora empolgante em belos vestidos de Dior. Ela domina tranquilamente a plateia ― cantando, evoluindo pelo tablado, dizendo coisas. E são coisas cheias de graça, que ela diz com muita classe; mas aqui também, quando Josephine fala de amor e do passado, e se refere à sua idade, há uma nota de tristeza que não me parece nada estimulante.

Está claro que show não é teatro, onde cabem todos os sentimentos e fica tão bem o drama quanto a comédia. Será que a vida anda ficando tão triste que até nos lugares de prazer ela infiltra o seu amargor e a sua melancolia? Ou eu é que estarei ficando mais sensível ― fisicamente incapaz, por exemplo, de comprar o último número dessa revista habitualmente bela só porque sua capa, no lugar de alguma coisa sedutora ou alegre, mostra um senhor de idade tomando banho de mar, e com esta legenda tristemente mentirosa: "a vida começa aos 70"? Mas a verdade é que a letra dos sambas e dos blues também fala de coisas tristes, miséria, desengano, saudade, desprezo; e nem por isso tais tristezas aborrecem ninguém, antes embalam a criatura e ajudam a levar a vida.

Há alguma coisa de errado nesses shows e nessa revista ilustrada: que eles nos contem coisas, mesmo coisas melancólicas, mas sem inspirar essa "apegada e vil tristeza" que nas ruas do quotidiano a gente já encontra demais.

Ganhe asas

 


Assim começa...

Desde quando eu era criança, meu pai já me falava constantemente do Pavilhão Dourado. Nasci em um promontório solitário e pobre, projetado sobre o mar do Japão, a nordeste de Maizuru. Meu pai, contudo, não nasceu ali, mas em Shiraku, nos subúrbios a leste de Maizuru.

Abraçou a carreira monástica cedendo a pedidos insistentes. Veio depois a assumir o cargo de prior em um templo existente nesse promontório perdido, casou-se com uma mulher da região e teve um filho –– que sou eu.

Não havia escolas secundárias nas proximidades desse templo no promontório de Nariu. Com o passar do tempo, deixei meus pais e fui morar com um tio que vivia em Shiraku, para ali frequentar a escola secundária Maizuru Leste. Costumava então percorrer a pé o caminho até a escola.

A região era profusamente iluminada pelo sol o ano todo.

Entretanto, por volta de novembro e dezembro, chuvaradas repentinas sobrevinham três ou quatro vezes ao dia, mesmo quando o céu se mostrava perfeitamente limpo e sem resquício de nuvens. Penso até que a terra possa ter influído na formação desta minha alma volúvel.

Nas tardes de maio, ao regressar da escola, eu costumava observar os morros distantes através da janela da minha saleta de estudos no andar superior da casa de meu tio. Os raios do sol poente se refletiam sobre a jovem folhagem que revestia a encosta dos morros, e um biombo dourado surgia inesperadamente bem no meio da pradaria. Isso despertava na minha imaginação o Pavilhão Dourado.

Eu tinha conhecimento de como era na realidade o Pavilhão através de fotografias e também das descrições constantes nos livros didáticos. Contudo, a imagem que eu formara, transmitida por meu pai, sobrepujava essa realidade. Creio que meu pai nunca se valeu de adjetivos como “resplandecente” ou similares para descrevê-lo, mas para ele nada mais formoso havia sobre a face da Terra do que o Pavilhão. Dessa forma, o simples aspecto dos caracteres que formavam o nome, a própria pronúncia desses caracteres despertavam na minha alma uma imagem desmesurada.

Bastava ver reflexos do sol na superfície das águas dos arrozais distantes para eu achar neles a miragem do Pavilhão invisível. O Passo de Kichizuka, que divide a província de Fukui e o município de Quioto, ficava bem a leste. Era onde o sol nascia todas as manhãs. A direção era oposta à de Quioto, mas eu via ali o Pavilhão imponentemente erguido ao céu entre os raios do sol da manhã que subiam dos vales.

Assim, o Pavilhão Dourado me surgia em todas as partes.

Contudo, avistá-lo mesmo era impossível, e nisso ele se assemelhava ao mar da região—as montanhas obstruíam a visão da baía de Maizuru, situada a pouco mais de dois quilômetros a oeste da aldeia de Shiraku, deixando entretanto sempre presente a sensação da proximidade do mar. Percebia-se vez ou outra o seu odor nos ventos, e muitas gaivotas vinham pousar nos arrozais das cercanias, fugindo de temporais.

segunda-feira, abril 26

Leitura entre secos e molhados

 


Cajueiro

O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações da minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás da casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.

Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga. da grande touceira de espada-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente de “tala”) e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, “beijos”, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.

No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.

A carta de minha mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.

Foi agora, em setembro. Estava carregado de flores.

Rubem Braga, "O homem rouco"

domingo, abril 25

O tempo vale muito mais do que o dinheiro

 Mila Marquis
Perder tempo não é como gastar dinheiro. Se o tempo fosse dinheiro, o dinheiro seria tempo.

Não é. O tempo vale muito mais do que o dinheiro. Quando morremos, acaba-se o tempo que tivemos. Quando morremos, o que mais subsiste e insiste é a quantidade de coisas que continuam a existir, apesar de nós.

O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna. Temos o tempo que temos. Depois de ter acabado o nosso tempo, não conseguimos comprar mais. Quando morreu o meu pai, foi-se com ele todo o tempo que ele tinha para passar connosco. As coisas dele ficaram para trás. Sobreviveram. Eram objectos. Alguns tinham valor por fazer lembrar o tempo que passaram com ele - a régua de arquitecto naval, os relógios - quando ele tinha tempo.

As pessoas dizem «time is money» para apressar quem trabalha. A única maneira de comprar tempo é de precisar de menos dinheiro para viver, para poder passar menos tempo a ganhá-lo. E ficar com mais tempo para trabalhar no que dá mais gosto e para ter o luxo indispensável de poder perder tempo, a fazer ninharias e a ser-se indolente.

A ideologia dominante de aproveitar bem o tempo impede-nos de perder esses tempos. Quando penso no meu pai, todas as minhas saudades são de momentos que perdi com ele. Uma noite, numa cabana no Canadá, confessou-me que o único filme de que gostava era «Um Peixe Chamado Wanda«. Todos os outros eram uma perda de tempo. Perdemos a noite inteira a falarmos e a rirmo-nos disso. Ainda hoje tem graça.

Miguel Esteves Cardoso, Jornal Público, 26 Dez 2011

No fim do labirinto

 

Oguz Gurel (Turquia)

Coimbra

Para
João Paulo Moreira

Logo que conheci, tocou-me o coração. Fez lembrar a antiga Salvador. Grandes casas de muitas janelas nas encostas. Ruelas, becos e ladeiras. Tudo é relíquia preciosa nessa paixão secular, a vida aflora em ofícios de outros tempos. Transpira na pele do tempo aderência de seres e coisas numa sequência soberba de raridades arquitetônicas.

Na Alta de Coimbra a rainha do coração da cidade, a Universidade, fundada em 1º de março de 1290. A Torre desponta como o seu emblema e da própria cidade, mal o dia mostra os primeiros vestígios. A mulher no hotel disse-me que um dos sinos, numa das grandes janelas, chamado de “a cabra”, regulou a vida acadêmica e da cidade durante muitos anos. A Torre emerge num sobranceiro barroco, a sobressair na linha dos telhados.

A Biblioteca Joanina distingue-se também na Alta de Coimbra. Obra de artistas portugueses, com o seu portal nobre no exterior, de estilo barroco. Cobertos por sólidas estantes as paredes no interior. Ricamente decorado o andar superior com três amplas salas. Decoradas com talha lacada a verde, vermelho e dourado, comunicam-se entre si por arcos idênticos ao portal que na parede superior ostentam insígnias das antigas Faculdades. Formas arquitetônicas da ilusão impressionam, a revelar o milagre do fazer a vida além da morte, de maneira artística. O edifício começou a ser construído por ordem do Rei D. João V, entre 1716 e 1724. Abriga riquíssimo conjunto bibliográfico mundialmente famoso, superior a trezentos mil volumes.

A cidade cantada nas histórias que encantam guarda uma atmosfera de recolhimento. Altares em formas de tessitura humana artisticamente trabalhada e o órgão barroco. A Sé Velha assenta-se num monumento românico considerado o mais belo de Portugal. Ali, a Igreja de Santa Cruz. Fundada há mais de oitocentos anos pelo primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, foi berço esplendoroso da renascença Coimbrã. Ali, a Igreja de São Tiago e a Praça do Comércio para onde convergem ruas medievais. E o Arco de Almedina e as escadinhas do Quebra-Costas e a Porta Manuelina do Palácio de Sub-Ripas e a Torre do Anto. E a silhueta monumental da Sé Nova e o Museu Nacional Machado de Castro, com suas admiráveis coleções de pintura, escultura, ourivesaria e tapeçaria. E, junto à margem esquerda do rio Mondego, a Igreja de Santa-Clara-A-Velha, abrigo maternal do imponente Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova, onde repousa a Rainha Santa Isabel, a padroeira da cidade.

Estende-se belíssimo manto branco de casario na cidade cruzada por séculos e séculos de história, que aconchega nas serenatas de fado de Coimbra e suaviza em seus beirais floridos. Faz da noite criança adormecida de sono nas cantigas cantadas pelas vozes jovens de As Mondeguinas.

Comoventes vozes, alternância de vagas tristes e remotas, que batem e voltam e batem. No aceno da distância amanheço com esses raios de sol no quarto e vou até a sacada do apartamento no hotel. Ruídos acendem o dia, acontecem em geral com os humanos por todos os pontos da cidade cheia de vida.

Saudade e paixão, saber e beleza, labor e oração. Inteligência que se vê em líquido sentido no espelho real do rio Mondego. À margem o provisório tempo secular ante o eterno que passa por debaixo dos arcos da Ponte de Santa Clara. Melhor sabem isso as andorinhas que trissam no céu azul. Desfiam o vento ameno e propõe sobre os telhados outra manhã de verão.
Cyro de Mattos

Os dias e os livros, tudo a ver


 

Entre a Amazon e a pressão por mais tributo, como é difícil a vida das livrarias de rua no Brasil

Num largo em frente à areia do Porto da Barra, uma das praias mais famosas de Salvador (BA), um pequeno prédio de dois andares abrigava um acervo de 15.000 livros. A livraria e sebo Porto dos Livros, que celebrava saraus e receitais, era um refúgio para os amantes da literatura, com direito a um pôr-do-sol privilegiado em um dos cartões postais da capital baiana. “Era um lugar de encontro de toda forma de arte”, diz Carla Urbanetto, uma das proprietárias do local, assim, no passado, porque a sua foi uma das livrarias que fecharam as portas durante a pandemia no Brasil. As vendas online não foram suficientes para cobrir os custos do espaço físico e agora o Porto dos Livros existe apenas na internet. “Não tivemos alternativa a não ser vender pelo site e pelo Instagram. Ainda fazemos os saraus de forma online, mas não é a mesma coisa. Não é fácil viver de livro e vender livro no Brasil”, lamenta Urbanetto, ao telefone.

A história do Porto dos Livros é um exemplo de como a pandemia agravou a crise que o mercado editorial e livreiro no Brasil arrasta nos últimos anos, principalmente com os processos de recuperação judicial das redes Saraiva e Cultura —que eram responsáveis por até 80% do faturamento das editoras, segundo as fontes ouvidas pelo EL PAÍS—. Agora, novas pressões somam-se ao caldo de dificuldades do setor: de um lado, a Amazon, que tornou-se uma das maiores revendedoras de livros no país, pressiona as editoras por mais descontos; do outro, a Receita Federal propõe acabar com a isenção de impostos sobre livros, considerando tratar-se de itens consumidos principalmente por uma parcela mais rica da população.

Foi justamente durante a quebra das grandes redes de livrarias que surgiu, em 2019, a Mandarina, uma livraria de rua em São Paulo, no bairro de Pinheiros, focada em obras sobre humanidades, poesia e literatura nacional e estrangeira. “Quando completamos oito meses, a pandemia se instalou. Aí, passamos a realizar cursos online e mantivemos nosso clube de leituras de modo virtual. Por sorte, já havíamos fidelizado uma clientela”, conta Daniela Amendola, sócia da Mandarina ao lado de Roberta Paixão. Apesar disso, elas tiveram que criar, em março, uma campanha nas redes sociais para manter em funcionamento a casinha com um charmoso quintal onde funciona a Mandarina. “Conseguimos negociar com as editoras e manter o negócio. Uma livraria de rua sobrevive a qualquer coisa desde que exista proximidade e conversa com editoras, autores e leitores”, afirma Amendola, que sempre teve o sonho de ser livreira, seguindo os passos do avô, João Amendola, considerado o primeiro livreiro da cidade de Campinas (SP).

São essas pequenas livrarias e editoras as mais afetadas pelas práticas comerciais mais agressivas no mercado. No dia 10 de março, a Amazon enviou um e-mail a diversas editoras sugerindo que ofereçam descontos entre 55% e 58% sobre o preço de capa dos livros, além de uma taxa de 5% para a publicidade das obras na plataforma —a praxe é oferecer entre 45% e 55% de desconto, mais 2% ou 3% para marketing—, o que gerou uma resposta conjunta do setor. “Hoje as editoras lucram, no máximo, 4% em relação à receita líquida. A Amazon pede descontos de até 8% da receita líquida, é impossível atender essa imposição. Ninguém em sã consciência acredita que seria possível repassar isso no valor do livro para o consumidor”, explica Henrique Farinha, presidente da editora Évora e porta-voz da iniciativa Juntos pelo Livro, composta por 130 pequenas e médias editoras. Todas elas enviaram à Amazon uma carta na qual afirmam ser inviável conceder descontos maiores, pois “as condições solicitadas estão muito além das nossas possibilidades”. A gigante tecnológica afirma, em nota, que não comenta acordos específicos com seus parceiros comerciais e que “autores, editores e livreiros trabalham juntos para conectar os leitores aos livros”.

Se em outros países, principalmente na Europa, já faz anos que a Amazon “ameaça” acabar com as livrarias de rua, no Brasil, esse fenômeno é recente, conforme explica Marisa Midori, professora especialista em História do Livro da Universidade de São Paulo (USP). “O movimento de venda de livros por e-commerce ainda era incipiente no Brasil antes da pandemia. A Amazon tinha chegado com timidez, mas, a partir do ano passado, ganhou mais terreno rapidamente. As condições que oferece são boas para grandes editores, mas não para as menores”, avalia.

Leitora no interior da livraria Simples, em São Paulo

A pressão por mais descontos, no entanto, não é exclusividade das vendas online e tampouco foi inventada pela multinacional, conforme conta Ivana Jinkings, publisher da Boitempo, editora que também participa do Juntos pelo Livro. “Sempre tivemos o cuidado de não concentrar muito nossas vendas em uma só livraria, porque as grandes redes faziam o mesmo que a Amazon faz hoje, e me orgulho em dizer que a gente não caía nesse tipo de chantagem. Elas ameaçavam não comprar mais com a gente se não aumentássemos os descontos. Ficavam duas semanas sem comprar, mas depois voltavam”, relata. Jinkinks reconhece, no entanto, que a plataforma virou uma “grande tábua de salvação” para algumas editoras, uma vez que a empresa chega a oferecer pagamentos à vista, quando a praxe em algumas livrarias é pagar em até dois meses ou mais.

O preço é o principal fator de decisão na escolha de um título e influencia 22% dos leitores brasileiros na hora da compra de livros, de acordo com a pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural. Os dados também mostram que cerca de 27 milhões de brasileiros da classe C consomem livros, número que contraria a tese de Paulo Guedes, ministro da Economia, de que apenas os ricos leem livros no país. Esse é o argumento usado para justificar a incidência da alíquota de 12% referente à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) apresentada na Reforma Tributária que tramita no Congresso —a venda de livros e do papel destinado à impressão é imune à cobrança de impostos, segundo determina a Constituição, e uma lei de 2014 concedeu isenção de Pis e Cofins sobre a receita da venda de livros e do papel usado para a fabricação desses produtos—.

Em um recorte socioeconômico, a pesquisa revela um paradoxo entre as classes sociais: A e B têm níveis mais altos de leitura do que C, D e E, mas também tiveram as maiores quedas entre 2015 e 2019: enquanto o número de leitores diminuiu 12% na classe A e 10% na B, a queda entre D e E foi de apenas 5%. No mesmo período, os preços dos livros caíram em 20%, apesar do aumento do preço do papel e do fechamento das grandes livrarias, como mostra o balanço de mercado feito pela Nielsen Books. “Não tem lógica impor tributo a um setor que gerou redução de preço para o consumidor. Além disso, a tributação geraria um efeito bumerangue para o próprio Governo, que é o maior comprador de livros didáticos no país, sendo responsável por metade das vendas do setor”, explica Henrique Farinha. Em 2019, o Governo federal gastou 1,1 bilhão de reais para adquirir 126 milhões exemplares no PNDL (Plano Nacional do Livro Didático).

Para Marisa Midori, o tributo geraria uma arrecadação “ínfima”, já que, segundo ela, “o Brasil está longe de ser uma potência editorial”, setor que contribui com menos de 0,1% do PIB nacional. “Se o Governo quer engordar o Tesouro, deveria criar estratégias para, de fato, taxar os mais ricos, como o imposto sobre grandes fortunas. Na Suíça, esse imposto tem impacto de 11% na arrecadação. Na Noruega, esse impacto corresponde 7%”, exemplifica a especialista.

Midori considera que o imposto sobre os livros teria, isso, sim, um impacto simbólico, já que o país ainda está em formação de leitores. “É uma mostra de que o Governo se recusa a amparar a população do ponto de vista da educação e da cultura”. Daniel Lameira, um dos sócios da editora Antofágica, concorda. “A proposta não visa um ganho tributário, é apenas um ataque a um setor que forma massa crítica”, diz. Lameira acrescenta ainda que o aumento nos preços de livros, caso a tributação fosse aprovada, aumentaria a pirataria e complicaria a diversidade literária, afetando o mercado nacional como um todo. “As editoras nacionais perderiam terreno para aquelas estrangeiras, como a Planeta [espanhola] e a Harper Collins [norte-americana]”, explica.

O publisher da Antofágica, que publica clássicos da literatura em edições especiais ilustradas artistas —um cuidado estético também presente na escolha de fontes e na diagramação de cada obra— também contesta o argumento de que apenas ricos leem. Com títulos que custam até 70 reais, Lameira arrisca dizer que o leitor e cliente da sua editora pertence, majoritariamente, às classes C e D. “É um leitor que responde muito bem às promoções. Por isso, fazemos uma pré-venda agressiva, em que um livro de 70 reais sai por 30 reais. Em uma outra ação, vendemos 70 mil e-books por 25 centavos, um preço meramente simbólico”, conta.

Todos os publishers, livreiros e especialistas ouvidos nesta reportagem concordam que uma medida que ajudaria a desafogar o setor seria a aprovação do Projeto de Lei do preço fixo do livro, que propõe que todas as livrarias (físicas e virtuais) poderão oferecer no máximo 10% de desconto em uma título durante o primeiro ano após o seu lançamento. Depois disso, caberia a cada loja decidir oferecer descontos superiores. De autoria do senador Jean Paul Prates (PT/RN), o projeto de lei —similar ao aplicado em países como a França— está estacionado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado desde 2017.

“Essa medida serviria justamente para barrar políticas agressivas de empresas como a Amazon, que, muitas vezes, vende mais barato que a própria editora. O mais grave é esse tipo de política pode ditar o que se publica, porque se eles só compram determinado tipo de livro, os demais podem deixar de existir”, diz Ivana Jinkings.

Apesar de o mercado editorial e livreiro depender quase exclusivamente de tinta e papel —a última pesquisa sobre as vendas de e-books no país, divulgada em 2017, mostrou que os livros nesse formato correspondiam a apenas 1,09% do setor— é no mundo digital que está chance de sobrevivência das pequenas editoras e negócios livreiros. Foi precisamente da inquietude sobre como se comunicar com o público que nasceu a Antofágica, em 2019, criada por sócios que trabalharam durante anos em editoras como Intrínseca e Aleph.

“Antes, as editoras não precisavam falar com o leitor, mas isso mudou. Queríamos ser menos como um varejista que só vende um produto e mais como uma editora que cria experiências para o leitor”, diz Lameira. Por isso, a editora mantém um grupo com leitores no Telegram, e alguns títulos vêm com QR codes que levam a aulas online sobre aquela obra. “É essa relação com o leitor que pauta as decisões editoriais. O fato de a quarta capa de cada livro ser apenas uma frase, por exemplo, foi pensado para o formato dos stories do Instagram. A escolha dos títulos passa por isso, toda a estética foi pensada para a dinâmica de redes”, acrescenta Lameira. Curiosamente, os livros da Antofágica podem ser comprados apenas na Amazon ou em livrarias independentes.

Na livraria Simples, localizada em uma charmosa casinha azul no centro de São Paulo, a presença nas redes sociais tem sido fundamental para manter o funcionamento da loja. “Tivemos que migrar para a venda online por conta da pandemia. Até abril do ano passado, sequer tínhamos um site institucional”, conta Beto Ribeiro, dono da Simples. Agora, à medida que vai registrando as entradas de livros no catálogo da livraria, ele mesmo já vi postando fotos e vídeos das obras para gerar interação com os leitores. “Essa comunicação é um diferencial, mas é um trabalho quase artesanal e que demanda muito tempo e dedicação. Às vezes, você troca mais de dez mensagens com um cliente para fechar a venda de um livro de 15 reais”, explica. Ribeiro acrescenta ainda que o que tem “segurado o rojão” da crise —para ele e outras fontes ouvidas na reportagem— é o espírito de comunidade em torno das livraria de rua, a fidelização dos clientes. “É só com os leitores que podemos contar”, conclui.

sábado, abril 24

O abduzido

 

Oguz Gurel (Turquia)


Os livros só mudam as pessoas

De todos estes momentos que me marcaram, há um que se definiu capital: o tempo da leitura, da descoberta do livro. Mário Quintana afirma que Os Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas. É uma verdade absoluta. Nunca mais fui a mesma desde que descobri o livro.

Referi já que a minha mãe nos lia todos os dias. Era um momento de grande atenção. A minha mãe lia muito bem. Sabia captar a nossa curiosidade. Não recordo que qualquer um de nós evidenciasse alguma distracção nesses momentos. Todos permanecíamos atentos e suspensos pela voz da minha mãe que dava a cada episódio o tom perfeito que lhe convinha.

A televisão apanhou-nos já tínhamos, há muito, o gosto pela leitura. Não sei dizer, com total exactidão, quando apareceu o primeiro aparelho de televisão em nossa casa. Sei apenas que já não residíamos na Quinta. Vivíamos numa bela cidade à beira-mar. Era e continua a ser para mim, uma das mais belas cidades portuguesas. Acredito, pois, que teria cerca de nove ou dez anos quando o meu pai trouxe um móvel com a televisão incorporada, mas ela nunca substituiu o livro. A competição nunca aconteceu. O livro era rei.

Rafat Alkhateeb (Jordânia)

Havia livros pela casa, mas a biblioteca estava no escritório do meu pai. Era lá que estava arrumado todo o tipo de livros. Havia de tudo. Livros encadernados, com letras douradas, nos mais diversos tamanhos. Enciclopédias e grandes dicionários. Uma Bíblia enorme que nos assustava pelo peso , grandiosidade do papel e profusão de imagens. Tudo a exigir o maior cuidado.O Atlas , que, cedo, aprendi a manusear para poder situar os países. Numa família, com ascendência estrangeira, visualizar o mundo era uma aposta necessária.

E eram tantos os livros que nunca mais me pude libertar do seu fascínio. Comecei a lê-los, sem qualquer restrição, a partir dos dez anos. Até lá , ia lendo os livros que só a minha mãe nos entregava. Foi com ela que li as histórias da Condessa de Ségur: Férias, As meninas exemplares, Um bom diabrete, Os desastres de Sofia, Memórias de um burro, O corcundinha e outras mais. Mulherzinhas de Louisa May Alcott. A obra de Charles Dickens em que os livros Oliver Twist , Grandes Esperanças, David Copperfield, Um conto de Natal me emocionaram muito. Aquela miséria , exploração, desprezo e atrocidades para com os pobres e crianças confundiam o conforto do meu quotidiano de infância. Aquele mundo inglês chocou-me e fez-me pensar que não gostaria de conhecer um país tão violento e de tanta segregação social.

Da mesma altura e pela mão da minha mãe li “ O suave Milagre” de Eça de Queirós; “As aventuras de Robison Crusoé”, de Daniel Defoe; “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift ; “Platero e Eu”, de Juan Ramón Jiménez; "Aventuras de Tom Sayer" e "As Aventuras de Huckleberry Finn" de Mark Twain; “ Vinte mil léguas submarinas” e “A Viagem ao centro da Terra” de Jules Verne; “ A ilha do tesouro”, de Robert Louis Stevenson; (...) e nunca mais parei. Vieram, em descobertas surpreendentes, tantos outros autores e tantos mais livros, num enamoramento que chega até hoje.

Aos poucos, fui-me iniciando nos grandes romances e nos grandes autores nacionais e estrangeiros. Lia copiosa e diversamente. Tudo me interessava.(...)
Era insaciável o meu desejo de ler, LER. Não importasse o quê, nem como.

Quando estive internada no colégio, todas as noites montava uma espécie de tenda com os lençóis , para ler debaixo da cama. Fazia-o com a ajuda de uma pilha eléctrica, arriscando-me a ser castigada se fosse descoberta. O prazer da leitura era tanto que me vestia de uma resistente imunidade a qualquer desses temores. Lia tudo: Hall Caine, Victor Hugo, Dostoievsky , Erskine Caldwell, Stendhal, Jane Austen, Leon Tolstoi , Somerset Maugham, Leon Uris, Boris Pasternack, José Régio , Romain Rolland, Zola, Balzac, André Gide, Pearl S. Buck, Daphne Du Maurier, Gustave Flaubert, Katherine Anne Porter, Jean Lartéguy, Leon Uris, Scott Fitzegerald, John Steinbeck, Aldous Huxley, H.G. Wells e também escritores brasileiros que iam desde o fundador José de Alencar em Iracema, Guarani , romances que me tolhiam de mágoa , a Machado de Assis, Manuel António Alves, Euclides da Cunha em “os Sertões”, obra que me marcou, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e um sem fim de outros escritores que se foi alargando à medida que fui crescendo.

Nesta fase de crescimento e descoberta , misturei vários géneros, vários autores e diferentes graus de interesse e de valor literário. Creio que foi um tempo de grande curiosidade que me fez abrir ao mundo, pelo que não se encerra, aqui, este tema.

Abordá-lo-ei mais tarde. É talvez um dos maiores temas da minha vida: os livros. Há quem diga que somos aquilo que lemos.
Maria José Vieira de Sousa, "O livro que já escrevi"

sexta-feira, abril 23

Dica de feriadão

 


A árvore que canta

Certa manhã o rei, que prometera a mão da princesa a quem conseguisse chegar ao reino das fadas, foi avisado de que certo mancebo desejava falar-lhe para referir episódios maravilhosos da viagem que empreendera ao país encantado, onde mortal algum jamais chegara.

O rei ficou em alvoroçada curiosidade e todos os áulicos agitaram-se com a noticia, sendo imediatamente despachada ordem para que o mancebo fosse introduzido na sala do trono, onde o monarca o esperava entre nobres da sua corte.

A princesa não desviava os lindos olhos da porta por onde devia entrar o ousado moço que, por seu amor, arriscara a vida entre gnomos e dragões, que tais eram os guardas das sete portas de bronze da capital do reino das fadas, e sorriu alegremente comovida, com duas rosas vivas nas faces, vendo aparecer o herói, que era jovem, formoso e gentil.

Inclinando-se graciosamente diante do rei e daquela que seria sua, se as provas confirmassem o que alegara, pôs-se a narrar a sua viagem, longa e penosa, por entre penhascos, através de campinas eriçadas de espinheiros, cheia de episódios interessantes, aos quais nem faltaram combates que teve de travar com anões que surgiram, aos milhares, das moitas de violetas, com um sonho impertinente que era a voz das suas tubas, enristando espinhos, que eram as suas lanças.

Descreveu os imensos e alfombrados jardins, as fulgurantes montanhas de cristal, os vastos palácios de jaspe e ônix, sustentados por fortes colunas de pórfiro e ladrilhados a ágatas e topázios.

Falou dos gigantes, altos como torres, que guardavam rebanhos de carneiros de velo de seda lustrosa e chavelhos de ouro; falou das formosas mulheres, que tanta vez admirara nos prados floridos, banhando-se nas manhãs ribeiras coalhadas de nenúfares, adereçando ginetes mais alvos do que a neve ou remontando-se, em carros prefulgentes que eram puxados por águias brancas.
Todos ouviam-no interessados e, ao cabo da narração, como o rei pedisse uma prova, porque não bastavam palavras, mostrou o moço uma romam de ouro, cujas bagas era preciosos rubis, dizendo have-la colhido no pomar do palácio da rainha das fadas.

O rei e a princesa admiraram o formoso fruto quando um dos cortesões, homem invejoso e que também pretendia a mão da donzela real, adiantou-se dizendo:

- O fruto é lindo, senhor, mas bem pode ter saído da oficina de algum ourives. Se veio de galho de árvore outros iguais tenho visto em montras e joalheiros.
Todos os cortesões concordaram com o fidalgo, mas o rei, que simpatizara com o mancebo, pediu-lhe outra prova do que dissera.

- Senhor, disse o jovem, tenho comigo o bastante para convencer, não só a V. Majestade, como a todos os nobres da côrte. E, fitando os olhos no invejoso, perguntou:

- No vosso andar pelo mundo já vistes, por acaso, alguma árvore que cantasse, desferindo acentos tão suaves como os desfere a mais afinada garganta?

- Confesso que ainda não vi, não pôde deixar de responder o odioso fidalgo.

E todos entreolharam-se com visíveis sinais de dúvida, alguns sorriram, tomando, talvez, por louco ao moço pretendente. Ele, porém, tirando do bolso de sua veste uma semente, apresentou-a ao rei dizendo:

- Senhor, foi no parque da rainha das fadas que vi e ouvi a árvore que canta. Era linda a noite; de luar e animada pelos silfos luminosos, pequenos como lavandiscas, que iam duma a outra flor. Uns sentavam-se nas pétalas, outros escondiam-se nas corolas, rindo. Eu caminhava quando ouvi o canto delicioso.

Julguei, a princípio, que era uma das fadas que desafiava os rouxinóis, mas um elfo esvoaçou sussurrando a uma pequena sílfide: "É a árvore que canta." E eu, seguindo-lhe o voo, cheguei ao sítio onde ficava a árvore e, toda a noite, deliciado, deixei-me estar a ouvi-la, até que a manhã rompeu e a árvore se calou.

Trago comigo uma semente da árvore que canta. plantai-a no vosso parque e, antes de uma semana, tereis a árvore frondosa, provando, com seus gorjeios, a verdade do que vos disse.

Aceitou o rei a proposta. mas o invejoso fidalgo, que só pensava em desfazer-se do rival, que tão depressa conquistara as graças da princesa, disse severamente:

- Senhor: é justo que se faça a experiência, mas, para que se não diga que fostes vitima de um embusteiro, que se lhe dê um prazo improrrogável ao fim do qual lhe caiba o prêmio ou seja punido como merece ser todo aquele que mente ao seu rei.

- Dou-lhe um mês, disse o soberano.

- Dois, delongou a princesa. Mas o mancebo replicou:

- Basta-me uma semana, nem mais um dia requeiro. Se ao fim do prazo, não se houver realizado o que eu disse, que o carrasco me venha buscar na prisão em que devo ficar. E, assim dizendo, entregou ao rei a semente preciosa.

- Planta-a tu mesmo, disse o monarca ao invejoso. Planta-a no parque, perto das janelas dos meus aposentos, para que eu seja o primeiro a ouvir-lhe o canto.
E o mancebo, que se sujeitara à condição, desceu, entre guardas, para a prisão do palácio.

De posse da semente maravilhosa, o cortesão perverso desceu ao parque com toda a côrte e, enquanto o jardineiro abria a cova, pode, sorrateiramente, substituir a semente por um seixo que foi logo coberto sem que os do grupo dessem pela troca e, certo da vitória, voltou-se radiante, dizendo:

Dentro de uma semana teremos uma árvore a cantar, se a não tivermos lá fora, ao sol, balançando um corpo no seu galho seco. Referia-se à força em que deveria ser justiçado o seu formoso rival.

Recolhendo ao seu palácio, desceu ao subterrâneo e lá, bem no fundo, cavando um fosso, deixou ficar a semente, cobrindo-a com terra e pedregulhos para que não vingasse e, tranquilo - porque tinha por inevitável a morte do mancebo - subiu, dizendo que fora à adega escolher um vinho precioso para oferecer ao rei no dia do seu próximo aniversário.

Todas as manhãs a princesa, muito interessada na vitória do mancebo e também curiosa de ouvir o canto da árvore, abria a janela e, nada ouvindo, descia ao parque e ia examinar o sítio em que fora plantada a semente. Nada! E a princesa chorava pesarosa, lamentando que tão corajoso moço acabasse na forca por seu amor.

Os cortesões sorriam. O próprio rei, impaciente, não ocultava o seu despeito, louvando a sutileza do fidalgo que o ia vingar exemplarmente da mistificação do embusteiro.

- Que morra! bradava enfurecido.

E os dias se passavam.

Na véspera de findar o prazo foram á prisão e acharam o moço dormindo tão tranquilamente que os próprios guardas tiveram pena de despertá-lo. Mas o fidalgo, para gozar a sua crueldade, chamou-o:

- Eh! amigo, expira amanhã o prazo que pediste e da árvore não há sinal na terra do parque. Andam operários na praça a levantar a forca em que, ao romper da alva, se fará justiça ao teu procedimento vil.

Os olhos do mancebo relampejaram de ódio. Logo, porém, contendo-se, respondeu serenamente ao fidalgo:

- Se a semente foi plantada, a árvore cantará antes da minha morte.
E, de novo, deitou-se nas palhas do cárcere.

Ao alvorecer do dia fatal, as trombetas soaram chamando os burgueses à grande praça onde fora levantada a forca. A tropa estendia-se em duas alas, desde o palácio real até ao sítio do suplício. As janelas ficaram apinhadas de curiosos e era tão grande a aglomeração nas ruas que iam ter à praça, que os soldados dificilmente mantinham as posições, sendo, às vezes, forçados a repelir a turba com violência para contê-la a distância, deixando livre a passagem por onde devia transitar o sinistro cortejo.

O palácio do invejoso dava a frente para a praça, fronteiro ao paço em cujo balcão o rei e a princesa, cercados de camaristas e damas, esperavam o condenado. Ao clangor das tubas, o povo ondulou, apertando-se mais e mais, e logo apareceu a carreta em que vinha o mancebo, de alva, manietado, entre soldados que empunhavam lanças. Um esquadrão de cavalaria acompanhava o trágico veículo. Justamente quando chegava à forca, o mancebo estremeceu e, no silêncio comovido que se fizera, ouviram todos uma voz suavíssima, cantando. O condenado sorriu e, erguendo os olhos para o balcão real disse:

- Senhor, é a árvore que canta, Escutai-a.

E todos, extasiados, procuravam a direção do canto.

O fidalgo, pouco antes alegre w triunfante, empalidecia à janela do seu palácio, e a voz, cada vez mais meiga, soava docemente. De repente alguém disse na multidão, apontando o palácio do invejoso:

- É dali que vem o canto!

E a turba imensa avançou contra o palácio, aos brados; mas as portas, que eram de bronze, resistiram ao choque.

O rei, então, que começava a suspeitar do fidalgo, desceu à praça e entre os seus arqueiros, intimou o vassalo a abrir-lhe as portas. O miserável obedeceu, recebendo o monarca no vestíbulo, zumbrido, com um suor gelado a escorrer-lhe a fronte. E a voz, cada vez mais suave, encantava com a sua melodia.

- Quem canta no teu palácio? perguntou o rei serenamente. Dize a verdade se não queres que os meus arqueiros te levem arrastado ao patíbulo que fizeste levantar na praça.

- Senhor, é a árvore que canta.

- Onde a plantaste?

- No subterrâneo do palácio.

- Leva-me quero vê-la.

Caminhando humilde, o fidalgo desceu à cave tenebrosa e úmida, precedendo o rei a a sua comitiva, e lá estava a árvore frondosa, verde, florida e cantando.
- E que plantaste no parque real?

- Um seixo, senhor.

E sem achar palavras para defender-se, o vilíssimo homem prostrou-se aos pés do rei, pedindo apenas a vida.

O soberano desprezou-o e, subindo em passos ligeiros, atravessou a praça, ordenando que conduzissem à sua presença o moço condenado. A princesa exultava e maior foi a sua alegria quando, ao aparecer o moço, o rei o levou ao balcão, apresentando-o ao povo como - o prometido noivo de sua filha. Estrugiram aclamações e, se não fosse a soldadesca, o palácio do invejoso teria sido varejado pela multidão indignada.

E a árvore cantava docemente e o seu canto vencia o vozear da turba. Bem dissera o moço: "Se a semente foi plantada, a árvore cantará antes da minha morte."

A verdade é como a semente da árvore que cantava; traiam-na com os sofismas, abafem-na da luz, que ela rebentará fulgurante, dando a vitória à justiça e confundindo o traidor.
Coelho Netto