domingo, julho 4

Ainda é possível viajar?

Viajar é ir ao encontro do espanto. Convém não confundir viagem com deslocação. Antes da pandemia, as pessoas moviam-se muito, mas, regra geral, viajavam pouco. A maioria apenas se deslocava. Agora, nem isso. A pandemia matou a viagem, sim, mas é preciso reconhecer que ela já não estava lá muito saudável.

Percebemos isso lendo, ou relendo, os grandes escritores de viagens. Entre os meus preferidos estão Fernão Mendes Pinto, Richard Francis Burton e Bruce Chatwin. Embora tendo vivido em épocas muito diferentes, todos eles partilhavam a mesma paixão pela aventura e uma infinda curiosidade em relação a povos distantes, além de uma considerável criatividade na narração das respetivas aventuras. Os detratores de Fernão Mendes Pinto, aliás, mudaram-lhe o nome, num trocadilho cruel: “Fernão, Mentes? Minto”. 

Dispenso ser sequestrado por piratas, como terá acontecido a Fernão Mendes Pinto, ou estuprado por policiais numa esquadra do Benim, episódio que Bruce Chatwin gostava de contar (o seu principal biógrafo, Nicholas Shakespeare, não encontrou provas disso). Dispenso até as viagens com ópio em que Richard Burton embarcou. Acredito, contudo, que a experiência da viagem implica uma disponibilidade para o imprevisto e para tudo o que é diferente. Mais do que isso, pressupõe uma genuína abertura relativamente ao outro. Burton, por exemplo, falava 29 línguas, tendo sido o primeiro europeu não muçulmano a entrar em Meca.

Antes da pandemia já vinha sendo difícil viajar, devido aos efeitos da globalização cultural. Recordo uma ocasião, durante uma agitada digressão literária, em que acordei no quarto de um hotel europeu sem saber em que país estava. Pensei em ligar para a recepção: “Desculpe, pode dizer-me em que país estou?”. Receei, porém, que colocassem em dúvida a minha sanidade mental. Então, levantei-me e abri a janela. Pensei que olhando para fora encontraria alguma singularidade cultural. O que encontrei, contudo, foi uma rua extensa, muito arrumada, com lojas que poderiam estar em qualquer lugar da Europa. Aquilo jamais teria acontecido com Richard Burton, no século XIX, e muito menos com Fernão Mendes Pinto, no século XVI.

A pandemia, como já disse, terminou de matar a viagem. Antes mesmo de a iniciar temos agora de enfrentar o pesadelo dos testes e complexos questionários médicos. Já no avião aguardam-nos longas horas de máscara, com as orelhas ardendo, a falta de ar, e a restrição de movimentos, para não falar na irritabilidade geral dos atendentes de bordo e dos restantes passageiros. Vêm depois os interrogatórios, novos testes, novos questionários, e eventuais quarentenas. E em todos os aeroportos onde desembarcarmos encontraremos as mesmas pessoas ansiosas, e o mesmo conformado desespero. 

Pode ser que quando a pandemia for finalmente vencida possamos retomar a alegria das viagens. Entretanto, o melhor é viajar relendo os grandes viajantes. “Na Patagônia”, de Chatwin, surpreende sempre. Burton e a sua feroz visão da Humanidade são um consolo para a alma. E “A peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, continua a ser o melhor instrumento para desconstruir o mito da superioridade das civilizações europeias. Aconselho a todos.

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