segunda-feira, julho 12

De frente pro mar

Às vezes um navio se apaixona pela cidade, liberta-se das amarras, despreza a bússola e vem direto em sua direção, destruindo tudo pelo caminho e causando medo aos humanos que habitam a ilha. Outras, como baleias, vêm morrer na praia, arrastados por tempestades. Lembram gigantes adormecidos, quando atracados no cais. Balem como ovelhas perdidas, quando soam os apitos no meio do nevoeiro.

Conviver com navios, lanchas, barcos é privilégio de quem mora a beira-mar. Desde cedo, nos acostumamos a vislumbrar na paisagem o ir e vir dos cascos, as luzes noturnas bordando nostalgia com a linha do horizonte, o óleo vazado de suas máquinas que chega até a areia, os festivos transatlânticos, os lânguidos veleiros, as balsas fazendo ponte entre Santos e Guarujá, as catraias levando pedestres de um lado para outro do estuário, as canoas onde remam desde pescadores artesanais a atletas.

Nos meses quentes, participamos diretamente desse universo, através de banhos, esportes e caminhadas pela água rasa. No frio, nos assombramos com a fúria das ondas, as ressacas, o vento marinho. E temos os canais, veias abertas por onde corre o mar, com pontes de todo tamanho, árvores, ciclovias, aves marinhas, peixes e caranguejos.

Somos uma Veneza menos molhada, também sujeita às marés. Respiramos salitre, a maresia invade nossas casas e há dias em que Netuno sopra uma névoa tão intensa que apaga as montanhas em volta, abafa os sons, intimida os pássaros, obriga a acender postes e faróis.

É quando os navios aproveitam para quebrar regras e visitar a terra, vencendo muros, molhes e atracadouros. Ou apitam loucamente, gritando “estou aqui” ou “qual a direção certa?”. Nas piores situações, encalham nos bancos de areia, e até mesmo, na praia, mostrando sua exata proporção monumental. O mau tempo também vira barcos e mata passageiros e tripulantes. Quase sempre, destroços e corpos aparecem na orla, pouco tempo depois.

Assim é a vida caiçara. Nossa história tem piratas, naufrágios, lendas, regatas, procissões, num mar cada vez mais ocupado por embarcações. Já inspirou inúmeros escritores e continua tema de poesias, contos, crônicas, romances. Até o dia em que, como em Atlântida, tudo acabe submerso.
Madô Martins

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