quarta-feira, julho 21

Quem semeia ventos ...

Numa aldeia russa, vivia um camponês chamado Ivan. Estava bem na vida. Era o melhor trabalhador da aldeia e tinha três filhos saudáveis, que também eram bons trabalhadores. O seu velho pai era o único na família que não podia trabalhar, mas cuidavam dele muito bem. Tinham tudo o que precisavam para comer e vestir, e teriam sido felizes se não fosse o vizinho de Ivan, Gavrilo, o coxo. Ivan e Gavrilo detestavam-se.

Tinham sido bons amigos até ao dia em que algo acontecera – algo de tão ridículo e insignificante! Uma galinha que pertencia à filha de Ivan pôs um ovo no pátio de Gavrilo. Todos os dias, a galinha punha um ovo no galinheiro. Quando a filha a ouvia cacarejar, ia buscar o ovo. Mas, daquela vez, os rapazes tinham assustado a galinha e esta tinha saltado a vedação. A filha de Ivan estava ocupada nesse dia e só foi buscar o ovo à noite. Não conseguiu encontrá-lo e os rapazes disseram-lhe onde o procurar. Foi então a casa do vizinho e encontrou a mãe de Gavrilo.

― O que queres, rapariga?

― Avó, a minha galinha esteve hoje no seu pátio. Não pôs lá nenhum ovo?
A velha pensou que a filha de Ivan estava a acusá-la de ter pegado no ovo e respondeu-lhe torto.

― Não lhe pus a vista em cima. Nós temos as nossas galinhas e já há muito tempo que elas andam a pôr. Apanhamos os nossos ovos e não precisamos dos ovos dos outros. Ó rapariga, não precisamos de ir para os pátios dos outros apanhar ovos!

A filha de Ivan não gostou nada do que ouviu. Respondeu desabridamente, e a mãe de Gavrilo foi ainda mais desabrida. A mulher de Ivan passou por ali (tinha ido buscar água) e, nesse momento, a mulher de Gavrilo saiu de casa. Começaram todas a falar ao mesmo tempo, a ralhar e a insultar-se. Depois vieram os maridos, que tomaram o partido das respectivas mulheres e começaram à pancada. E Ivan, que era mais forte, feriu Gavrilo, o coxo.
Gavrilo levou o caso ao tribunal da aldeia, declarando que queria que Ivan fosse castigado. Quando o pai de Ivan ouviu isto, falou com firmeza.

― Rapazes, vocês estão a fazer uma asneira. Pensem bem! Tudo começou por causa de um ovo. Um ovo não vale muito. Há que chegue para todos. Foram ditas muitas palavras incorrectas; agora mostrem como se dizem palavras simpáticas. Façam as pazes e acabem com tudo isto. Se persistirem no erro, será cada vez pior.

Mas Ivan e a família não o escutaram. Pensavam que o velho estava a dizer disparates. Em vez de fazerem as pazes, Ivan foi a tribunal e tentou que Gavrilo fosse punido por lhe ter rasgado a camisa enquanto discutiam por causa do ovo.
Depois disso, os vizinhos discutiam todos os dias e sempre por motivos mesquinhos. Foram a tribunal tantas vezes que o juiz já estava cansado de os ver. E assim continuaram durante seis anos.

Por fim, a filha de Ivan acusou publicamente Gavrilo de roubar cavalos, e Gavrilo bateu-lhe de tal forma que a deixou de cama durante uma semana. Desta vez, o caso era mais sério e, quando Ivan levou o caso a tribunal, o juiz deu ordem para que Gavrilo fosse chicoteado. Era uma forma muito dolorosa de punir as pessoas culpadas. Quando Gavrilo ouviu o que iria acontecer-lhe, ficou tão branco e protestou tão veementemente que até o juiz teve medo e pediu a Ivan que lhe perdoasse e desistisse do caso. Mas Ivan não cedeu e foi para casa dizer ao pai que Gavrilo iria finalmente ser castigado.

― Ivan ― disse o velho ― não estás a proceder correctamente. Vês a maldade dele mas esqueces-te da tua. Jesus ensinou-nos algo de diferente. Se te insultam, mantém-te calado. Se te baterem, oferece a outra face. Faz as pazes com ele. Não é tarde demais para evitares que ele seja castigado, e o convidares para jantar, a ele e à família.

Como Ivan não se mexesse, o pai continuou:

― Não te demores, Ivan. A tua raiva é como o fogo. Apaga-a no início porque, se ela começar a alastrar, não poderás controlá-la.

Ivan começava a entender o que o pai queria dizer. Preparava-se para ir fazer as pazes quando as mulheres chegaram e disseram que Gavrilo estava tão zangado que ameaçara pegar fogo à casa. Então, Ivan ficou outra vez furioso, como se ele próprio estivesse a arder, e não desistiu do castigo de Gavrilo.

Nessa noite, Ivan lembrou-se do que Gavrilo dissera a propósito de atear um incêndio. Ficou tão perturbado que saiu para inspecionar o pátio. Caminhou lentamente ao longo da vedação. Tinha acabado de virar a esquina quando lhe pareceu que algo se mexera na outra ponta, algo que se teria erguido e voltado a baixar. Ivan ficou quieto. Escutou e olhou: estava tudo sossegado; apenas o vento agitava as folhas do salgueiro e a palha. Estava escuro como breu mas os seus olhos habituaram-se à escuridão. Continuou a olhar, mas não viu ninguém.

― Devo ter-me enganado ― disse Ivan ― mas vou ver.

Avançou tão devagar que nem os próprios passos ouvia. Chegou à esquina e parou. Conseguia ver claramente alguém, com um boné na cabeça e agachado de costas para ele, a pegar fogo a um feixe de palha que tinha nas mãos. Ficou imóvel.

“Agora”, pensou, “não vai escapar-me. Vou apanhá-lo com a boca na botija.”
De repente, tudo se iluminou. A chama lambeu a palha no barracão e saltou para o telhado. Já não era um pequeno fogo. Ivan conseguiu ver Gavrilo e correu para ele. Mas Gavrilo fugiu e, apesar de coxo, correu como uma lebre. No entanto, Ivan ainda conseguiu apanhá-lo pela aba do casaco. Só que a aba rasgou-se, Ivan caiu e magoou-se na cabeça. Quando se levantou, Gavrilo tinha fugido. O incêndio era tão forte que parecia dia em vez de noite. Ivan conseguia ouvir os bramidos e a crepitação no seu pátio. Foi então que viu a palha a arder em direção à casa.

Ivan tentou apagar o incêndio. “Se ao menos conseguisse tirar a palha para fora do barracão e apagar o fogo!”, pensou. A princípio, os seus pés não se mexiam. Depois, tropeçaram um no outro. As pessoas vinham a correr, mas já nada podia ser feito. Os vizinhos retiravam as coisas de suas casas e mandavam sair o gado. Depois da casa de Ivan foi a vez da de Gavrilo se incendiar. Levantou-se um vento que levou o fogo para o outro lado da rua. Metade da aldeia ficou reduzida a cinzas.

Tudo o que se salvou da casa de Ivan foi o velho pai, que fugira para uma parte distante da aldeia. Quando Ivan foi vê-lo, o velho comentou:

― Que te disse eu, Ivan? Quem incendiou a aldeia?

― Foi ele, pai. Apanhei-o. Se ao menos tivesse apanhado o pedaço de palha e o tivesse tirado para fora, nada disto teria acontecido.

― Ivan ― perguntou de novo o pai ― de quem é realmente a culpa?

Ivan fitou-o. Depois, lembrou-se de como tinha magoado Gavrilo em primeiro lugar, e de como não tinha ido fazer as pazes com ele enquanto ainda era tempo.

― A culpa foi minha, pai ― disse. E calou-se.

Em seguida, o velho disse-lhe:

― Ivan.
― Sim, pai.

― O que deves fazer agora?

― Não sei, pai. Como posso continuar? Tudo o que tinha ficou queimado.

― Vais conseguir. Com a ajuda de Deus, vais conseguir. Mas lembra-te, Ivan, não deves dizer a ninguém que foi Gavrilo quem começou o fogo. Se não disseres, Deus perdoar-vos-á a ambos.

Ivan assim fez e ninguém descobriu como o fogo começara.

Depois, Ivan começou a ter pena de Gavrilo. E Gavrilo, por sua vez, ficou surpreendido por Ivan não ter dito nada. A princípio, tinha medo de Ivan, mas depois começou a sentir-se mais à vontade. Os homens deixaram de discutir, e as famílias também. Enquanto reconstruíam as casas, viviam todos juntos, e quando a aldeia foi finalmente reconstruída, Ivan e Gavrilo permaneceram vizinhos. E foram sempre amigos.

Ivan nunca se esqueceu do que o pai lhe dissera sobre apagar um fogo logo que ele começa. Se alguém lhe falava duramente, ele respondia com gentileza. A pessoa ficava envergonhada e não havia discussão. Assim, Ivan foi mais feliz do que nunca, e ninguém na aldeia teve tantos amigos como ele.
Leon Tolstói

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