A bejeca deixou uma fímbria de branco poroso a ferver no lábio de Abreu. O ar de desdém, basófio e curto, derivava agora, nasalado, pela fresta da comissura:
– Alguém mandou olhar?
Dois velhos pasmados a uma mesa de canto, queixos pendidos sobre chávenas de café. Não era o da boina de xadrez, de beiço torto. Era o de bochechas lassas, e olhos aguados, como um buldogue.
Abreu ia explicar tudo, mas dava muito trabalho e desistiu. Mordiscou um tremoço, rilhou-o com os molares, em jeito de enjoo, e removeu a vista para o estaladiço do tecto, precisado de pintura. E sempre a dar-lhe, num sussurro bocejado:
– Não sabia que o gajo vinha aqui.
Tinha ouvido dizer – «quanto vale a aposta?» – que naquela cervejaria de madeirames polidos aviavam torresmos com a imperial. Mas nem pevides davam e os tremoços eram à parte.
Bartlo encolheu os ombros e atacou a cerveja. Era altarrão e composto, lábia solta, mas pouca gramática. Tinha gastado uma hora a fazer o relatório de dois namoros, um perdido emprego e uma mãe. Fartava-se logo da conversa quando não era o próprio a falar. Mas o outro afincava. O droguista! Não o reconhecia? Era preciso ser muito desprevenido da ideia para não marcar o narigonço e as belfas dançantes, pá.
– A drogaria Esmpampanante, ao começo da rampa, quando a rua dobra para baixo.
– Estou a ver – Batlo vagava, desconcentrado.
– Estás a ver uma ova.
Mas Bartlo começava a lembrar-se, fazia o jeito:
– Tinha vassouras à porta. E jerricans amarelos. Vassouras novinhas de palha cinzenta. Até se podiam lamber. Dava dó usar aquilo prò chão.
– Isso agora não interessa. Vassouras são vassouras.
– Eu lembro-me, camandro.
– Mas entravas lá, entravas? Ah, pois, a minha mãe mandava-me à cera. Cem gramas de cera. Em papel-manteiga, com uma espátula. Havia um livro comprido pròs fiados.
– Nunca lá o vi.
– O livro?
– O velho.
– Tinha praí quatro ou cinco drogarias, ou mais, e dava a volta por cada uma, à semana. Sempre com uma bata de surrobeco, toda sebenta. Espreitava assim, por cima dos óculos.
Abreu imitava com os dedos esticados debaixo do nariz a fingir lúzios dardejantes. Caso para rir.
Mário de Carvalho, "Quando o Diabo Reza"
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