sexta-feira, julho 9

As fofocas mais virtuosas do mundo

“Flaubert pediu que eu ficasse para o jantar”. Só assim: Flaubert, aquele, pede ao autor que fique para o jantar. Está lá, na página 220 de um livrinho encadernado em verde com letras douradas. 

“Flaubert pediu que eu ficasse para o jantar”. Essa foi a primeira frase que li do “Diário – Memórias da vida literária”, dos irmãos Edmond e Jules de Goncourt. Por acaso abri o livro nessa página, por acaso os meus olhos foram para essa linha. Não consegui seguir adiante; li e reli a frase, tão banal e por isso mesmo tão desconcertante. 

Decidi fechar o livro ali mesmo, antes de estragar tudo e desfazer o encanto.

Nunca pensei em Flaubert como uma pessoa de verdade, de carne e osso, que pedia para a visita ficar para o jantar; para mim, ele sempre foi uma figura de uma outra esfera, uma espécie de semideus. 

Passei as horas seguintes fazendo o que tinha para fazer meio distraída, antecipando o prazer da leitura. Não é todo dia que um livro com uma frase dessas frequenta a minha mesinha de cabeceira. 

Até a semana passada, eu só sabia por alto quem eram os irmãos Goncourt. Conhecia o prêmio que leva o seu nome, e que é a principal distinção literária da França, e sabia que ambos foram figuras influentes no seu tempo, mas muito pouco além disso, certamente não o suficiente para buscar o seu “Diário”. 

Se eu só tivesse acesso a livros on-line, estaria escrevendo uma coluna diferente. Mas abrir ao acaso o volume de capa verde, e encontrar de saída a frase mágica “Flaubert pediu que eu ficasse para o jantar” me levou a uma viagem inesperada ao século XIX, e a um mundo em que boa parte do elenco ficou para a História. Não dá para subestimar as livrarias reais, onde encontros assim podem acontecer. 

Os irmãos Goncourt viveram entre gigantes, mas todos passam pelas suas páginas como mortais comuns e cheios de defeitos: Victor Hugo, Guy de Maupassant, Zola, Théophile Gautier, os Dumas pai e filho, Verlaine, Turguêniev, Alphonse Daudet, Degas, Rodin, Mallarmé... Até Oscar Wilde, em apuros do outro lado do Canal da Mancha, entra nessas memórias implacáveis. 

“Recentemente nos contaram que esse bufão chamado Baudelaire vive num hotel modesto, perto de uma estação de trem e sempre cheio de viajantes. Mantém a porta do quarto bem aberta, dando aos que passam o espetáculo de si próprio no trabalho, o exercício do gênio, com as mãos esmiuçando o pensamento entre os cabelos desgrenhados.” 

As fofocas envolvem nomes tão extraordinários que chegam a parecer virtuosas. Os Goncourt registram os bastidores do Olimpo, um mundo estranho de hábitos esquisitos. 

“Vendo que Daudet há dez dias não escreve coisa alguma, perguntei se não é a morfina que atrapalha e ele respondeu: Claro que sim, com a morfina a gente não vai além das ideias gerais.” 

O “Diário” original ocupa milhares de páginas. A seleção saborosa da bela edição da Carambaia tem 426 e foi feita pelo tradutor Jorge Bastos, que também escreveu a introdução, a contextualização dos anos na vida francesa e as notas abundantes: uma perfeição.

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