A comunicação, segundo dizem, é coisa banal. Os jornaizinhos da colônia alemã sempre trazem coisas semelhantes. E uma pessoa do jornal de Porto Alegre disse que na tradução foi suprimida uma passagem referente ao tratamento empregado no doente, passagem que para o público do jornal brasileiro poderia parecer de mau gosto e mesmo, de certo modo, ridícula.
Ora, essa atitude dos parentes diante da morte me parece uma rica lição de psicologia de um povo. Não vou extrair essa lição, que de psicologia não entendo. Os brasileiros quando noticiam a morte de alguém preferem, quase sempre, omitir certos detalhes, especialmente sobre a doença.
O brasileiro muitas vezes se acanha em perguntar a uma pessoa de que morreu o seu parente, ou só o faz quando tem alguma intimidade. Os detalhes da doença ficam, em geral, para rodas estritamente íntimas ― quase sempre de mulheres ― e só no caso de se tratar de uma personalidade extremamente importante são divulgados pelos jornais ― assim mesmo de maneira mais ou menos vaga. A morte desperta em nós uma espécie de pudor. Muitas vezes agradecemos ao médico, mas jamais agradecemos ao coveiro. Possivelmente um médico brasileiro ficaria um pouco aborrecido vendo que os parentes do defunto agradecem ao mesmo tempo a ele e ao coveiro...
Outra coisa que me parece notável na comunicação alemã é a ausência de adjetivos transcendentais. Ali não se fala em saudade eterna, nem em dores inconsoláveis, nem em golpe profundo, nem em inexprimível gratidão. O estilo é, via de regra, mais objetivo; conta muito e comenta pouco. Nós costumamos atulhar nossos defuntos de adjetivos ― algumas vezes bastante exagerados e convencionais ― embora piedosos.
Enfim eu creio que o defunto alemão fica mais solidamente enterrado. Depois que se lê uma comunicação dessas não há mais o que perguntar; nem o que pensar, nem mesmo o que sentir. A pessoa viveu assim assim, ficou doente assim assim, morreu assim assim e foi enterrada assim assado.
O defunto brasileiro é; enterrado numa terra fofa de adjetivos, coberta de pudores e vaguidões. É mais transcendental e ao mesmo tempo mais difuso. A morte para nós é algo mais subjetivo: o defunto morre mais dentro de nós que em si mesmo. Nossa dor, sincera ou fingida, é posta em primeiro plano ― e o defunto recua para um fundo vago, entre flores. Só no caso de uma tuberculose, por exemplo, falamos em "pertinaz enfermidade" ― é o suficiente para que o público saiba que afinal de contas a gente já sabia que a pessoa ia morrer e o golpe não foi muito grande.
Enfim cada povo enterra defuntos a seu jeito. No cemitério, defuntos com defuntos não fazem grande diferença, mesmo em túmulos diversos. Todos são defuntos, e apodrecem, e viram pó. Quanto às almas ― se há almas ― têm elas seu destino de acordo com certas normas. Almas não têm sangue, e ninguém lhes examina o sangue para saber se é puro ou não. Corpos e almas são todos iguais perante a Lei. Eu, tu, ele, nós, vós, eles e os outros, todos ficamos iguais ― e isso faz pensar que é um pouco ridículo que antes da morte a gente queira se fazer tão diferente.
Rubem Braga, "Uma fada no front"
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