À sombra de uma árvore, junto ao Pont Royal, vejo um velho gordo, em mangas de camisa; pôs uma cadeira na calçada e olha o rio, o palácio do outro lado, a mancha branca do Sacré-Coeur lá no fundo. Deve ser um burguês, um comerciante, que se dispõe a gozar da maneira mais simples o seu domingo. Passo perto dele e tenho uma surpresa: sob os cabelos despenteados a cara gorda é revolta e amarga, como a de um general mexicano que perdeu a revolução e o cavalo, ficou pobre e desacreditado. Reparo melhor: ele é cego. Está com uma camisa limpa, goza o vento leve na sombra e não vê nada dessa festa de luz que vibra em tudo. Imagino que essa luz é tanta que ele deve sentir sua vibração de algum modo, e não apenas pelo calor, alguma vaga sensação na pele, nos ouvidos, nas mãos. Talvez seja isso que ele exprima, mexendo vagamente os lábios.
Como tive vontade de dizer bonjour ao casal, tenho vontade de me sentar ao lado do cego, fazer com ele uma longa conversa preguiçosa. Falar de quê? Talvez de cavalos, cavalos de general, cavalos de carroça, cavalos de meu tio, casos simples de cavalos.
Ou quem sabe ele prefira conversar sobre frutas; provavelmente diria como eram grandes os morangos antigamente, numa chácara da infância. Também sei algumas histórias de baleias; mesmo já vi uma baleia. Todo mundo gosta de conversar sobre baleias. Hesito um segundo, e subitamente penso que se parar ou diminuir o passo, agora que estou a um metro de distância, ele voltará para mim os olhos cegos e inquietos.
- Um cego tem bem direito ao seu sossego no domingo.
Formulo esse pensamento, e uma vez que ele está mentalmente arrumado em palavras, eu o acho sólido, simples e gratuito como um pedaço de pau. Sim, há um pedaço de pau sobre o muro. Jogo-o lá embaixo, na água quase parada. Parece que joguei dentro d'água meu pensamento; fico vagamente vendo os círculos de água, com a alma tão simples e tão feliz como. . . como, não sei. Como um pedaço de pau. Um pedaço de pau repousando na manhã de domingo.
Rubem Braga. "Ai de ti Copacabana"
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