Tão matreiro que dava até para desconfiar. Mas eu já ouvira falar na casa, do tempo em que Marchette morava lá e passava o dia pintando seus belos quadros de fundo verde-escuro. O próprio Scliar retratou recentemente, numa sucessão múltipla de lindos quadros, 180 graus da paisagem de Ouro Preto vista da janela da casa. E eu sabia que Vinícius, entre outros, costumava passar longas temporadas hospedado lá. Uma casa de artistas, portanto. Não havia por quê desconfiar.
E lá fomos nós, serpenteando pelas longas estradas de Minas. Passamos Juiz de Fora, Barbacena, Santos Dumont — quando dei por mim Belo Horizonte já estava pintando e nada de Ouro Preto. Paramos num posto de gasolina.
– Pode nos informar se já passamos a estrada de Ouro Preto? O mineiro coçou a cabeça, cauteloso:
– É conforme, moço: de que lado ocês tão vindo?
Minha primeira desconfiança surgiu diante do portão: enorme, enferrujado como o de um cemitério do interior, fechado a cadeado com duas correntes, sinistro dentro da noite que baixara. E atrás dele não havia casa alguma.
– Pula o muro — sugeriu um menino, morador nas vizinhanças. — É assim que o caseiro faz.
O muro de pedra era realmente baixo e fácil de ser pulado. Então para que o portão? — me perguntei, depois de seguir a recomendação do menino.
Não tive tempo de me perguntar mais nada: de súbito me vi despingolando pirambeira abaixo, tropeçando no calçamento de pedras irregulares, mergulhando na escuridão como nas profundas dos infernos. Consegui afinal frear o corpo diante de uma pontezinha de madeira envolta em sombras — e divisei a casa, do outro lado, encravada no meio da encosta, portas e janelas fechadas. Tudo às escuras, sem o menor sinal de vida. O caseiro, onde estaria o caseiro? Pelo sim pelo não, resolvi voltar e voltar correndo, escarpa acima, antes que as sombras me engolissem. Cheguei ao portão botando o coração pela boca, entrei no carro:
– Não tem ninguém lá — informei, quando recuperei a fala.
O mesmo menino nos ensinou onde morava o caseiro — e em pouco a mulher do caseiro vinha abrir a casa para que nos instalássemos. Pairava nos quartos fechados um ar de cinco meses atrás. Preferimos os de cima, instintivamente recusando a sugestão da caseira, segundo a qual Vinícius costumava ficar nos de baixo: o acesso a eles se fazia por uma escada apertada e lúgubre como as que levam às masmorras de um castelo.
– Não deixem de trancar bem as portas — recomendou a mulher. E nos entregou à nossa própria sorte.
Nessa primeira noite atribuí o sussurro de vozes no porão ao vento que soprava lá fora; o ruído de portas que se abriam e se fechavam a estalos de madeira velha; os passos no corredor aos excessos de minha mórbida imaginação. Não disse palavra sobre o assunto — mesmo porque não teria voz para tanto. Preferi fingir que dormia, e a manhã veio me encontrar insone, mas lépido e fagueiro como um ressuscitado: a luz do dia reintegrava a casa em seu contexto, harmoniosamente recomposta na paisagem de Ouro Preto, como me haviam antecipado: realmente uma bela casa antiga.
Talvez um pouco mais antiga do que eu desejaria.
Mas o que não é antigo na antiga Vila Rica? O Pouso de Chico Rei, por exemplo, onde fomos recebidos de maneira fidalga com um excelente almoço, é um modelo de bom gosto em matéria de antiguidade. Lá encontramos toda uma equipe de cinema, empenhada na filmagem daquela história de Drummond sobre a moça que recolhe uma flor num sepulcro e à noite recebe telefonemas sepulcrais.
Por causa do carnaval, os guardas impedem a passagem dos carros nas ruas do centro, o jeito é mesmo ir a pé. E tome ladeira. Há quem sugira que a melhor maneira de subir é de costas, para se ter a ilusão de estar descendo. E o carnaval comendo solto na cidade, com bumbos e zabumbas tocando zé-pereira noite adentro. Só que isso não tem nada a ver com Ouro Preto.
Então nos recolhemos à nossa tebaida. Transpomos o pesado portão de ferro e vamos escorregando ladeira abaixo, tropeçando na escuridão. A ponte de madeira, pude verificar durante o dia, se lança sobre uma grota abismal onde reside há milênios um dragão de sete cabeças. Agora à noite ele só espera que cruzemos a ponte para reduzir- nos a cinzas com um jato de fogo saído de uma das suas sete bocarras.
Mal ousamos iniciar a travessia, percebo que a janela do andar inferior — o tal quarto do Vinícius — está acesa.
– Hoje vai ter festa no porão — adverti.
Entramos pela cozinha e trancamos a porta, como se nada estivesse acontecendo. Mas quem é que era homem de ir lá embaixo apagar a luz que nem eu nem ela havíamos acendido? Tendo verificado que as portas e janelas cá em cima estavam devidamente fechadas, resolvi ignorar o que se passava lá embaixo.
Quando já me recolhia ao quarto, eis que de súbito é posta à prova a minha natureza de homem:
– Será que você pode me trazer um copo dágua? — pediu ela.
Como negar água aos que têm sede? Revesti-me de bravura e fui à cozinha buscar o copo dágua.
Somente quando vinha voltando é que as janelas e portas da sala me chamaram a atenção. Estavam abertas.
– Não é por nada não, mas as portas e janelas da sala estão escancaradas.
Ela pensou que eu estivesse brincando — tive de levá-la até a sala para que acreditasse.
– Foi você mesmo.
– Eu? Não brinco com essas coisas. Ela se voltou com olhos enormes:
– Que tal se a gente fosse embora daqui?
Nunca uma sugestão judiciosa como essa foi tão prontamente aceita.
Em Tiradentes o fantasma do Padre Toledo passeia pelo imenso casarão onde ele morou, hoje transformado em museu. Não se vê viva alma pelas ruas: a cidade muito quieta sob o sol, caiada de branco como um sepulcro, tudo parado nas ruas mortas. Resolvemos seguir viagem, e sem olhar para trás, para não nos transformarmos em estátuas de pedra-sabão.
Em Congonhas o que há é a igreja sob a guarda de seus doze Profetas. Doze fantasmas? Em vôo lento, um urubu risca o azul do céu. Tudo quieto aqui embaixo, parado, em suspenso. Até aqui não chega a confusão do mundo. Saímos do mundo. O tempo parou. Projetados contra o céu, eles são, como afirmou o poeta, “magníficos, terríveis, graves e ternos” “nesta reunião fantástica, batida pelos ares de Minas”.
E em Belo Horizonte o fantasma sou eu próprio. Procuro nestas ruas mal- assombradas a cidade invisível onde vivi até a juventude. Ao dobrar uma esquina, esbarro com o fantasma de um jovem de 20 anos.
Ao regressar ao Rio, sentimos que alguma coisa nos acompanha: alguma coisa feita de ar e imaginação, que não é propriamente um fantasma, mas o espírito de Minas a impregnar-nos de passado e de eternidade. E aceleramos alegremente em direção ao futuro.
Fernando Sabino
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