Singulares são, em última análise, todas as manias de louco; entretanto, a do caso a que aludo, possuía a notável qualidade de consistir numa coisa que tinha seus ares de teoria, através da qual uma sólida corrente de argumentação arrastava o espírito demente ao mais estranho disparate.
— É preciso extraí-lo, raciocinava o louco... O coração é uma víscera perfeitamente tola... Não passa de um estúpido fole, soprando sangue pelas artérias, em vez de ar... A ciência pode trocá-lo por um aparelho qualquer, que o substitua na função de centro circulatório, evitando, contudo, as regalias morais que goza a tal víscera da minha implicância.
Ne sutor ultra crepidam, ouvi sempre dizer. Se o coração se contentasse com o papel fisiológico de fole, de bomba de compressão, e lá se conservasse modestamente, no fundo da sua gaiola de costelas, a trabalhar obscuro e honrado, nas suas diástoles e sístoles, eu não exigiria que mo extraísse como um obstáculo que estraga-me o organismo e a vida; mas o intruso esquece que nasceu para fole; mete-se pelos domínios da existência moral, a fazer concorrência com os sisudos miolos, e deita, então, quanta tolice pode fazer o sapateiro de Horácio.
Talvez eu passe por doido, mas afirmo que, se tenho tentado arrancar esse músculo e se exijo a extirpação desse órgão nocivo, ainda que me arrisque a sucumbir, é que muito tenho refletido no assunto, e as minhas convicções contra o coração vêm de longa data, penetraram com valentes raízes no meu espírito.
A vida dos homens é o positivo. Fora do positivo, existe, apenas, o vasto mar do ridículo. A pilotagem da vida consiste em evitar o naufrágio no grande mar.
Todavia, o naufrágio é quase inevitável, porque o navio leva uma carga enorme e irrequieta, que faz variar constantemente o centro de gravidade e perturba a todo o momento a flutuação regular.
Esta carga é a tal víscera.
Carga ao mar, pois! libertemos a nau!...
O positivo é o sério, é o grave, é o normal, é o burguês, é o vulgar, é o comum, é o tranquilo, é o prudente, é o fecundo; é o almoço de todas as manhãs e o jantar de todas as tardes; é a herança para a prole. Fora disso, o exagerado, o exacerbado, o entusiástico, o pródigo, o impensado, o idealista, o fantasioso, o desvairado, o inconveniente; o pão nosso de cada dia, no mais restrito sentido dominical; o tolo, o desfrutável, em suma.
É sempre o mesmo abismo de ridículo, ameaçando o sério e o positivo.
E procuremos o que nos faz pender constantemente para o abismo do desfrute... É a víscera; é a víscera fatal!...
O coração produz, na família, o enamorado, um tolo; na sociedade, o herói, outro tolo; na literatura, o sentimental, outro tolo; na filosofia, o melancólico, mais um tolo...
Enamorado, herói, sentimental, melancólico, tudo gira numa vertigem de ridículo, debaixo do grande olho positivo, que ri, como quem vê arder a barba do vizinho, e vai deduzindo em silêncio as gordas e proveitosas normas da experiência.
— Savoir vivre!...
O coração é o pai do ridículo pungente. Há quem ache graça no idiotismo e na asneira. Isto é o ridículo banal e fútil.
Ridículo miserável, profundo, é o das vítimas do coração. É o ridículo propriamente dito; é o ridículo humano.
Pôr um termo a este mal parece-me um dever elementar da ciência. Sabe-se que a origem do mal aí está palpitando, por entre a quarta costela e a quinta.
A medicina reflita...
Tanto mais que não é só o fato objetivo do ridículo que condena o coração. É, ainda mais, o fato subjetivo dos sofrimentos rudes que causa a víscera a quem a traz, cada vez que dá em espetáculo às gargalhadas positivas uma fraqueza e uma tolice da criatura humana.
Não há nada mais salutar do que o riso. Entre outras vantagens, tem a grande vantagem de não ser a lágrima.
O riso é a mais agradável manifestação do positivo.
Quem solta a gargalhada, tem a superioridade de não ser o palhaço.
Riamos, com os diabos!... Vale mais mofar do que ser mofado.
No circo da vida, a gargalhada ocupa as arquibancadas anfiteatrais. No meio, faz caretas e macaquices o grotesco, o ridículo, o náufrago da víscera.
O homem que ri, está fora do picadeiro. Cuidado com a víscera, que ainda leva-te para dentro!...
É preciso, portanto, que se resolva um meio de abolir o risco de rolar da arquibancada.
É o que eu procuro.
Quem sabe bem rir, não cria tropeços à própria liberdade.
Há uma coisa que chama-se o amor, e uma coisa que apelida-se o ódio. A liberdade positiva tem os pulsos ligados por essas duas algemas. Descubram a outra ponta da cadeia, que hão de encontrá-la soldada ao maldito fole do sangue.
O amor faz a fidelidade, a dedicação, o cativeiro voluntário e outras coisas que a linguagem, com o seu modo astucioso de resolver as dificuldades, denomina virtudes; faz também, transformando-se por movimentos reflexos, ou paralelos de espírito, o que se chama a indignação, a revolta, o ciúme, a vingança, o ódio, enfim; e certas coisinhas que ainda a linguagem, sem grandes argumentos, especializa com o rótulo de vícios.
Tudo isso é uma série de algemas, que prendem duma ou doutra sorte. Apaixonado significa acorrentado. Quem ama, prende-se; quem odeia, prende-se. Só é livre quem ri.
Por isso é que o riso é salutar e raro.
A gargalhada é essencialmente filha do cérebro. É livre como o sátiro do bosque.
Viva a gargalhada!
Quem dá vaias, não as leva.
É a grande garantia da gargalhada. Contra esta garantia existe a víscera-fole. Risque-se a víscera, em nome da liberdade, ou ao menos em nome da seriedade positiva da vida.
Dizem que Molière é a comédia... Eu não penso assim. Molière escreveu o drama dos idiotas, encenou a parvoíce fútil. Para mim, a comédia, a comédia real veio de Inglaterra com aquele pobre Romeu, que passava noites a cantar serenatas embaixo da varanda da namorada, entoando com os galos; ou ia de madrugada subir por escadas de corda, sem pensar no papel que faria, se a polícia o agarrasse como um gatuno.
Cômico, para mim, é o furibundo barba-azul do Otelo, que seria um tanto mais brando, se temesse o código. Cômicas são todas essas caricaturas de malucos, engendradas pelo poeta psicólogo inglês.
A comédia de Shakespeare é na verdade triste. Mas é triste, porque é real; e é triste somente para quem não sabe rir dessa coisa tola chamada paixão.
Comparados Romeu e D. Juan, o nosso Romeu não passa de um principiante, que não entende do riscado, e que ainda suspira, à luz de alvoradas, como a gata ao cio.
É que D. Juan sabe rir.
Certo é também que na comédia de Shakespeare há sangue; mas isso não obscurece o grotesco.
Triboulet, que começa por fazer rir, acaba por fazer chorar.
De mais, o sangue da comédia inglesa é a última consequência da ridícula soberania do fole circulatório. É requinte sui generis do desfruto.
Quando aquela gente suicida-se, ou cai assassinada e mesmo quando assassina, ouve-se o bom senso positivo, burguês e prático dizer: — pobres diabos!
O positivo é que é o verdadeiro. É preciso conciliar-se tudo com ele.
As nevroses constituem a praga da humanidade.
— Guerra às nevroses!
A cidadela das nevroses é a famosa víscera.
Arrasemos a cidadela!
Sim, meu caro doutor, já é tempo de lançar-se mão aos freios da estafada cavalgadura de D. Quixote, que vai desastradamente passeando a gesticulação ossuda do seu entusiasmo cavalheiresco, por entre a vaia das gerações!
Já é tempo de suspender-se este espetáculo do cavalheiro da Mancha, eternamente bom, mas eternamente tolo!...
***
O médico, que acompanhava extasiado a estranha dissertação do louco, concentrou-se por momentos, e disse-lhe:
— Esteja tranquilo, meu amigo, não pense mais nisto; eu vou extirpar-lhe o coração... vou curá-lo.
Raul Pompeia
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