domingo, setembro 26

A era em que podíamos cultuar o supérfluo está terminando

Durante a guerra civil em Angola, nas cidades mais atingidas pelos confrontos, conheci pessoas que dormiam com os sapatos calçados e uma pequena mochila a servir de travesseiro. Guardavam na mochila tudo o que para elas era essencial, caso tivessem de fugir de repente.

Se alguma coisa nos ensinam estes dias estranhos, perigosos e voláteis, é que chegou o momento de colocar numa mochila aquilo que considerarmos essencial. Não porque precisemos fugir — na verdade, não temos para onde fugir —, mas porque a era em que podíamos cultuar o supérfluo, o ruído e o desperdício, está terminando. Precisamos retornar ao essencial.

Mas o que é essencial? Para uns pode ser uma garrafa de bom vinho do Porto, para outros um livro, as fotografias da infância, um console de videogame, uns tênis de marca, ou um anel de prata. O essencial de uns é o supérfluo de outros. 

Volto ao brevíssimo período em que fiz reportagem de guerra em Angola. Certa manhã, vi um velho camponês carregando um colchão à cabeça. Lembro-me de ter comentado, em tom de troça, com outro jornalista: “Eis alguém que valoriza a preguiça”. Voltei a ver o velho ao entardecer, carregando a mulher no colchão. Envergonhado, atormentado pelos remorsos, fui falar com ele. “Só o colchão me pesa”, disse-me o homem com um sorriso tímido. Pesava-lhe mais quando não a carregava. A mulher tirava peso do colchão. É que o amor não pesa — liberta-nos do peso das coisas. 


Regra geral, quanto menor for uma palavra, quanto menos sílabas tiver, mais antiga ela é. E, quanto mais antiga for, mais importante, mais fundamental, tende a ser aquilo que exprime: mãe, pai, Sol, mar, sal, pão, chão, grão, amor, dor, bom, mau, fogo, cão, boi, fruta, água, paz, samba ou rabada com agrião. Certo, a rabada com agrião, a feijoada e Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski são exceções à regra. 

Ou seja, o que realmente importa cabe, quase sempre, nas palavras pequenas. O que realmente importa não costuma ter muito peso, nem ocupar muito espaço. O essencial está sempre conosco, nesse pequeno volume, chamado cabeça, que carregamos ao pescoço.

Regressei esta semana à Ilha de Moçambique, onde tenho vivido alguns meses por ano, desde 2016. A Ilha, como quase todos os territórios isolados, é um bom lugar para exercitar o desapego. Quem quiser viver num lugar como este tem de de se habituar a viver com pouco. Naturalmente, uma coisa é viver bem, com menos gastos e menos desperdício, e outra é sobreviver em situação de pobreza, como acontece com uma larga parte da população africana. Não há beleza nenhuma na miséria. Por outro lado, vivendo entre gente que tem tão pouco — e ainda assim manifesta uma alegria e uma sabedoria de vida que é raro encontrar, por exemplo, entre os povos prósperos do norte da Europa —, aprende-se a valorizar o essencial. Além disso, torna-se escandalosamente óbvio algo que tendemos a esquecer enquanto permanecermos encerrados na nossa bolha de prosperidade: num planeta com recursos limitados, e em risco de colapso, o ignóbil esbanjamento de uns poucos será sempre a mesa vazia de muitíssimos.

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