Kestutis Kasparavicius |
Olho-a sempre e muito. Tenho mesmo a impressão de que jamais olhei tanto tempo, tantos anos, todo dia, uma mesma coisa. Gosto dela? Não gosto? Qual a minha opção? Só a de não olhá-la. Mas que outra se ofereceria assim, com tal intimidade, entra ano sai ano? Tenho de olhá-la para sempre e um dia. Ela me representa mais do que qualquer outra coisa, meu reflexo e minha delação, as pessoas me julgam por ela, me acusam por ela, me amam por ela e por ela me detestam. Na minúcia de seus poros, porém, só eu a conheço. E, se não a amo, não posso abandoná-la. O único afastamento que me permito é do próprio espelho, eu caminhando de costas, sem tirar os olhos dela, até que ela desapareça numa curva do quarto e eu possa ter a impressão de que nunca mais vou vê-la. Pura ilusão, porque o fascínio meu por ela é apenas igual ao dela por mim. E, ao me sentar, sozinho, para tomar um uísque no bar vazio e enquanto espero alguém, a primeira coisa que vejo é ela, ali no espelho à minha frente, esperando, melancólica, por um uísque igual ao meu, servido do mesmo jeito, ao mesmo tempo, pelo mesmo garçom.
Millor Fernandes
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