quarta-feira, setembro 22

O pássaro do seu medo

Tullia Socin
Da janela do hospital em Lisboa não eram as pessoas que entravam nem os automóveis entre as árvores nem uma ambulância que via, era o comboio a seguir aos pinheiros, casas, mais pinheiros e a serra ao fundo com o nevoeiro afastando-a dele, era o pássaro do seu medo sem galho onde poisar a tremer os lábios das asas, o ouriço de um castanheiro dantes à entrada do quintal e hoje no interior de si a que o médico chamava cancro aumentando em silêncio, assim que o médico lhe chamou cancro os sinos da igreja começaram o dobre e um cortejo alongou-se na direcção do cemitério com a urna aberta e uma criança dentro, outras crianças vestidas de serafim de guarda ao caixão, gente de que notava apenas o ruído das botas e portanto não gente, solas e solas, quando a avó no muro com ele desistiu de persignar-se sentiu o cheiro das compotas na despensa, vasos em cada degrau da escada e como os vasos intactos não aconteceu fosse o que fosse, por um triz, estendido na maca à saída do exame, não perguntou ao médico

– Não aconteceu fosse o que fosse pois não?

e não aconteceu fosse o que fosse dado que os vasos intactos, a avó que morreu há tantos anos ali viva com ele, o avô defunto há mais tempo a ler o jornal com o seu aparelho de surdo, o silêncio do avô alarmou-o fazendo com que o ouriço se lhe dilatasse nas tripas arranhando, doendo, coloco-o numa placa de granito, bato com o martelo e a doença esmagada, alguém que não distinguia empurrava-lhe a maca corredor adiante, notava a chuva, caras, letreiros, a governanta do senhor vigário no alpendre enquanto pensava

– É o meu esquife que empurram

a oferecer-lhe uvas

– Apetecem-te uvas menino?

e desapareceu logo, não se lembrar do nome da governanta do senhor vigário preocupou-o, lembrava-se do avental, dos chinelos, do riso, não se lembrava do nome e por não se lembrar do nome não iria curar-se, o avô dobrou o jornal no sofá e não o olhou sequer, quis pedir

– Não consegue fazer nada por mim?

e o mais que podia esperar era a concha da mão na orelha

– O quê?

e sobrancelhas juntas no sentido de ninguém

– Que disse ele?

de forma que o pássaro do seu medo continuava aos círculos, olha as raízes dos pés e os dedos que apertam o lençol, os pobres, aqueles que esperavam o elevador deixaram a maca entrar primeiro, fitaram-no um momento e esqueceram-se, achou impossível que não se recordassem dele, a avó punha-lhe um chapéu de palha com o elástico roto durante as vindimas, qual a razão de todos os chapéus de palha com o elástico roto e quase todas as chávenas sem um pedaço da pega, tinha seis, sete anos, descobria calhaus de mica e girava-os para a direita e para a esquerda a reflectirem a luz, não acreditava que o não notassem na varanda para a serra procurando apanhar os insectos da trepadeira com uma caixa de fósforos vazia e nunca apanhou nenhum, não estava no hospital em março, à chuva, estava em agosto na vila, se o mandavam fazer recados trocava de passeio antes de alcançar a moradia com a dona Lucrécia na cadeira de inválida ao alto dos degraus a acenar-lhe a bengala.
António Lobo Antunes, "Sôbolos Rios que Vão" 

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