sábado, setembro 18

O Infinito num junco

Uma nova invenção começou a transformar silenciosamente o mundo durante a segunda metade do século VIII a.C., uma revolução agradável que acabaria por transformar a memória , a linguagem , o acto criador, a maneira de organizar o pensamento , a nossa relação com a autoridade, com o saber e com o passado. As mudanças foram lentas, mas extraordinárias. Depois do alfabeto, nada voltou a ser igual.


Os primeiros leitores e os primeiros escritores eram pioneiros. O mundo da oralidade resistia a desaparecer - nem sequer se extinguiu totalmente - e a palavra escrita sofreu inicialmente um certo estigma. Muitos gregos preferiam que as palavras cantassem. As inovações não lhes agradavam muito, resmungavam e grunhiam quando as tinham à frente. Ao contrário de nós, os habitantes do mundo antigo achavam que o novo tinha tendência para provocar mais degeneração do que progresso. Algo dessa hesitação perdurou no tempo; todos os grandes avanços - a escrita, a imprensa, a Internet... - tiveram de enfrentar detractores apocalípticos . De certeza que alguns resmungões acusaram a roda de ser um instrumento decadente e até preferiram transportar menires às costas.
No entanto, era difícil resistir à promessa da nova invenção. Toda a sociedade aspira a perdurar e a ser recordada. O acto de escrever prolongava a vida da memória, impedia que o passado se dissolvesse para sempre.

Nos primeiros tempos, os poemas ainda nasciam e viajavam pela via oral, mas alguns bardos aprenderam o traçado das letras e começaram a transcrevê-los em folhas de papiro ( ou ditaram-nos) como passaporte para o futuro. Talvez então alguns começassem a tomar consciência das inesperadas implicações daquela ousadia. Escrever os poemas significava imobilizar o texto, fixá-lo para sempre. Nos livros , as palavras foram cristalizadas. Era preciso escolher uma única versão dos cantos, a mais bela possível, para que sobrevivesse às outras. Até aquele momento, o canto era um organismo vivo que crescia e mudava, mas a escrita ia petrificá-lo. Optar por uma versão do relato significava sacrificar todas as outras e, ao mesmo tempo, salvá-lo da destruição e do esquecimento.

Graças a esse acto audacioso, quase temerário, chegaram até nós duas obras memoráveis que formaram a nossa visão do mundo. Os 15.000 versos da Ilíada e os 12.000 versos da Odisseia que agora lemos como se fossem dois romances são um território fronteiriço entre a oralidade e o novo mundo. Um poeta, provavelmente educado na fluidez das recitações, mas em contacto com a escrita, enfiou vários cantos tradicionais no fio de uma trama coerente. Será que Homero foi essa personagem no limiar de dois universos? Nunca o saberemos. Cada investigador imagina o seu próprio Homero: um bardo analfabeto de tempos remotos; o responsável pela versão definitiva da Ilíada e da Odisseia; um poeta que lhes deu um último toque; ou um editor seduzido pela extravagante invenção dos livros, ar escrito. Não deixa de me fascinar que um autor tão importante para a nossa cultura seja apenas um fantasma.

Com a escassa informação disponível , é impossível esclarecer o mistério. A sombra de Homero desaparece em terras de penumbra. E isso ainda torna a Ilíada e a Odisseia mais fascinantes - são documentos excepcionais que nos permitem aproximarmo-nos ao mesmo tempo dos relatos alados e das palavras perdidas.
Irene Vallejo, "O Infinito num junco"

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