quinta-feira, setembro 30

Assim começa...

Por muito incongruente que possa parecer a quem não ande ao tento da importância das alcovas, sejam elas sacramentadas, laicas ou irregulares, no bom funcionamento das administrações públicas, o primeiro passo da extraordinária viagem de um elefante à áustria que nos propusemos narrar foi dado nos reais aposentos da corte portuguesa, mais ou menos à hora de ir para a cama. Registre-se já que não é obra de simples acaso terem sido aqui utilizadas estas imprecisas palavras, mais ou menos. Deste modo, dispensámo-nos, com assinalável elegância, de entrar em pormenores de ordem física e ?siológica algo sórdidos, e quase sempre ridículos, que, postos em pelota sobre o papel, ofenderiam o catolicismo estrito de dom joão, o terceiro, rei de portugal e dos algarves, e de dona catarina de áustria, sua esposa e futura avó daquele dom sebastião que irá a pelejar a alcácer-quibir e lá morrerá ao primeiro assalto, ou ao segundo, embora não falte quem a?rme que se ?nou por doença na véspera da batalha. De sobrolho carregado, eis o que o rei começou por dizer à rainha, Estou duvidando, senhora, Quê, meu senhor, O presente que demos ao primo maximiliano, quando do seu casamento, há quatro anos, sempre me pareceu indigno da sua linhagem e merecimentos, e agora que o temos aqui tão perto, em valladolid, como regente de espanha, por assim dizer à mão de semear, gostaria de lhe oferecer algo mais valioso, algo que desse nas vistas, a vós que vos parece, senhora, Uma custódia estaria bem, senhor, tenho observado que, talvez pela virtude conjunta do seu valor material com o seu signi?cado espiritual, uma custódia é sempre bem acolhida pelo obsequiado, A nossa santa igreja não apreciaria tal liberalidade, ainda há-de ter presentes em sua infalível memória as confessas simpatias do primo maximiliano pela reforma dos protestantes luteranos, luteranos ou calvinistas, nunca soube ao certo, Vade retro, satanás, nem em tal tinha pensado, exclamou a rainha, benzendo-se, amanhã terei de me confessar à primeira hora, Porquê amanhã em particular, senhora, se é vosso costume confessar-vos todos os dias, perguntou o rei, Pela nefanda ideia que o inimigo me pôs nas cordas da voz, olhai que ainda sinto a garganta queimada como se por ela tivesse roçado o bafo do inferno. Habituado aos exageros sensoriais da rainha, o rei encolheu os ombros e regressou à espinhosa tarefa de descobrir um presente capaz de satisfazer o arquiduque maximiliano de áustria. A rainha bisbilhava uma oração, principiara já outra, quando de repente se interrompeu e quase gritou, Temos o salomão, Quê, perguntou o rei, perplexo, sem perceber a intempestiva invocação ao rei de judá, Sim, senhor, salomão, o elefante, E para que quero eu aqui o elefante, perguntou o rei já algo abespinhado, Para o presente, senhor, para o presente de casamento, respondeu a rainha, pondo-se de pé, eufórica, excitadíssima, Não é presente de casamento, Dá o mesmo. O rei acenou com a cabeça lentamente três vezes seguidas, fez uma pausa e acenou outras três vezes, ao ?m das quais admitiu, Parece-me uma ideia interessante, É mais do que interessante, é uma ideia boa, é uma idéia excelente, retrucou a rainha com um gesto de impaciência, quase de insubordinação, que não foi capaz de reprimir, há mais de dois anos que esse animal veio da índia, e desde então não tem feito outra coisa que não seja comer e dormir, a dorna da água sempre cheia, forragens aos montões, é como se es tivéssemos a sustentar uma besta à argola, e sem esperança de pago, O pobre bicho não tem culpa, aqui não há trabalho que sirva para ele, a não ser que o mandasse para os estaleiros do tejo a transportar tábuas, mas o coitado iria padecer, porque a sua especialidade pro?ssional são os troncos, que se ajeitam melhor à tromba pela curvatura, Então que vá para viena, E como irá, perguntou o rei, Ah, isso não é da nossa conta, se o primo maximiliano passar a ser odono, ele que resolva, imagino que ainda continuará em valladolid, Não tenho notícia em contrário, Claro que para valladolid o salomão terá de ir à pata, que boas andadeiras tem, E para viena também, não terá outro remédio, Um estirão, disse a rainha, Um estirão, assentiu o rei gravemente, e acrescentou, Amanhã escreverei ao primo maximiliano, se ele aceitar haverá que combinar datas e fazer alguns acertos, por exemplo, quando tenciona ele partir para viena, de quantos dias irá precisar salomão para chegar de lisboa a valladolid, daí para diante já não será connosco, lavamos as mãos, Sim, lavamos as mãos, disse a rainha, mas, lá no íntimo profundo, que é onde se digladiam as contradições do ser, sentiu uma súbita dor por deixar ir o salomão sozinho para tão distantes terras e tão estranhas gentes.

No dia seguinte, manhãzinha cedo, o rei mandou vir o secretário pêro de alcáçova carneiro e ditou-lhe uma carta que não lhe saiu bem à primeira, nem à segunda, nem à terceira, e que teve de ser con?ada por inteiro à habilidade retórica e ao experimentado conhecimento da pragmática e das fórmulas epistolares usadas entre soberanos que exornava o competente funcionário, o qual na melhor das escolas possíveis havia aprendido, a de seu próprio pai, antónio carneiro, de quem, por morte, herdara o cargo. A carta ?cou perfeita tanto de letra como de razões, não omitindo sequer a possibilidade teórica, diplomaticamente expressa, de que o presente pudesse não ser do agrado do arquiduque, o qual teria, porém, todas as di?culdades do mundo em responder com uma negativa, pois o rei de portugal a?rmava, numa passagem estratégica da carta, que em todo o seu reino não possuía nada de mais valioso que o elefante salomão, quer pelo sentimento unitário da criação divina que liga e aparenta todas as espécies umas às outras, há mesmo quem diga que o homem foi feito com as sobras do elefante, quer pelos valores simbólico, intrínseco e mundano do animal. Fechada e selada a carta, o rei deu ordem para que se apresentasse o estribeiro-mor, ?dalgo da sua maior con?ança, a quem resumiu a missiva, depois do que lhe ordenou que escolhesse uma escolta digna da sua qualidade, mas, sobretudo, à altura da responsabilidade da missão de que ia incumbido. O ?dalgo beijou a mão ao rei, que lhe disse, com a solenidade de um oráculo, estas sibilinas palavras, Que sejais tão rápido como o aquilão e tão seguro como o voo da águia, Sim, meu senhor. Depois, o rei mudou de tom e deu alguns conselhos práticos, Não precisais que vos recorde que deveis mudar de cavalos todas as vezes que sejam necessárias, as postas não estão lá para outra coisa, não é hora de poupar, vou mandar que reforcem as quadras, e, já agora, sendo possível, para ganhar tempo, opino que deveríeis dormir em cima do vosso cavalo enquanto ele for galopando pelos caminhos de castela. O mensageiro não compreendeu o risonho jogo ou preferiu deixar passar, e limitou-se a dizer, As ordens de vossa alteza serão cumpridas ponto por ponto, empenho nisso a minha palavra e a minha vida, e foi-se retirando às arrecuas, repetindo as vénias de três em três passos. É o melhor dos estribeiros-mores, disse o rei. O secretário resolveu calar a adulação que consistiria em dizer que o estribeiro-mor não poderia ser e portar-se doutra maneira, uma vez que havia sido escolhido pessoalmente por sua alteza. Tinha a impressão de ter dito algo semelhante não há muitos dias. Já nessa altura lhe viera à lembrança um conselho do pai, Cuidado, meu ? lho, uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto ferirá como uma ofensa. Posto o que, o secretário, embora por razões diferentes das do estribeiro-mor, preferiu também calar-se. Foi neste breve silêncio que o rei deu voz, ?nalmente, a um cuidado que lhe havia ocorrido ao despertar, Estive a pensar, acho que deveria ir ver o salomão, Quer vossa alteza que mande chamar a guarda real, perguntou o secretário, Não, dois pajens são mais do que su? cientes, um para os recados e o outro para ir saber por que é que o primeiro ainda não voltou, ah, e também o senhor secretário, se me quiser acompanhar, Vossa alteza honra-me muito, por cima dos meus merecimentos, Talvez para que venha a merecer mais e mais, como seu pai, que deus tenha em glória, Beijo as mãos de vossa alteza, com o amor e o respeito com que beijava as dele, Tenho a impressão de que isso é que está muito por cima dos meus merecimentos, disse o rei, sorrindo, Em dialéctica e em resposta pronta ninguém ganha a vossa alteza, Pois olhe que não falta por aí quem diga que as fadas que presidiram ao meu nascimento não me fadaram para o exercício das letras, Nem tudo são letras no mundo, meu senhor, ir visitar o elefante salomão neste dia é, como talvez se venha a dizer no futuro, um acto poético, Que é um acto poético, perguntou o rei, Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu, Mas eu, por enquanto, só tinha anunciado a intenção de visitar o salomão, Sendo palavra de rei, suponho que terá sido o bastante, Creio ter ouvido dizer que, em retórica, chamam a isso ironia, Peço perdão a vossa alteza, Está perdoado, senhor secretário, se todos os seus pecados forem dessa gravidade, tem o céu garantido, Não sei, meu senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu, Que quer isso dizer, Vem aí a inquisição, meu senhor, acabaram-se os salvo-condutos de con?ssão e absolvição, A inquisição manterá a unidade entre os cristãos, esse é o seu objectivo, Santo objectivo, sem dúvida, meu senhor, resta saber por que meios o alcançará, Se o objectivo é santo, santos serão também os meios de que se servir, respondeu o rei com certa aspereza, Peço perdão a vossa alteza, além disso, Além disso, quê, Rogo-vos que me dispenseis da visita ao salomão, sinto que hoje não seria uma companhia agradável para vossa alteza, Não dispenso, preciso absolutamente da sua presença no cercado, Para quê, meu senhor, se não estou a ser demasiado con?ado em perguntar, Não tenho luzes para perceber se vai acontecer o que chamou acto poético, respondeu o rei com um meio sorriso em que a barbae o bigode desenhavam uma expressão maliciosa, quase me?stofélica, Espero as suas ordens, meu senhor, Sendo cinco horas, quero quatro cavalos à porta do palácio, recomende que aquele que montarei seja grande, gordo e manso, nunca fui de cavalgadas, e agora ainda menos, com esta idade e os achaques que ela trouxe, Sim, meu senhor, E escolha-me bem os pajens, que não sejam daqueles que se riem por tudo e por nada, dá-me vontade de lhes torcer o pescoço, Sim, meu senhor.

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