quinta-feira, setembro 2

Um livro para se reconciliar com o Brasil

Anna Mariani
Alguns livros trazem revelações. Um livro que me explicou muito sobre o Brasil foi “Pinturas e platibandas”, de Anna Mariani, publicado em 1987, com o trabalho que ela vinha fazendo há anos: fotografias de casas do Sertão. Feitas de frente, sem artifícios ou sombras, sem vislumbre de ser humano, apenas uma ocasional bicicleta ou um cavalo selado, esperando. As casas eram pequenas, retangulares, humildes e únicas — e o que elas contavam é que, espalhadas por diferentes cidades, estavam juntas graças a uma linguagem arquitetônica distinta, essencialmente brasileira. 

Desde o livro de Anna Mariani, passei a ver com outros olhos a arquitetura das pequenas cidades, sobretudo a das pequenas cidades nordestinas. Àquela altura, eu já tinha visto incontáveis dessas casas ao vivo. Já tinha viajado bastante pelo país, e sempre me encantava com elas, tão mais interessantes e originais do que os prédios horrendos e impessoais que cresciam ao meu redor no Rio. O que eu não tinha percebido, porém, era a unidade que as interligava, e a raiz do meu encanto, que a rigor se resumia na palavra “Brasil”. 

Depois de conhecer o trabalho de Anna Mariani, deixei de ver as casinhas apenas como elementos isolados, e passei a entendê-las como parte de uma cultura singular e vigorosa. 

O tempo passou, a minha biblioteca enfrentou algumas mudanças e “Pinturas e platibandas” sumiu numa dessas viradas. Foi uma perda muito sentida. 

Elaine Eiger
No começo da semana, uma amiga me trouxe “O Brasil de dentro”, de Elaine Eiger, que revisita as cidades percorridas por Anna Mariani nos anos 1980. Elaine adota o estilo pioneiro de Anna: as fachadas ao sol, portas e janelas fechadas, vagos sinais de gente num vestido pendurado, numa moto estacionada, numas cadeiras. Há um gato numa janela e um cão perto de uma porta. Mais uma vez, as fotos são severas — e intensamente poéticas.

Perdi o fôlego diante das cores, da geometria, do orgulho que se manifesta em cada decoração única e caprichada. 

(Não digo “perdi o fôlego” como figura de retórica; perdi o fôlego mesmo — me esqueci de respirar. O livro é emocionante assim.) 

As casinhas, antes pintadas nos tons básicos permitidos pelo pó Xadrez, viraram um festival de cores exuberantes e novos materiais, desenhos e contrastes. Há cerâmicas e azulejos, pedras de vários tipos, tijolo, alumínio. A maioria das antigas portas e janelas de madeira, tão românticas, foi substituída. Há muitas grades de ferro, algumas bem simples, outras primorosamente trabalhadas — sinal de que os tempos de paz ficaram para trás.

A estética, contudo, permanece a mesma, baseada em preferências pessoais que pouco têm a ver com as revistas de arquitetura. Como são fortes e eloquentes as casinhas, e que conjunto extraordinário Elaine Eiger conseguiu reunir! 

Há muito mais Brasil no Brasil do que o lixo que, diariamente, nos enfiam goela abaixo. De vez em quando é preciso parar, desligar Brasília e encontrar um jeito de resgatar os fios soltos da nossa história de amor com o país. 

“O Brasil de dentro”, em sua bela edição da Bei, conseguiu (pelo menos por algumas horas) me reconciliar com o Brasil que eu amo. 

Eu estava precisando demais disso.

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