domingo, setembro 12

Um verão com…

É um lugar-comum que se repete todos os anos, e demasiadas vezes, pelo menos para o meu gosto: quando se aproxima a estação quente, toda a gente desata a recomendar “leituras para o verão”, como se a leitura fosse um fenómeno sazonal cuja predisposição varia consoante os termómetros sobem ou descem. Têm-se como adequados os livros de leitura fácil e “leve”, como se o “peso” de uma experiência de fruição do texto literário (nela incluindo, claro está, o “entretenimento”) fosse incomportável com a intensidade do sol, o calor ambiente, a areia das praias, as sestas retemperadoras. A verdade é que esta espécie de ociosidade regeneradora que o verão traz consigo favorece grandemente a concentração e a continuidade que são condições indispensáveis de uma boa leitura: por exemplo, a das obras principais de Virginia Woolf (Mrs. Dalloway, As ondas, Rumo ao farol), nessas tardes de calor à beira da piscina (se for o caso), ou no bar da praia, com um copo de gin bem temperado ou, para quem gosta, uma imperial bem tirada.


Talvez sem a disponibilidade das férias de verão eu nunca tivesse conseguido vencer as 900 páginas de As benevolentes, de Jonathan Littell, livro que me ocupou a vilegiatura algarvia de 2007, com crescente desprendimento, é verdade, mas com a consciência de que levava até ao fim uma tarefa de monta. E uma amiga minha, que passou um verão da sua adolescência (tinha 18 anos) a ler, de uma ponta a outra, os sete volumes de A la recherche du temps perdu? Terá obedecido a um impulso literário transcendente (uma epifania proustiana) ou usou o romance torrencial como lenitivo para as agruras de umas férias sem namorado?

Livros policiais? De aventuras? De trivialidades? Livros de “famosos”? Histórias “de vida” com pouca ou nenhuma vida dentro? Amostras de humor gratuito? Mas até nisso há surpresas: há uns anos, deu-me para levar para férias um grosso volume de romances de Georges Simenon (entre os quais o para mim mítico Piotr, o letão, que li pela primeira vez aos 13 ou 14 anos de idade). Tudo começara com a descoberta de que Simenon fizera do 9ème de Paris a “casa” de muitos dos seus romances. Ora, o 9ème foi a minha porta de entrada na capital francesa, no início dos já distantes anos de 1970, e foi sobre esse bairro que escrevi uma crónica que me fora pedida pelo diretor de uma revista literária.

Mas a frequentação estival de Simenon levou-me a outros caminhos, muito diferentes. E garanto que o proveito que extraí da imersão sucessiva em cinco dos oito romances ali reunidos nada tem que ver com a leitura “ligeira” que normalmente se associa aos livros policiais. Simenon é de outras águas, ou de outros céus (mas também o são Nicholas Blake, Chandler, Patricia Highsmith, Ruth Rendell, Van Gulik, Camilleri), como se vê, por exemplo, pelo trágico Relatório de um gendarme (não, não é um dos 97 romances do autor em que aparece o inspetor Maigret) publicado em 1944. E o próprio Maigret tem (psicologicamente) que se lhe diga…

Há coisa de dez anos, um inspirado diretor da estação de rádio France Inter propôs ao crítico Antoine Compagnon que preenchesse diariamente durante o verão 15 minutos de emissão, falando sobre Michel de Montaigne. O resultado foram 40 charlas, cada uma das quais glosa uma citação do autor dos Essais. O sucesso foi tal que a rádio resolveu passá-las a livro; e o livro, publicado em 2013, vendeu 150 mil exemplares e inaugurou uma coleção (Un été avec…) que já inclui verões “com” Homero, Pascal, Baudelaire, Proust, Rimbaud, Maquiavel, na companhia de diversos autores. Li-o em português (Um verão com Montaigne, Gradiva, 2016), mas, como não teve continuidade, imagino que não tenha sido propriamente um sucesso comercial. Estes livros encerram uma lição: que passar o verão com esses autores “sérios” não é, nem de perto nem de longe, atraiçoar o espírito da estação – seja lá isso o que for.

É por isso que, este ano, projeto levar comigo a trilogia que William Faulkner escreveu a partir de 1940 sobre a gananciosa família Snopes (A aldeia, A cidade, A mansão), que voltou a estar disponível entre nós nos últimos anos, com a chancela Livros do Brasil. É o Faulkner essencial que me falta ler e vem completar a releitura dos primeiros romances (Sartoris, O som e a fúria, Santuário, Na minha morte) e a primeira leitura deslumbrada de A luz em agosto, que foram a minha principal companhia em confinamento. Foi uma empresa de inverno que se vai prolongar pelo verão. Mas tenho dúvidas de que a Faulkner fosse possível arrancar “Um verão com…”, de tal forma torrencial, multiforme, intrincada é a escrita do inventor de um condado de nome impronunciável, Yoknapatawpha, que é a mesa anatómica onde ele disseca as origens e as formas da grande decadência do sul dos Estados Unidos, traumatizado, desprovido, esclavagista, cuja artéria é o “poderoso rio Mississípi”.

A intimidade com a escrita de Faulkner exige disponibilidade e atenção imersiva, para que não nos escapem as subtilezas com que o autor temperou o seu tropel narrativo, todo feito de desgraças, vilanias e torpezas. Nele, tudo é uma condenação sem apelo da nossa espécie, mas boa parte do encanto dos seus livros reside nessas bruscas cintilações poéticas com que põe colorido no seu cortejo fúnebre de desilusões. Podemos tentar passar o verão com ele, mas convém saber que ele nunca passará o verão connosco. J

Boa parte do encanto dos livros de Faulkner reside nessas bruscas cintilações poéticas com que põe colorido no seu cortejo fúnebre de desilusões. Podemos tentar passar o verão com ele, mas convém saber que ele nunca passará o verão connosco.

Nenhum comentário:

Postar um comentário