quinta-feira, setembro 16

Assim começa ...

Apenas o gari com a vassoura farfalhante recolhendo as folhas caídas da sarjeta.

Os vizinhos poderiam ter visto, mas, no meio de uma manhã de dia útil, todos saíram para o trabalho ou por outras razões do dia-a-dia.

Ela estava ali, na entrada do portão da casa dos pais, quando ele chegou, pronta para lhe sorrir, e logo dar o sinal para poderem zombar da situação estranhamente absurda (apenas temporária) de não poderem se abraçar, e aceitá-la. A lembrança de um abraço de amizade é menos emocionante do que a lembrança de um abraço de amor. Tudo é corriqueiro. O gari passa empurrando o fim do verão à sua frente.

Radiante.

Literalmente radiante. Mas não emitindo luz como os santos mostrados com uma auréola. Ele irradia o perigo, invisível para os outros, de uma substância destrutiva que serviu para contra-atacar o que o estava destruindo. Agarrou-o pela garganta. Câncer da glândula tireóide. No hospital, foi mantido em isolamento. Até o do silêncio; ficou sem voz por um período, mudo. Cordas vocais afetadas. Ele permanece, e ainda continuará, sem controle sobre si, expondo pessoas e objetos ao que ele emana, tudo e todos que ele tocar.

Tudo tem que ser corriqueiro.

Chamando da janela de um carro para o outro: ela se lembrou do seu laptop? Algumas fitas cassete? Seus Adidas? O livro sobre o comportamento de elefantes deslocados que tinha lido até a metade quando voltou para o hospital? Berenice - Benni - por que os pais castigam os filhos com nomes esquisitos? - fez sua mala. Ela chorava enquanto tomava decisões por ele: põe isto, tira aquilo. Mas ela não apenas lembrou; a familiaridade sabia do que ele precisaria, do que sentiria falta. Num dos livros ele descobrirá que ela enfiou uma foto de si própria de que ele gostava particularmente, tirada por ele antes que o romance se transformasse em casamento. Tem um instantâneo do filho quando bebê.

A mãe foi apanhá-lo no hospital. Ele abriu a porta do banco de trás do carro, para se sentar, desde o princípio precisa começar a seguir certa conduta, torná-la um hábito por enquanto, mas a mãe é como ele (se isto não for uma inversão das características herdadas), havia decidido seu próprio código de conduta em resposta à ameaça que ele representa. Ela se inclina para abrir a porta do banco do carona ao seu lado e dá-lhe uma palmadinha, de modo autoritário.

Ele tem mulher e filho.

Que vida, que risco vale menos do que esses?

Os pais são responsáveis por trazer ao mundo a sua prole, por opção ou imprudência, segundo um pacto entre eles, não escrito em lugar nenhum, de que a vida do filho, e por descendência a do filho do filho, deve ser mais valorizada que a dos progenitores originais.

Assim Paul - é ele, o filho - voltou para casa - ah, mais de maneira tão diferente por enquanto -, para a velha casa, a dos pais.

Lyndsay e Adrian não são velhos. A escada do envelhecimento estendeu-se depois que a ciência médica, exercícios criteriosos e uma dieta saudável permitiram às pessoas viver por mais tempo e mais jovens, antes de ascenderem e desaparecerem no mistério do alto. ("Passar desta para melhor" é o eufemismo, mas para onde?) Impensável que o filho os preceda, vá na frente deles, lá para cima. O pai, vigoroso aos sessenta e cinco anos, está às vésperas de se aposentar do cargo de diretor executivo de uma fábrica de veículos e equipamentos agrícolas. A mãe, com cinquenta e nove anos que parecem quarenta e nove, uma beleza natural antiga sem nenhum desejo de lifting facial, está pensando se deve ou não deixar sua parte na sociedade de um escritório de advocacia e se juntar ao seu outro parceiro nessa nova fase da existência.

O cão salta e põe as patas nele, fareja o cheiro forte e frio do hospital em sua bolsa abarrotada e a mala entregue com o que sua mulher achou que ele poderia precisar, naquela fase da existência. - Qual quarto? - Não é seu quarto antigo, é o da irmã, transformado num escritório onde seu pai se dedicará a quaisquer interesses que venha a cultivar, pronto para a aposentadoria. Essa irmã e irmão nascidos com apenas doze meses de diferença devido à paixão juvenil excessiva ou à confiança equivocada na eficácia contraceptiva da amamentação - Lyndsay ri até hoje de sua ignorância e do oportunismo da reprodução rápida! Há duas outras irmãs, biologicamente mais espaçadas. Ele não tem irmão.

Ele é único.
Nadine Gordimer, "De volta à vida"

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