“Quando o edifício Kahil for reconstruído, no centro da cidade, após ser bombardeado na madrugada de18 de maio, nosso projeto é criar ali um centro cultural com as obras doadas”, diz Mansur, de 54 anos, no escritório localizado na galeria em que está sua outra livraria, situada ao lado das faculdades da Universidade Islâmica. “Nasci entre os livros e meu pai me ensinou o ofício ao pé das estantes desde os 14 anos”, detalha enquanto seu filho mais velho, Mohamed, oferece café e suco de laranja ao jornalista estrangeiro. “E agora tenho ao meu lado uma nova geração da família para seguir em frente”. Alunos universitários, estudantes de colégio, intelectuais e autores, estudantes de idiomas, para todos sua grande livraria era lugar de parada obrigatória, sem comparação em todo o território, antes de ser devastada.
Liderada pelos advogados defensores dos direitos humanos Clive Stafford Smith e Mahvish Rukhsana, que defenderam presos em Guantánamo, a coleta à reconstrução já chegou aos 240.000 dólares (1,3 milhão de reais) e está prestes a chegar ao objetivo fixado. Milhares de obras também foram oferecidas por editoras e particulares para repor seu fundo editorial, ainda que Mansur reconheça que será difícil que cheguem ao seu novo local do porto israelense de Ashdod. “O Exército controla tudo o que entra em Gaza”, avisa.
Mansur recebia as últimas novidades editoriais publicadas no Cairo, Amã e Beirute, e tinha a melhor oferta de literatura e ensaios em inglês da Faixa mediterrânea. “Tínhamos muitas obras infantis, religiosas, de ensino de idiomas...”, lembra com saudades do estabelecimento desaparecido do centro da cidade, ponto de reunião de autores e intelectuais e que para muitos leitores de Gaza era uma via de escape cultural ao bloqueio imposto por Israel ao enclave palestino há 15 anos. Amontoados em apenas 365 quilômetros quadrados, os dois milhões de habitantes de Gaza têm uma das mais altas densidades populacionais do mundo.
Livreiro e editor Samir Mansur, diante dos restos de sua livraria em Gaza ( Marcus Yan - Los Angeles Times) |
“Não entendo por que nos atacaram. Não somos um objetivo militar e não temos ligação com nenhuma organização política” questiona Mansur quatro meses depois do bombardeio. O Exército israelense afirmou à época que o edifício da livraria havia sido utilizado por milicianos do Hamas para fabricar armas e que a organização islamista escondia suas atividades em imóveis civis, mas o livreiro responde que só existiam escritórios de centros educacionais privados.
Mansur editava em média uma centena de obras de autores locais por ano, sempre em tiragens limitadas de 500 a 1.000 exemplares. Também publicou traduções ao árabe de clássicos como Os Miseráveis, de Victor Hugo, e Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski. Mas seu trabalho editorial acabou desde a escalada bélica de maio, que causou mais de 250 mortes em Gaza, entre elas 66 crianças, em 600 bombardeios israelenses, e outras 13 em Israel pelos disparos de mais de 4.000 foguetes pelas milícias islamistas.
Outras duas livrarias, entre um total de uma dúzia de estabelecimentos relevantes, também ficaram destruídas e gravemente danificadas na quarta guerra de Gaza, em um revés cultural sem precedentes ao combalido território palestino. Shaban Eslim, de 34 anos, conserva como um tesouro o Corão impresso com elegante caligrafia que resgatou dos escombros da livraria Irqa (Ler, em árabe), localizada perto dos campi universitários. Acaba de alugar um local ao lado do que foi arrasado pelas bombas em maio para tentar retomar a atividade em outubro, coincidindo com o início do ano letivo nas faculdades. “Os militares israelenses só nos deram tempo de evacuar a livraria. Não pudemos salvar nenhuma obra”, afirma Eslim, que diz ter perdido mais de 70.000 dólares (375.000 reais) pela destruição dos exemplares de seu estabelecimento.
Mesmo também tentando organizar uma coleta popular de fundos no exterior, o livreiro lamenta que as autoridades do Hamas, o movimento islamista que governa de fato a Faixa desde 2007, tenha impedido o prosseguimento da campanha de microfinanciamento. “Prefiro não comentar esse assunto”, finaliza quando pedimos para que detalhe o ocorrido. “Também não recebi ajudas públicas para reconstruir meu negócio”, afirma. “Eu me pergunto se há algum interesse oficial pelos livros em Gaza”.
O ataque à livraria de Mansur e a outras da Faixa de Gaza representa um golpe demolidor à difusão do conhecimento do qual o território palestino demorará para se recuperar. Graças ao trabalho editorial de alguns livreiros, os autores locais puderam romper seu isolamento forçado e enviar ao Egito documentos digitalizados com as obras compostas para que fossem impressas no país vizinho antes de ser distribuídas no mundo árabe. Muitos desses textos também retornam, por fim, à Gaza no formato de livros, evitando as barreiras do bloqueio.
A campanha de coleta internacional pretende ultrapassar o objetivo fixado de 250.000 dólares (1,35 milhão de reais) para reerguer a livraria Mansur dos escombros da última guerra. “Somos vítimas de uma agressão à cultura; danos colaterais de um conflito do qual não participamos diretamente. É óbvio que Israel cometeu um grave erro conosco”, conclui o veterano livreiro e editor. Agora sonha em organizar a cerimônia de inauguração de seu novo local com dezenas de milhares de volumes, provavelmente em novembro. Espera poder convidar ao evento todos os artífices da operação de mecenato internacional e os autores do enclave cujas obras publicou nas duas últimas décadas. “Nossa livraria sobreviveu a duas Intifadas e a três guerras, mas não pôde resistir às bombas do quarto conflito”, lamenta Mansur, “mas os livros continuam sendo minha vida, meus filhos espirituais”.
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