segunda-feira, julho 31

Na antiga livraria...

 


Ponto de cem réis

À noite, quando os vãos da praça se esvaziam, ganham superfície os sinais e manchas do terceiro mundo. Recolhida com o sol, a multidão de pessoas deixa atrás de si o seu entulho. Caixões velhos, papéis, bagaços, troços e detritos que formam o lixo mais pobre do Brasil.

Gonzaga Rodrigues, " Um sítio que anda comigo"

Desenredo

Do narrador a seus ouvintes:

— Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.

Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.

Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.

Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.

Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.

Ela — longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.

Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.

Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.

Mas.

Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.

Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.

Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

Mais.

No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã.

A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.

Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.

O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?

Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta.

Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.

Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

E pôs-se a fábula em ata.

Guimarães Rosa, "Tutameia"

Finalmente, fora do limbo

Quando se pensa que a história de uma literatura já está escrita, protagonizada pelos suspeitos de sempre, surpresas acontecem. Autores popularíssimos há 100 anos e desde então sepultados voltam de repente à vida, graças a pequenas e bravas editoras. Com isso, renascem em letra de forma e nos fazem perguntar por onde andavam. No limbo, claro, silenciados por cânones literários totalitários.

No caso, são cinco mulheres: as romancistas Julia Lopes de Almeida (1862-1934), Carmen Dolores (1852-1910, pseudônimo de Emilia Bandeira de Mello) e Chrysanthème (1869-1948, pseudônimo de Cecília Bandeira de Mello e filha de Emilia), a poeta Gilka Machado (1893-1980) e a romancista e poeta Adalgisa Nery (1905-80). Exceto Adalgisa, contemporânea delas, mas que só se revelou mais tarde, todas foram ativas e altivas no Rio de 1900 a 1930. E, ao contrário do que se pensa, não sofreram por serem mulheres e escritoras. Não dariam essa confiança aos homens.

Elas não pediam licença para escrever nem tinham de pagar para publicar. Seus livros eram disputados pelas editoras e tiravam várias edições. Carmen Dolores era a colunista mais bem paga do país. Chrysanthème, uma polemista nata. Julia ajudou a fundar a ABL, deixaram-na de fora e ela nem ligou. Gilka, pelo erotismo de sua poesia, enfureceu os carolas, um deles Mario de Andrade. E Adalgisa apagou a sombra de maridos como Ismael Nery e Lourival Fontes. Independentes e privilegiadas, todas lutaram pelo divórcio, pelo voto feminino e pela educação das mulheres.

Alguns de seus livros estão de novo na praça. De Julia, "A Falência", "A Intrusa", "A Viúva Simões". De Carmen, "A Luta" e "Almas Complexas". De Chrysanthème, "Enervadas". E, de Gilka, sua "Poesia Completa", assim como a de Adalgisa, "Do Fim ao Princípio".

O Brasil dos anos 1920 podia ser um atraso. Mas elas não eram. Esses livros permitem tirar a prova.

domingo, julho 30

Abrigo acolhedor

 


O casamento e a cegonha

Os pais da noiva tinham resolvido que o casamento da filha se faria ali mesmo, na chácara, à boa moda antiga, com mesada de doces, churrasco, muita empada, leitoa, frango assado, boas comidas e abundantes bebidas.

Armou-se o altar na sala da frente. Cobriu-se a mesa do civil com um lindo atoalhado de plástico. Vieram os convidados. Veio o vigário, veio o juiz e veio o escrivão. Testemunhas e a roda dos parentes. Fizeram o casamento. A moça sempre fora alta, grandalhona, fornida de carnes e de bons quartos. Naquele vestido branco, rodado, de babados subindo e descendo, de véu e grinalda, inda mais reforçada parecia.

Como a festança era mesmo de arromba, fogos pipocando, música chegando e muita gente entrando e saindo, ninguém mais reparou nos noivos que depois de posarem para o retrato de praxe, na cabeceira da mesa e de cortarem juntos o bolo artístico, se misturaram com os convidados e cada qual se achou à vontade e sem constrangimento.

O juiz e o vigário deixaram-se ficar numa roda de amigos, conversando com advogados, escrivães, gente do foro.

O baile tinha começado. A moçada saracoteava alegre. Os que não eram de dança, rodeavam a mesa posta, com pratos, copos e garrafas. Espetos de churrasco e bandas de leitão se cruzavam por todos os lados.

Boas comidas, muita bebida e os donos da casa pondo o pessoal à vontade, incansáveis, não cabendo em si de contentes com o casamento daquela primeira filha. Nada alegra tanto o coração da criatura como mesa posta, carne assada, bebidas de graça e falta de cerimônia. Quem contestar esta verdade simples, não merece dois vinténs de crédito.

Bem por isso mesmo diz o caboclo: a alegria vem das tripas — barriga cheia, coração alegre. O que é pura verdade.

A orquestra assoprava valsas e boleros com furor. Os pares girando. Os namorados namorando. Os que não dançavam se encostavam pelas mesas e, quem já estava farto, fazia roda, bebia café, fumava cigarro e contava piadas.
Quando a festança ia mais animada, lá pelas tantas, ouviu-se um corre-corre pelos quartos e corredores.

Logo mais aparecia na sala o dono da casa, ansioso e afobado, se desculpando e pedindo ao juiz e ao vigário fazerem o favor de acabar com a festa porque a noiva estava com dor de parto e a assistente já tinha chegado...

“Isto é que se chama aproveitar o tempo”, comentou um convidado, “numa só festa, casa a filha e chega a cegonha...”
Cora Coralina, "Estórias da Casa Velha da Ponte"

O gigante enterrado

Você teria que procurar muito tempo para encontrar algo parecido com as veredas sinuosas ou os prados tranquilos pelos quais a Inglaterra mais tarde se tornaria célebre. Em vez disso, o que havia eram quilômetros de terra desolada e inculta; por todo lado, trilhas toscas que atravessavam colinas escarpadas ou charnecas áridas. A maior parte das estradas deixadas pelos romanos já teria àquela altura se fragmentado ou ficado coberta de vegetação, muitas delas desaparecendo em meio ao mato. Uma névoa gelada pairava sobre rios e pântanos, muito útil aos ogros que ainda eram nativos daquela terra. As pessoas que moravam ali perto — e pode-se imaginar o grau de desespero que as teria levado a se estabelecer num lugar tão soturno — teriam razão de sobra para temer essas criaturas, cuja respiração ofegante se fazia ouvir muito antes de seus corpos deformados emergirem da neblina. Mas esses monstros não causavam espanto. As pessoas
da época os teriam encarado como perigos cotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças.


De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando — talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios —, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas em sua direção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades.

Numa dessas áreas na beira de um extenso pântano, à sombra de algumas colinas de contornos irregulares, vivia um casal de idosos, Axl e Beatrice. Talvez não fossem exatamente esses os nomes, mas, para facilitar, é assim que vamos nos referir a eles. Eu diria que esse casal levava uma vida isolada, mas naquele
tempo poucos viviam “isolados” em qualquer dos sentidos que entendemos hoje. Para se manter aquecidos e ter proteção, os aldeões moravam em tocas, muitas delas escavadas bem lá no fundo da encosta da colina, que se ligavam umas às outras por passagens subterrâneas e corredores cobertos. O nosso casal de velhinhos morava num desses conjuntos labirínticos de tocas, ou abrigos — “edifício” seria uma palavra digna demais para descrever aquilo —, com cerca de sessenta outros aldeões. Se saísse desse abrigo e caminhasse por vinte minutos ao redor da colina, você chegaria à comunidade vizinha, que lhe pareceria idêntica à primeira. Mas, para os próprios habitantes, haveria muitos detalhes para distinguir um abrigo do outro, dos quais eles sentiriam orgulho ou vergonha.
Kazuo Ishiguro, "O gigante enterrado"

sábado, julho 29

Leitura em campo de trigo

 


Nobre Rua São José

A rua é ainda egrégia e simpática. Tudo se vem fazendo por transformá-la em ponto de estacionamento de automóveis, mas a sombra de Ruy Barbosa, a de João Ribeiro, de poetas antigos, sábios, professores, bibliófilos, estudantes, gente rica e gente pobre, com amor à leitura, que por lá buquinou durante anos e anos, parece frequenta-la ao jeito das sombras: discretamente, na memória dos que gostam de evocar, na saudade de alguns sobreviventes da velha geração de caixeiros, um pouco na poeira das estantes, que as estantes veneráveis não devem ser luzidias. Há também, esparsas, memórias de leiloeiros e antiquários.

Os “sebos” foram rareando, freqüentadores assíduos se despediram para o Caju e o São João Batista, a cidade ensaio novos hábitos, ou simplesmente perdeu velhos e não teve jeito de adquirir outros. Onde reinava o velho Quaresma e depois o velho Matos, há hoje latas de comestíveis. A “Principal”, a “Acadêmica”, o J. Leite saíram da paisagem, emigrando ou desvanecendo-se. Um lado inteiro da rua desapareceu, e foi como se arrancassem metade do tronco a um corpo vivo. Mas, no outro meio-feio, o sobrada da velha Briguiet se mantém fiel a seu destino de casa de livros. Com outro nome e outros ocupantes, o espírito literário não desertou aquelas paragens. Um menino, por assim dizer crescido na Rua São José, ali está hoje, homem feito, e a este não possível demolir nem convencer de que deve negociar em política, importações ou apartamentos. Carlos Ribeiro mantém e revigora, quase sozinho, o espírito da gloriosa Rua São José, que é uma universidade a seu modo: junto às pilhas de livros, sabedores de coisas filosofam ou pontificam. Mocinhas supõem comprar romances, quando na realidade estão se provendo de noções da eterna e tenebrosa ciência de amar; não faltam nem as presses universitaires, pois a rua edita desde manuais de macumba até estudos eruditos; e há sempre uma ideia, um projeto, um traço intelectual no ar, um traço que não quer perder-se e reage contra a burrificação geral da vida carioca.

Mas essa rua é também uma praia, aonde vão dar os volumes de bibliotecas que naufragaram. Vêm de mistura os mestres do pensamento e aquelas tímidas obrinhas de principiantes, que o destinatário nem chegou a abrir. O livreiro recolhe esses destroços e os reanima, pondo-os de novo em circulação. 

O grande poeta estrangeiro oferece seu cântico ao grande poeta nacional e este, de alma doadora por natureza, o passa a um terceiro poeta, que, premido pela dura circunstância (e quem ainda não desfez ou pensou em desfazer sua biblioteca, num dia negro?) o lança à correnteza da Rua São José, onde um quarto poeta o resgata – por quanto tempo? Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, amendoeira"

Sagres

Agosto - 1922

Pela portinhola do comboio vou seguindo a paisagem de figueiras e de vinhas que desfila. De um lado o céu doirado e violeta, do outro todo roxo. Os nomes das estações têm um sabor a fruto maduro e exótico – Almancil-Nexe, Diogal, Marchil... De quando em quando fixo um pormenor: uma mulher passa na estrada branca, entre oliveiras pulverulentas e fantasmas esbranquiçados de árvores, sentada no burrico, de guarda-sol aberto, e dando de mamar ao filho. Terras de barro vermelho. Grupos de figueiras anainhas estendem os braços pelo chão até ao mar, deixando cair na água os ramos vergados de fruto, que só amadurece com as branduras. Uma ou outra casinha reluzindo de caiada: ao lado, e sempre, a nora de alcatruzes e um burrinho a movê-la entre as leves amendoeiras em fila, as oliveiras dum verde mais escuro e a alfarrobeira carregada de vagens negras pendentes. A mesa de Deus está posta. Estradas orladas de cactos imóveis como bronze, e a deslumbrante Fuzeta, com o seu zimbório entre árvores esguias. Ao longe, e sempre, acompanha-me o mar, que mistura o seu hálito a esta luz vivíssima.

Atravesso Portimão de olhos postos no castelo de Arade, onde o velho poeta sonha com O Fausto, e talvez como ele em recomeçar a vida. A luz é cada vez mais viva. Um homem com dois cabazes apregoa na rua: é um tipo seco e tisnado de mouro, de camisola azul e perna nua. Passa uma carrinha guizalhando, e logo atrás outro burro com bilhas de água fresca. É extraordinário o que este pobre jerico inocente e peludo, de olhos límpidos, trabalha no Algarve. É ele que leva a fruta ao mercado e tira a água das noras. Lavra as terras calcinadas, transporta pelas estradas soalheirentas, adornado com cordões vermelhos, quase uma família a dorso. Vai às Caídas buscar as grandes bilhas vermelhas que transpiram, mata a sede da gente e a sede da terra – e não sei se embala os berços... Produz muito e contenta-se com pouco. Detenho-me um instante na cenográfica praia da Rocha, extasiado nos dois grandes penedos destacados e num fio de areia doirada ao pé da água azul – tudo pintado por Manini agora mesmo. A um lado a ponta do Altar entra decidida pelas águas; do outro, o esfumado Lagos mal se entrevê ao longe... Duas impressões se fixam no meu espírito para sempre: a noite extraordinária, a luz maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta luz para se ser feliz. É ela que encanta o Algarve. É ela que produz os figos orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a estalar de sumo, e destilando um líquido perfumado, e o figo preto de enxaire que se mete na boca e sabe a mel e a luz perfeita. É ela a criadora destas agonias doiradas que vão esmorecendo e passando por todos os tons até morrer a muito custo. E as noites mágicas e caladas, as noites sem lua, muito mais claras que as noites do norte, em que se distingue a brancura voluptuosa das casas e se vêem as estrelas enormes reluzindo através das amendoeiras.

Lagos, o deslumbramento da baia, e sigo logo de carrinha pela estrada branca, entre amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres com grandes chapeletas na cabeça, a apanhar a amêndoa varejada. Às figueiras chega-se com a mão. Há algumas que deitam braços, mergulham-nos na terra, criam novas raízes e tornam a puxar outra figueira. Há-as aninhadas, com um metro de altura e uma roda enorme. Há-as muito velhas, retorcidas, com os ramos em novelo. Mas cruzo a estrada da Luz, e logo, de Almádena para diante, a terra muda de aspecto. Estranho o Algarve. Deixa de ser risonho e torna-se rasteiro e pedregoso. Inquieta-me... É a via sacra que começa. O monte desolado enegrece. Até as casas são escuras. A terra dá calhaus roídos, e de Budens para lá, a desolação redobra. Nem uma figueira, nem uma amendoeira. Pedras cor de lousa, resteva e rosmano. E a esta uniformidade sucedem na estrada deserta as ondulações de Vila do Bispo com alguns moinhos abandonados. Cinza, vegetação pegajosa, cujas folhas rebrilham como vidrilhos – a folha do rosmano, que desta secura extrai a humidade das lágrimas. Mais alguns passos e, ao cair fúnebre da tarde, isto atinge a opressão. Não pelo que é. É nada. É o vago acinzentado. Nem tojo, nem pedras. Uma terra indefinida e plana como um pensamento doloroso que se obstina e não consegue fixar-se. Bandos de gralhas levantam voo no deserto...

O promontório é um punho nodoso, com dois dedos estendidos para o mar – a ponta de S. Vicente e a ponta de Sagres. Nos dias sem sol, como o de hoje, os dedos parecem de ferro: apontam e subjugam-no. Em frente o mar ilimitado; em baixo o abismo, a cem metros de altura. Ventanias ásperas descarnam o morro cortado a pique, e no Inverno as vagas varrem-no de lado a lado. Sagres é o cabo do mundo. Levo os pés magoados de caminhar sobre pedregulhos azulados, num carreirinho, por entre lava atormentada. Do passado restam cacos, o presente é uma coisa fora da realidade, grande extensão deserta, pardacenta e encapelada, com pedraria a aflorar entre tufos lutuosos; vasto ossário abandonado onde as pedras são caveiras, as ervas cardos negros e os tojos só espinhos e algumas folhas de zinco. O mar – é verdade, esquecia-o – mas o mar como imensidade e tragédia, e ao lado a gigantesca ponta de S. Vicente, só negrume e sombra. Mar e céu, céu e mar, terra reduzida a torresmos, e o sentimento do ilimitado.
Grande sítio para ser devorado por uma ideia! Isto devia chamar-se Sagres ou a ideia fixa... Só agora entrevejo o vulto do Infante. Cerca-o e aperta-o a solidão de ferro. Pedra e mar – torna-se de pedra. Está só no mundo e contrariado por todos. Obstina-se durante doze anos! Contra o clamor geral. – Perdição! Perdição! – agoura toda a gente, e Ele não ouve os gritos da plebe ou a murmuração das pessoas «de mais qualidade» (Barros). Aqui não se ouve nada... Nem um sinal de assentimento encontra. Não importa. Só e o sonho, na gigantesca penedia que com dois dedos inexoráveis aponta o caminho marítimo para as Índias pela direcção da ponta de Sagres, e a descoberta do Brasil pela direcção da ponta de S. Vicente. Lágrimas, orfandades, mortes... Mas o homem de pedra está diante deste infinito amargo e só vê o sonho que o devora. Rodeia-o a imensidão. Os mais príncipes contentam-se «com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitação dos homens». Este Príncipe não. Este Príncipe pertence a outra raça e a outra categoria de homens. Não lhe basta um grande sonho – há-de por força realizá-lo e «levar os Portugueses a povoar terras hermas por tantos perigos de mar, de fome e de sede». Não é egoísmo, mas só vive para o pensamento que se apoderou de todo o seu ser. Um pensamento e o ermo. E este é óptimo para forjar uma alma à luz do céu ou do inferno. Os dias neste sítio magnético pesam como chumbo. Uma pobre mulher do povo dizia-me ontem: – Isto aqui é tão nu e tão só que a gente ou se agarra a um trabalho e não o larga, ou morre.

É a realidade que nos mata. Este panorama é na verdade trágico. Não cessa dia e noite o lamento eterno da ventania e das águas. E os cabos, que são de ferro e escorrem sangue, obstinam-se em apontar o seu destino de dor a esta terra de pescadores.”
Raul Brandão, “Pescadores”

Aqueles tempos da Boate Id

Pela manhã, de segunda a sexta, as aulas na Faculdade de Direito. Pela tarde frequentava a Biblioteca Municipal na Praça Tomé de Sousa. Depois ia visitar a Livraria Civilização. Comprava o livro de Sartre na expectativa de que a sua leitura abriria as portas do mundo, nasceria devagar e se repetiria em curvaturas de caminhos e linhas retas das subidas.

Gostava de ficar vendo no passeio da Rua Chile com algum amigo o desfile provocante das moças, algumas no frescor de idade jovial, na estação virginal desfilando como se fosse em tempo de botão a se entreabrir na flor daí em instante.

À noite estudava as lições de Direito no volume grosso. Sua concentração na leitura do capítulo sobre contratos e obrigações era interrompida com os gemidos que vinham da mãe no quarto. Lágrimas caíam do rosto transtornado, sentia-se impotente para mudar o destino de sofrimento da mãe, dilacerando-o no sentido de que as coisas postas no mundo não mais poderiam ser alcançadas por ela na rotação diária da vida.

A noite do sábado era para se encontrar com os amigos, conversar sobre direito, filosofia, sociologia e literatura nos botecos e bares da Ajuda. Assim, de conversa em conversa, beber aos goles prazerosos a noite sensual de Salvador de Bahia. O bate-papo com os amigos sobre literatura e outros conhecimentos humanos terminava com a visita à Boate Id.

Ficava em um desses sobrados antigos de Salvador, na cidade alta. Uma escada estreita terminava no terceiro andar onde funcionava a boate, que enchia com os frequentadores na noite de sábado. Lá dentro, as mesas com quatro cadeiras distribuídas por vários cantos do salão, ao redor do círculo que servia como pequena pista de dança. À direita da entrada da boate havia um barzinho onde apenas o garçom ia buscar no balcão a bebida com o tira-gosto pedido pelo cliente. Ao lado do barzinho, a toalete masculina e a feminina.

A música ao vivo. O conjunto musical, constituído do pianista, baterista, saxofonista e cantor, tocava no tablado pequeno, armado junto a uma das paredes laterais do salão. Ninguém podia entrar no recinto acompanhado de mulher. A Boate Id tinha as suas meninas, que assim eram conhecidas, cada uma com o seu jeito sensual para atrair a atenção do homem, que acabava de chegar ao recinto, interessado no prazer que a noite oferecia, submetendo-se na vontade por uma espécie de vinho procurado por todos, naquele instante vertido de gozo. Os pares conversavam sentados ao redor de cada mesa, misturando as vozes com a sensação de prazer que lhes davam a bebida e o cigarro.

Naquele tempo era comum a cidade de Salvador propiciar encontro de amigos nem sempre em um local marcado. A cidade ainda mantinha um jeito de interior, mesmo se tratando de uma das capitais mais importantes do Nordeste. Sua população talvez tivesse uns quinhentos mil habitantes. Em alguns locais como a Rua Chile, a cidade toda passava durante a semana.

A noite oferecia a oportunidade de extrair de alguns o tédio ou a angústia, que à época se chamava de fossa, escondida atrás de uma fachada aparentemente brilhante, mas em situação crítica, formada por conflitos, fissuras e rupturas de um caos interior ou em família. E porque tinha gente que sobrevivia vendendo acarajé, abará, mingau, pipoca, milho assado e churrasquinho de carne no espeto, na rua onde estava localizada a Boate Id, como em outros locais semelhantes da Cidade Alta, houve quem dissesse que Salvador era uma mão acolhedora, que protegia os que dependiam para sobreviver de um precário comércio improvisado na boca da noite.

Para os que circulavam na boêmia, a noite podia significar um desabafo no encontro fugaz do amor com uma das meninas da Boate Id. Reciclava-se dessa maneira, no ímpeto máximo do prazer, a energia que o corpo necessitava para prosseguir na semana pelos caminhos árduos da vida.

Houve um estudante, filho de família rica do interior, que teve um romance com uma das meninas da Boate Id. Foi um grande transtorno para a família saber daquele romance entre um rapaz de classe alta e uma mulher que ia para a cama fazer amor com o homem que lhe pagasse pela entrega do corpo. O estudante fez cinco vezes o vestibular de Direito sem lograr êxito. Como foi que terminou aquele romance impregnado de volúpia? O estudante foi viver com a amada em alguma cidade do interior baiano ou deu um ponto final naquela dissipação da vida, em noites perdidas com bebida, cigarro, dança e muita paixão por uma mulher que mercava o sexo na vida difícil que levava?

Na Boate Id era reprovado o gesto de algum homem que saísse do limite e ousasse chamar uma das meninas de puta. Por sua inconveniência, calcada em ressentimentos pessoais ou paixão compulsiva, era colocado para fora do recinto pelo segurança. Quando insistia na ofensa, causando o escândalo, podia ficar proibido de frequentar a boate para sempre.

sexta-feira, julho 28

Varanda da leitura

 


Experiência exclusiva


Lembrar dos livros, de qualquer modo, é livre. Uma experiência que nos pertence por exclusivo 
Valter Hugo Mãe

O principezinho

Estava o principezinho sentado, com as mãos e a cabeça sobre os joelhos, e dormia. A seu lado, brinquedos esperavam: a boneca de plumas, o lhama, a bolsa contendo pequeninas coisas. O sono era tão mineral que o principezinho se deixou carregar por dois estranhos, e se naquela postura estava, naquela postura ficou. Desceram-no e depositaram-no, com seus objetos, ao pé da escarpa.


Pessoas experimentadas inferiram que ele se perdera na montanha, e adormecera com fome. Outras vislumbraram no rosto semidescoberto uma expressão de medo — como a de menino que presenciasse um bombardeio aéreo —, e sua atitude seria a de quem se protege contra perigo iminente. Mas, observando bem, sentia-se a paz daquele sono, que nem a picareta dos homens batendo na rocha viera perturbar, aquele sono que envolvia todo o menino numa peculiar camada de silêncio, e o tornava indiferente ao desconforto da posição e ao frio da altura.

Sua condição de príncipe ressaltava das vestes e adornos, que eram nobres, e se confirmava no lavor de ouro dos brinquedos. Cingia-o um colar de pérolas; a boneca tinha o ombro traspassado por um grande alfinete de prata.

Alçaram de novo o principezinho e levaram-no para a cidade grande, onde é hoje objeto de pasmo geral. Continua dormindo. Jornais cinematográficos espalharam pelo mundo sua imagem. Agora, chega uma revista com a fotografia do principezinho, sempre dormindo, sempre enrodilhado, e tão distante de nossa curiosidade como dos asteroides minúsculos que o seu colega, imaginado por Saint-Exupéry, gostava de percorrer.

Todo o barulho da terra não faria essa criança acordar. Dorme há quinhentos anos, desde o dia em que os pais a colocaram a uma altura de cinco mil metros, protegendo-lhe o sono com amuletos. É um príncipe da nação dos Incas, e maravilhoso acaso foi esse, de gente rústica, há trinta anos à procura de um tesouro, deparar com o seu pequeno túmulo congelado.

O gelo conservara pois, por sua simples virtude, no alto de um pico chileno, uma criança nascida quando não existiam nem Pizarro, nem Chile, nem Brasil, nem América. Foi-se o glorioso Império dos Incas, com sua pompa, e nos deixou apenas formas artísticas, modeladas por arquitetos, escultores, joalheiros e tecelões, ou simples palavras, incorporadas às línguas em uso; o ser humano contemporâneo dessas formas e símbolos, este se despedira para sempre, e nos tristes quíchuas de hoje não erra mais que o seu reflexo longínquo. Mas o menininho, acocorado e dormindo o mesmo sono iniciado há cinco séculos, aí está agora, a cativar-nos com o seu mistério.

Envelhecemos depressa. O tempo de uma criança dormir, e Maias e Incas desaparecem, e o Império Espanhol na América se inaugura e se faz em escombros, e o português também: ela ainda não acordou, e já nascem e morrem Camões, Cervantes, Shakespeare, Racine, São Vicente de Paulo, Newton; e vêm os direitos do homem, e surgem teorias novas, e novas guerras. Em seu sono infinito, o menino passou pelos homens e suas obras, por instituições, ideias, sonhos, vidas e mortes, sempre dormindo em postura humilde, cercado de ídolos, cachos de cabelos, dentes de leite. Nada mudou para ele. O mundo é talvez um sonhar acordado. Dorme, menininho, dorme.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"

quarta-feira, julho 26

Pego na mentira

 


O homem, a guerra, o desastre e o infortúnio

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego coletivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em ação. Da paz se diz que é podre, porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inatividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.

Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de fato é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados.
Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente IV"

Chupando laranjas

Era costume generalizado em Minas que as famílias se reunissem lá pelas duas e meia da tarde para o “café da tarde”, que constava de café, leite, pão de queijo, biscoitos, rosca, queijo, manteiga. Quando era tempo de alguma fruta, o café da tarde era substituído pela dita fruta. No tempo das laranjas eram as laranjas. Nós nos reuníamos no quintal, assentados em tamboretes, tendo uma cesta de laranjas no meio, cada um com uma faquinha. E aí íamos chupando. Tinha inveja do meu pai. Ele descascava as laranjas com perfeição. As cascas saíam inteiras, sem que as laranjas fossem feridas. As cascas eram guardadas. Meu pai, campeão na chupação de laranjas, chegava a pendurar quinze cascas no braço esquerdo. Para quê? Alguém descobriu que as cascas das laranjas depois de secas eram poderosos combustíveis. Elas se incendiavam com fúria à medida que produziam chamas azuis. Eu e o meu irmão Ivan nos perguntávamos: “Que substância química estará dentro das cascas das laranjas?”. Sendo tempo do desaparecimento da gasolina, chegamos a aventar a hipótese de um combustível feito a partir das cascas das laranjas. Um combustível com perfume de laranja... Terminada a chupação de laranjas, todas as cascas eram recolhidas e penduradas num varal de arame esticado sobre o fogão para secar.
Rubem Alves, "O velho que acordou menino"

Bela na livraria


 

O Conflito

Número fatídico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim também as virgens ruivas de Tebas deviam abençoar a égua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrifício de Pelópidas, – uma donosa égua, que lá morreu, coberta de flores, sem que ninguém lhe desse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-ta eu, égua piedosa, não só pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas, não é impossível que figurasse uma avó dos Cubas... Número fatídico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a causa de recusa; disse-me também que eram negócios particulares, e o rosto sério, convencido, com que eu o escutei, fez honra à dissimulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e ria muito, com estrépito e afetação. Oprimiam-no duas coisas, – a ambição, que um escrúpulo desazara, e logo depois a dúvida, e talvez o arrependimento, – mas um arrependimento, que viria outra vez, se se repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno digno de alguma atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de Dona Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o ar.

– Que tem isso? perguntava-lhe eu.

– Faz mal, era a sua resposta.


Isto somente, esta única resposta, que valia para ela o livro dos sete selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e ela contentava-se com a certeza do mal.

Já não acontecia a mesma coisa quando se falava de apontar uma estrela com o dedo; aí sabia perfeitamente que era caso de criar uma verruga.

Ou verruga ou outra coisa, que valia isso, para quem não perde uma presidência de província? Tolera-se uma superstição gratuita ou barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o caso do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não acreditou nos motivos particulares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos políticos, ilusão complicada de algumas aparências; tratou-o mal, comunicou a desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes; enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a oposição.
Machado de Assis, "Memórias Póstumas de Brás Cubas"

A propósito da neve úmida

A fase de minhas devassidõezinhas estava terminando, e eu começava a ficar terrivelmente nauseado. Se era assomado pelo arrependimento, eu o enxotava: a náusea que ele causava era demasiada. Aos poucos, porém, fui me acostumando com isso também. Eu me acostumava a tudo, ou melhor, não me acostumava, propriamente, e sim, de certa forma, concordava voluntariamente em suportar. Mas eu tinha uma saída conciliadora, que era refugiar-me em tudo que fosse “belo e sublime”, em sonhos, naturalmente. Eu era um terrível sonhador, sonhava até por três meses seguidos, enfiado no meu canto, e creiam-me: nesses momentos eu não me parecia com aquele senhor que, na perturbação de seu coração de galinha, costurava uma pele de castor alemã à gola do seu capote. De repente me transformava em herói. Não admitiria meu tenente grandalhão na minha casa nem como visita. Já nem conseguia mais imaginá-lo. Agora é difícil dizer quais eram os meus sonhos e como eles podiam me satisfazer, mas o fato é que naquela época eles me satisfaziam. Aliás, mesmo agora eu me satisfaço parcialmente dessa maneira. Sonhos particularmente mais fortes e doces me vinham depois da devassidãozinha, vinham com arrependimento e lágrimas, com maldições e arrebatamentos. Aconteciam momentos tão bons de inebriamento, de tal felicidade, que, juro por Deus, não sentia dentro de mim nem sombra de deboche. O que havia era fé, esperança e amor. Acontece que, naquela época, o que eu acreditava cegamente era que por um milagre, por uma circunstância exterior qualquer, tudo de repente iria mover-se, alargar-se; que de repente surgiria o horizonte da atividade conveniente, nobre e maravilhosa e, principalmente, completamente pronta (exatamente qual seria eu nunca soube, mas o mais importante é que estaria completamente pronta), e eu surgiria de repente neste mundo de Deus nada menos que montado num cavalo branco e com uma coroa de louros. Um papel secundário eu nunca pude aceitar, e era por isso que na vida real ocupava muito tranquilamente o último lugar. Ou herói ou a lama, não havia meio-termo. Isso foi a minha perdição, porque, na lama, eu me consolava dizendo que em outras ocasiões eu era herói, e o herói encobria a sujeira: para uma pessoa comum, é vergonhoso sujar-se na lama, mas um herói está muito acima de tudo e não vai se sujar inteiramente, por isso ele pode sujar-se um pouco. É admirável que esses acessos de “tudo o que é belo e sublime” me vinham também durante minha devassidãozinha, e precisamente no momento em que eu me encontrava já no fundo; vinham como pequenos lampejos isolados, como que para se fazerem lembrar, mas, pelo fato de aparecerem, não a impediam; ao contrário, parece que a avivavam pelo contraste e vinham na medida exata para um bom molho. O molho, aqui, era constituído de contradições e sofrimentos, de uma análise interior martirizante, e todos esses suplícios e supliciozinhos conferiam um sabor picante e até um sentido à minha devassidãozinha – em suma, executavam perfeitamente a função de um bom molho. Tudo isso se dava não sem uma certa profundidade. E acaso eu poderia concordar com uma devassidãozinha de segunda, simples, vulgar, direta, de amanuense, e suportar toda essa sujeira? Que poderia haver nela para me seduzir e atrair para a rua à noite? Não, senhores, eu tinha uma escapatória nobre para tudo...

Porém, quanto amor, senhores, quanto amor eu experimentava nesses meus devaneios, nessas “salvações em tudo o que é belo e sublime”: embora fosse um amor fantástico que jamais se aplicaria a alguma coisa humana e real, ele era tão grande que nem se sentia necessidade de aplicá-lo à realidade, pois seria um luxo excessivo. Tudo, aliás, terminava sempre da maneira mais satisfatória, com a passagem preguiçosa e inebriante para a arte, ou seja, para as belas formas da existência, inteiramente acabadas, fortemente roubadas dos poetas e romancistas e que se adaptam facilmente a toda sorte de serviços e exigências. Eu, por exemplo, triunfo sobre todo mundo. Todos, evidentemente, viraram pó e são obrigados a reconhecer espontaneamente as minhas perfeições, mas eu os perdoo. Ora me apaixono, quando sou um poeta célebre e camerista da corte, ora recebo incontáveis milhões e logo em seguida sacrifico-os em prol do gênero humano e, na mesma ocasião, confesso diante do povo as minhas infâmias que, evidentemente, não são simplesmente infâmias, mas que encerram em si uma quantidade extraordinária de “belo e sublime”, algo “manfrediano”. Todos choram e me beijam (de outra forma, que idiotas eles seriam!), e eu parto, descalço e faminto, para pregar novas ideias e derroto os retrógrados em Austerlitz! Em seguida começa a soar uma marcha, é decretada a anistia, o papa concorda em deixar Roma e ir para o Brasil; depois há um baile para toda a Itália na Villa Borghese, que está situada na margem do lago de Como, que fora transportado para Roma especialmente para essa ocasião; depois há uma cena entre os arbustos, etc., etc. Será que senhores não sabem disso? Os senhores dirão que é vulgar e indigno expor tudo isso em praça pública, depois de tantos arrebatamentos e lágrimas que eu mesmo confessei. Por que seria indigno? Será possível que os senhores pensem que eu me envergonho de tudo isso e que tudo isso era mais idiota do que qualquer episódio de suas próprias vidas? Ademais, acreditem os senhores: algumas coisas estavam até bem resolvidas para mim... Nem tudo se passava no lago de Como. Aliás, os senhores estão certos: de fato era vulgar e indigno. Mas o mais indigno de tudo é que agora comecei a me justificar para os senhores. E mais indigno ainda é eu estar fazendo esta observação. Mas basta, senão isso nunca terá fim: sempre haverá uma coisa mais indigna que a anterior…

Eu não era capaz de ficar mais de três meses seguidos devaneando e começava então a sentir uma necessidade incontrolável de mergulhar na sociedade, o que, para mim, significava visitar o meu chefe de seção, Anton Anônytch Sétotchkin. Foi a única pessoa conhecida com quem mantive uma relação constante durante toda a vida, fato que, agora, até eu mesmo considero surpreendente. Mas, mesmo à sua casa, eu só ia quando entrava na fase oportuna, e meus sonhos atingiam tal felicidade que eu sentia uma necessidade imperiosa de imediatamente abraçar as pessoas e toda a humanidade; e, para isso, era necessário ter a presença de pelo menos uma pessoa concreta. Anton Antônytch recebia às terças-feiras e, consequentemente, a vontade de abraçar toda a humanidade tinha que cair sempre na terça-feira. Esse Anton Antônytch morava perto das Cinco Esquinas, no quarto andar, num apartamento de quatro peças, cada uma menor que a outra, com o teto baixinho, tudo meio amarelado e dando a impressão de economia. Viviam com ele as duas filhas e a tia delas, que servia o chá. As filhas tinham treze e catorze anos e ambas tinham narizinho arrebitado. Eu ficava terrivelmente constrangido na presença das meninas, porque elas cochichavam o tempo todo, dando risadinhas. O dono da casa geralmente permanecia no seu escritório, sentado num divã de couro em frente à mesa, em companhia de algum convidado de cabelos grisalhos, funcionário do nosso departamento ou mesmo de algum outro. Nunca vi lá mais de dois ou três visitantes, e eram sempre os mesmos. Conversavam sobre o imposto indireto, as licitações no senado, os salários, a produção, Sua Excelência, os meios de agradar, etc. etc. Pacientemente, eu ficava ali sentado umas quatro horas junto a essas pessoas como um idiota, ouvindo-as, sem coragem ou sem assunto para falar com elas. Sentia-me burro, vinham-me ondas de suor e parecia que estava tendo um ataque de paralisia, mas isso tinha seu lado bom e útil. Chegando em casa, por algum tempo desistia do meu desejo de abraçar a humanidade.

Pensando bem, eu ainda tinha um tipo de conhecido, o meu colega de escola Símonov. Eu tinha muitos ex-colegas de escola em Petersburgo, mas não me dava com eles e já nem os cumprimentava na rua. Talvez eu tenha pedido transferência para outro departamento justamente para não ficar junto deles e romper de uma vez por todas com a minha infância detestável. Que a maldição caia sobre aquela escola e aqueles terríveis anos de trabalhos forçados! Resumindo, eu me separei dos meus colegas assim que ganhei a liberdade. Restaram uns dois ou três que eu ainda cumprimentava quando encontrava. Um deles era Símonov, que na escola não se distinguia em nada, era quieto e constante, mas em quem eu percebi alguma independência de caráter e mesmo honestidade. Até nem acho que ele fosse muito limitado. Numa certa época, nós dois tivemos alguns momentos bastante agradáveis, mas que não duraram muito e, de repente, parece que foram encobertos por uma espécie de bruma. Aparentemente, essas recordações eram difíceis para ele, que parecia temer que eu voltasse ao antigo tom. Eu desconfiava de que lhe causava muita repugnância, mas apesar de tudo eu o visitava, pois não tinha certeza absoluta disso.

Certa quinta-feira, não suportando minha solidão e sabendo que naquele dia a porta de Anton Antônytch estava fechada, lembrei-me de Símonov. Quando subia para o quarto andar, estava exatamente pensando que esse senhor não se sentia à vontade comigo e que em vão eu o procurava. Mas, como sempre, tais reflexões, como que de propósito, incitavam-me ainda mais a me meter em situações dúbias, e eu entrei. Fazia quase um ano que eu não via Símonov.
Fiódor Dostoiévski, "Notas do Subsolo"

terça-feira, julho 25

Seja um transatlântico

 


Liberdade

Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se têm levantado estátuas e monumentos, por ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam "Liberdade, Igualdade e Fraternidade! "; nossos avós cantaram: "Ou ficar a Pátria livre/ ou morrer pelo Brasil!"; nossos pais pediam: "Liberdade! Liberdade! abre as asas sobre nós", e nós recordamos todos os dias que "o sol da liberdade em raios fúlgidos/ brilhou no céu da Pátria..." em certo instante.

Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre como diria o famoso conselheiro... é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo de partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autômato e de teleguiado é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Suponho que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir. (Às vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso...)

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) Não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento!

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos!

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos, que falam de asas, de raios fúlgidos linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...
Cecília Meireles, "Escolha o seu sonho"

Sobre andar e tropeçar

Venho esquecendo muitas coisas. Mas tenho aprendido algumas, também. Uma das mais recentes é a descoberta de que andar é um verbo irregular. Na teoria, talvez não. Mas a prática diária tem me posto diante da realidade de tropeçar, tropicar, cambalear, cair, desabar.

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Digam-me que um poeta deve ter assuntos mais preciosos do que o amor, e eu lhes direi que vocês estão agudamente enganados.

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Se tenho alguma virtude, ela é meu comedimento. Não sou gênio nem portento. Fiz apenas o que pude.

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Um dia descobriremos talvez por que estamos aqui, para que viemos . E será uma revelação tão simples, tão sem afetação e filosofia, que nos olharemos e diremos: ora, é isso, então? Isso nós já sabíamos, isso nós sempre soubemos.

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Lembrar os dias de febre, cantar os dias de pompa, antes que o fio se rompa, antes que a vida se quebre.

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Das loiras de sua vida, a mais gelada, hostil, malévola e inconquistável foi Estocolmo.

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A desproporção com que Deus usou o verde em sua obra máxima, e que hoje é reconhecida pelos críticos como um dos mais gritantes erros da Criação, só começou a ser notada depois do advento do futebol, mais precisamente a partir de 1910.

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Um dos itens do manual de sobrevivência dos haicais recomenda que, ao menor sinal de gongorismo, fujam com todas as asas que tiverem.

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Ter seguidores na rede social, ainda que poucos, é o pior dos pesadelos para um paranoico.

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Questão de leveza: a borboleta transporta o haicai ou é o haicai que transporta a borboleta?

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Um poeta deve estar preparado para viver fatos extraordinários, como erguer a mão para o céu e colher uma estrela ou erguê-la e vê-la voltar decepcionantemente vazia.

segunda-feira, julho 24

Antigamente...

 


Amor

Outro dia liguei o rádio e ouvi que faziam um concurso entre os ouvintes procurando uma definição para amor. As respostas eram muito ruins, até dava para se pensar que nem ouvintes nem locutores entendiam nada de amor realmente; o lugar-comum é mesmo o refúgio universal, que livra de pensar e dá, a quem o usa, a impressão de que mergulha a colher na gamela da sabedoria coletiva e comunga das verdades eternas. O que aliás pode ser verdade.

Mas a ideia de definição me ficou na cabeça e resolvi perguntar por minha conta. Tive muitas respostas. A impressão geral que me ficou do inquérito é que de amor entendem mais os velhos do que os moços, ao contrário do que seria de imaginar. E menos os profissionais que os amadores __digo os amadores da arte de viver, propriamente, e os profissionais do ensino da vida.

Vamos ver:

Dona Alda, que já fez bodas de ouro, diz que o amor é principalmente paciência. Indaguei: e tolerância? Ela disse que tolerância é apenas paciência com um pouco de antipatia. E diz que amor é também companhia e amizade. E saudade? [...] Não. Afinal, o amor não vai embora. Apenas envelhece, como a gente.

A jovem recém-casada me diz que o amor é principalmente materialismo. Todos os sonhos das meninas estão errados. Aquelas coisas que se leem nos livros da Coleção das Moças, aqueles devaneios e idealismos e renúncias e purezas, está tudo errado. Quando a gente casa, é que vê que o amor não passa de materialismo. [...]

Um senhor quarentão, bem casado, pai de filhos: "Amor, como se entende em geral, é coisa da juventude. Depois de uma certa idade, amor é mais costume. É verdade que tem a paixão com seus perigos. Mas você falou em amor e não em paixão, não foi?"

__ E de paixão, que me diz? __ Aí ele se fecha em copas. "Deixo isso para os jovens. Velhote apaixonado é fogo. E eu não passo de um pai de família."
A mãe da família desse senhor: "Amor? Bem, tem amor de noiva, que é quase só castelos e tolices. Tem o de jovem casada, que é também muita tolice __ mas sem castelos. Complicado com ciúme, etc., mas já inclui algum elemento mais sério. E tem o amor do casamento, que é a realidade da vida puxada a dois. Agora, o amor de mãe... Você perguntou também o amor de mãe?"

Respondi energicamente que não: amor de mãe, não. Quero saber só de amor de homem com mulher, amor propriamente dito.

Diz o solteiro, quase solteirão, que se imagina irresistível e incansável: "Amor é perigo. Só é bom com mulher sem compromissos. [...] O melhor é amor forte e curto, que embriaga enquanto dura e não tem tempo para se complicar. Aquela história de marinheiro com um amor em cada porto tem o seu brilho, tem o seu brilho".

O pastor protestante diz que o amor é sublimar a atração entre os dois seres, é atingir a mais alta e pura das emoções. Não confundir amor com sexo! [...]
Já o padre católico não elimina o sexo do amor. Explica que, pelo contrário, o sexo, no amor, é tão importante como os seus demais componentes __ o altruísmo, a fidelidade, a capacidade de sacrifício, a ausência do egoísmo. E é tão importante que, para santificar o amor sexual __ o amor conjugal __, a Igreja o põe sob a guarda de um sacramento, o santo matrimônio. E ante a pergunta: se tudo é assim tão santo, por que os padres não casam? O padre velho não se importa com a impertinência, sorri: "Nós nos demos a um amor mais alto. Casamento, para nós, seria pior que bigamia..."

E por último tem a matrona sossegada que explica: "Amor? Amor é uma coisa que dói dentro do peito. Dói devagarinho, quentinho, confortável. É a mão que vem da cama vizinha, de noite, e segura na sua, adormecida. E você prefere ficar com o braço gelado e dormente a puxar a sua mão e cortar aquele contato. Tão precioso ele é. Amor é ter medo __ medo de quase tudo __ da morte, da doença, do desencontro, da fadiga, do costume, das novidades. Amor pode ser uma rosa e pode ser um bife, um beijo, uma colher de xarope. Mas o que o amor é, principalmente, são duas pessoas neste mundo".

Rachel de Queiroz, "Cenas brasileiras"

O canário

... Você vê aquele grande prego à direita da porta da frente? Dificilmente olho para ele, mesmo agora, e até hoje não tive vontade de arrancá-lo. Gostaria de pensar que ele fosse permanecer ali, mesmo depois de mim. Às vezes imagino as pessoas no futuro a dizerem: "Deve ter havido uma gaiola pendurada ali." E isso conforta-me; sinto que ele não está inteiramente esquecido.

... Você não pode avaliar como era maravilhoso o seu canto: não .cantava como os outros canários. E isto não é apenas fantasia minha. De minha janela, eu costumava ver as pessoas pararem em frente ao portão, para ouvir melhor, ou encostarem-se na cerca perto da falsa-laranjeira, um bocado de tempo, emocionadas. Suponho que você vá achar isso um absurdo — não acharia se o tivesse ouvido cantar —, mas parecia, realmente, que ele cantava as canções completas, com começo e fim.

... Por exemplo: à tarde, quando eu terminava o serviço, mudava de blusa e trazia minha costura para a varanda, ele costumava pular de um poleiro para o outro, bater contra as grades da gaiola, como se fosse para atrair minha atenção, bebia um gole d'água, tal como o faria um cantor, e punha-se a executar uma canção tão afinada que eu tinha de largar a agulha para ouvi-lo. Não sou capaz de descrevê-lo; bem que gostaria. Era sempre igual, toda tarde, e eu sentia que compreendia cada nota emitida.

... Eu o amava. Como eu o amava! Talvez não importe muito que coisa amamos neste mundo. Mas devemos amar alguma coisa. É claro, eu tinha minha casinha e o jardim, mas, por algumas razões, não era o bastante. Flores são maravilhosas, mas não sabem demonstrar simpatia. Naquela ocasião eu amava a Estrela Dalva. Isto lhe parece uma tolice? Eu tinha o costume de ir para o jardim, depois do pôr-do-sol, e esperá-la até que brilhasse por cima do eucalipto escuro. Eu costumava murmurar: "Aí está você, minha querida." E exatamente nesse instante ela parecia brilhar só para mim. Ela parecia compreender isso... alguma coisa que é como um anseio, mas não é um anseio. Ou lamento — sim, é mais parecido com lamento. E, no entanto, lamento por quê? Eu tenho tantos motivos para ser grata!

... Mas depois que ele entrou em minha vida, esqueci a Estrela Dalva; não precisei mais dela. Mas foi estranho. Quando o chinês chegou à minha porta vendendo pássaros, ele, em sua pequena gaiola, em vez de se debater contra as grades, como aqueles pobres pintassilgos, soltou um trinado fraco e curto, e eu me vi dizendo, como havia dito para a estrela por cima do eucalipto: "Aí está você, meu querido." Desde aquele momento, ele foi meu.

... Até hoje me surpreendo, quando me lembro de como ele e eu partilhávamos nossas vidas. Na hora em que eu descia, pela manhã, e retirava a toalha que cobria sua gaiola, ele saudava-me com uma notinha sonolenta. Sentia que ele queria dizer: "Tia! Tia!" Então, pendurava a gaiola no prego do lado de fora, enquanto servia o café aos meus três rapazes, e nunca o levava de volta para dentro enquanto não tínhamos a casa só para nós dois. Depois, enquanto eu lavava a louça, era uma diversão completa. Eu abria um jornal sobre um canto da mesa e, logo depois que eu punha a gaiola sobre o jornal, ele costumava bater as asas desesperadamente, como se não soubesse o que ia acontecer. "Você é um perfeito ator", eu gostava de dizer-lhe com ar de zangada. Eu raspava o fundo da gaiola, espalhava areia em cima, renovava a água e o alpiste das latinhas, espetava um pedaço de couve e meia pimenta malagueta na grade. Tenho plena certeza de que ele compreendia e apreciava cada item dessa pequena operação. Sabe, ele era por natureza muito asseado. Nunca havia uma sujeira em seu poleiro. E era preciso ver como gostava de se banhar, para se perceber que ele tinha verdadeira paixão por limpeza. Sua banheira era colocada por último; no mesmo instante ele pulava nela. Primeiro batia uma asa, depois a outra; então, mergulhava a cabeça e umedecia as penas do peito. Gotas d'água espalhavam-se por toda a cozinha, mas ele ainda não queria parar. Eu costumava dizer-lhe: "Agora basta. Você está apenas se exibindo." E por fim ele pulava para fora e, de pé sobre uma das pernas, começava a se bicar para enxugar-se. Finalmente sacudia-se, dava uma pirueta, um gorjeio, levantava a cabeça e... Ah! como dói lembrar. Nessa hora eu estava sempre enxugando as facas e quase me convencia de que elas também cantavam quando eu as esfregava para brilharem em cima da tábua.

... Companhia! É isso, veja, isso é o que ele era. Uma companhia perfeita. Se você algum dia viveu só, compreenderá o quanto isto é precioso. É verdade que havia meus três rapazes, que chegavam para o jantar todas as tardes e algumas vezes ficavam na sala, lendo o jornal. Mas eu não podia esperar que eles se interessassem pelas pequenas coisas corriqueiras do meu dia-a-dia. Por que se interessariam? Eu nada era para eles. Na verdade, eu os ouvira certa vez na escada referindo-se a mim como "O espantalho". Não importa. Não tem importância. Eu entendo muito bem. Eles são jovens. Por que haveria eu de ficar ressentida? Mas lembro-me de me sentir grata por não estar inteiramente só, naquela noite. Eu lhe disse, depois que os rapazes tinham ido embora. Eu lhe disse: "Você sabe de que nome eles chamam a Tia?" E ele deixou cair a cabeça para um lado e olhou-me com seu olhinho brilhante até que eu não pude conter o riso. Aquilo pareceu diverti-lo.

... Você já criou pássaros? Se não, tudo isto vai talvez parecer-lhe exagerado. As pessoas têm idéia de que os pássaros são seres sem coração, pequenas criaturas frias, ao contrário de cães e gatos: Minha lavadeira costumava dizer, nas segundas-feiras, quando queria saber por que eu não criava "um bonito fox-terrier": "Ter um canário não traz conforto, senhora." Não é verdade. É um grande engano. Lembro-me de uma noite. Eu tinha tido um sonho horrível — os sonhos podem ser muito cruéis — do qual, mesmo depois de acordada, não podia livrar-me. Então, vesti minha camisola e desci à cozinha, para tomar um copo d'água. Era uma noite de inverno e chovia forte. Acho que eu estava ainda meio adormecida. Pela janela da cozinha, que não tinha veneziana, a escuridão parecia estar olhando fixamente para dentro, espionando. E de repente senti que era insuportável não ter alguém a quem pudesse dizer: "Tive um sonho tão horrível" — ou "Defenda-me da escuridão." Até mesmo cobri meu rosto, por um momento. Então veio o agradável som "Psiu! Psiu!" A gaiola estava em cima da mesa, e o pano que a cobria havia escorregado, deixando uma fenda, por onde entrava um raio de luz. "Psiu, psiu!" — disse o encantador bichinho outra vez, docemente, como para dizer "Estou aqui, Tia! Estou aqui!" Aquilo soou tão agradável e confortante para mim, que quase chorei.

... E agora ele se foi. Nunca mais terei um outro pássaro, nem qualquer outro animal de estimação. Como poderia ter? Quando o encontrei, deitado de costas, os olhos turvos, as patinhas retorcidas, quando percebi que nunca mais ouviria seu canto tão querido, alguma coisa pareceu morrer em mim. Meu coração ficou vazio, como se fosse a gaiola dele. Eu hei de superar isso. É claro. Preciso fazê-lo. Com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa. Dizem que eu sempre estou bem-disposta, e têm razão. Graças a Deus, estou.

... Contudo, sem ser mórbida e mexendo nas lembranças, devo confessar que vejo nisto alguma coisa de triste na vida. Não me refiro à tristeza que todos nós conhecemos, como a doença, a pobreza e a morte. Não, é algo diferente. É lá no fundo, bem no fundo, faz parte da gente, como a respiração. Por mais que trabalhe, por mais que me canse, basta parar para sentir que essa coisa está lá, esperando. Muitas vezes eu me pergunto se todo mundo sente do mesmo jeito. Nunca se pode saber. Mas não é extraordinário que dentro de seu canto alegre, doce, tudo o que eu ouvia era: tristeza? ah, o que é isto?
Katherine Mansfield

domingo, julho 23

Volta das compras

 


A cidade e seu improvável livreiro

Quando cheguei a Curitiba, em 1964, me senti em Nova York. Que cidade, eu me perguntava, teria tantas livrarias? Eu vinha de uma cidade sem livrarias. Nesse circuito, algum tempo depois, eu procurava um livro de Arnold Hauser, História Social da Arte. Como não havia tradução brasileira, fui informado de que poderia encontrar uma edição em espanhol na livraria do Vignoles. Era o nome do livreiro. Um sujeito esquisito, me advertiram.

A livraria ficava, se não me engano, no primeiro andar da esquina da Rua do Rosário com a Praça Tiradentes. Entrava-se por uma escada estreita, de madeira. Subi passo a passo, os degraus rangendo a lembrar um filme de terror. Ninguém. Prateleiras, livros, um balcão. Andei de um lado para outro, pigarreei, arrastei o pé no chão. Já estava desistindo, quando emergiu, por detrás do balcão, um sujeito que me perguntou:

– O que você quer?

Assim, sem rodeios, um golpe de direita no queixo. Era um homem careca, de cara monolítica e sobrancelhas tensas. Ele balançou o corpo – parecia não se conter dentro de si – uma das mãos na cintura e outra sobre o balcão. Repetiu a pergunta:

– O que você quer?

Naquela época eu era um tímido profissional, capaz de horas de mutismo e de silêncios abissais e intransponíveis. Mal consegui dizer:

– Procuro um livro…

Hesitei. Súbito, o nome do livro sumira de minha cabeça. O careca atacou:

– É claro que procura um livro. Mas qual é o livro?

– História Social da Arte, do Arnold Hauser – lembrei, de soco.

Afastando-se ligeiramente, ele ergueu o tronco que inclinara para falar comigo. Retirou a mão que estava sobre o balcão, mantendo a outra na cintura e continuou, no estilo boxeador:

– E por que precisa deste livro?

Eis uma pergunta que eu não me fizera. Ou seja: queria ler, apenas isso. Já encontrara várias referências a ele em artigos, em livros, em jornais.

– Quero ler, murmurei.

– É claro, para que iria querer um livro, não é mesmo?

Ficamos os dois, olhos nos olhos, preparando o bote. Boxe puro. Temi que eu pudesse passar da timidez mórbida à agressividade mais desastrada, o que me acontecia na época. Por sorte, ele relaxou, ergueu os ombros, fazendo com que seu pescoço sumisse no meio deles, e estaqueou os braços sobre o balcão:

– Olhe, meu rapaz. Eu tenho o livro. Está ali, na prateleira ao lado da janela. Mas… – esperei pelo pior – …seu professor, ou seja lá quem lhe indicou este livro, não explicou uma coisa, provavelmente porque também não sabe. E me disse que eu perderia tempo lendo aquele livro. Está na moda, comentou com alguma repugnância, todo mundo anda lendo, todo mundo indica, mesmo sem ter a menor noção do que se trata. Moda, compreende? Moda é moda. Acontece que é um livro teoricamente fraco, com uma visão tosca das relações entre sociedade e arte. O autor, esse Hauser, leu Marx e não entendeu nada. E arrematou:

– Bom, o livro está ali. Se quiser comprar… Não aconselho.

Não comprei. Sumi escada abaixo. Só fui ler o livro meses depois, comprado no sebo da Voluntários. Em todos os casos, era outra Curitiba. Em qual das livrarias de hoje eu poderia encontrar um espécime raro daqueles: um livreiro que lia os livros que vendia, que tinha uma opinião a respeito deles – qualquer que fosse – e que, por discordância teórica e ideológica, preferisse não vendê-los a um estudante incauto?

Anos depois, me tornei amigo do Vignoles, quando ele já deixara de ser livreiro. Seguimos no estilo boxeador, como sempre, com diretos e cruzados de lado a lado. Uma grande figura. Um livreiro que sabia falar sobre os livros que vendia. Era outra Curitiba. Talvez outro mundo.
Roberto Gomes

Selfie de leitores

 


A vela ao diabo

E se as unhas roessem os meninos?
— Estória imemorada —

Esse problema era possível. Teresinho inquietou-se, trás orelha saltando-lhe pulga irritante. Via espaçarem-se, e menos meigas, as cartas da nôiva, Zidica, ameninhamente ficada em São Luís. As mulheres, sóis de enganos... Teresinho clamou, queixou-se — já as coisas rabiscavam-se. Ele queria a profusão. Desamor, enfado, inconstância, de tudo culpava a ela, que não estava mais em seu conhecer. Tremefez-se de perdê-la.

Embora, em lógico rigor, motivo para tanto não houvesse ou houvesse, andara da incerteza à ânsia, num dolorir-se, voluntário da insônia. Até bebeu; só não sendo a situaçãozinha solúvel no álcool. Amava-a com toda a fraqueza de seu coração. Saiu-se para providência.

A de que se lembrou: novena, heroica. Devia, cada manhã, em igreja, acender vela e de joelhos ardê-la, a algum, o mesmo, santo — que não podia saber nem ver qual, para o bom efeito. O método moveria Deus, ao som de sua paixão, por mirificácia — dedo no botão, mão na manivela — segurando-lhe com Zidica o futuro.

Sem pejo ou vacilar, começou, rezando errado o padre-nosso, porém afirmadamente, pio, tiriteso. Entrava nessa fé, como o grande arcanjo Miguel revoa três vezes na Bíblia. Havia-de.

Ia conseguindo, e reanimava-se; nada pula mais que a esperança. Difícil — pueris humanos somos — era não olhar nem conhecer o seu Santo. Na hora, sim, pensava em Zidica; vezes, outrossim, pensasse um risquinho em Dlena.

No terceiro dia, retombou, entretanto, coração em farpa de seta, odiando janelas e paredes. São Luís não lhe mandara carta. Quem sabe, cismou, vela e ajoelhar-se, só, não dessem — razoável sendo também uma demão, ajudar com o agir, aliar recursos? Deus é curvo e lento. E ocorreu-lhe Dlena.

Tão recente e inteligente, de olhos de gata, amiga, toda convidatividade, a moça esvoaçadora. Ela mesma, lindo modo, de início picara-lhe em Z a dúvida, mas pondo-se para conselhos — disso Teresinho quase se recordava. Realegrou-se, em imo, coração de fibra longa. Veio vê-la.

Dlena o acolheu, com tacto fino de aranha em jejum. Seu sorriso era um prólogo. E a estória pegou psicologia.

Teresinho — todos gostariam de narrar sua vida a um anjo — seus embaraços mentais. Dlena ouviu-o. Instruiu-o. — “Mulheres? Desprezo...” — muxoxo; ela isso dizia tão enxuto. Ela e cujo encanto.

Ele, dócil à sua graça, em plástico estado de suspenso, como um bicho inclina o ouvido. Apaziguavam-no seus olhos-paisagem. Sim, o que devia, e ora: não censuras e mágoas perturbadas, nenhum afligir-se, de gato sob pata, mas aguentar tempo, pagar na moeda! Descarregado das más suspeitas, já cienciado: dos poros da pele às cavidades do coração. Foi saindo do doendo.

Prosseguia na novena — ao infalir de Deus, por Santo incógnito; seguido, porém, o de Dlena, de cor — o que recordava, fonográfico. A Zidica, enviou curta carta, sem parte emotiva, traída a brasa do amor, entrouxada em muita palha. Voltava a Dlena, tanto quanto e tanto, caminhando sutilmente. Reenchia-se a lua, por aqueles dias.

Mostrou-lhe as de Zidica, após e pois. Simplórias simples cartinhas, reles ternas. Dlena, aliás, nelas leve notava as gentis faltas de gramática. Tinha ela olhos que nem seriam mesmo verdes, caso houvesse nome para outra igual e mais bela cor. Seu parecer provava-se sagaz tática, não há como Deus, d’ora-em-ora. Seu picadinho de conversa, razões para depois-de-amanhã.

Sentados os dois, ombro com ombro, a fim de arredondados suspiros ou vontade de suspirar. Ternura sem tentativa — fraternura. Teresinho se embriagando miudinho, feliz feito caranguejo na umidade, aos eflúvios dessa emoção. Seu coração e cabeça pensavam coisas diversas.

Valia divertir-se, furtar o tempo ao tormento — apud Dlena. Foram, a abrandar o caso, a festa e cinema. Num muito mais; prorrogavam-se. Teresinho, repartido, fino modo, que mais um escorpião em pica em sua consciência. Zidica bordando o enxoval... Zidica, a doçura insípida da boa água, produtora de esperanças... Tão quieto, São Luís, tão certo... Seu coração batia como uma doença, ele tinha medo.

Não iam desnamorar-se! A vida, vem se encaminhava. A novena completara-se, a derradeira vela, ele genuflexo. Fez o que pôde com aquele pensamento.
Ou começava a interrogar-se, desestruturando-se sua defesa. Frescura, quase felicidade; e espinhos perseverantes. Ideia tonta pousou nele. Tornou à igreja, espiou enfim o Santo, data vênia. Mal e nada no escuro viu, santo muda muito de figura.

Veio a Dlena — a seu suavizamento — com o coração na mão, algemada; caiu-lhe a alma aos pés dela. Apalpou os bolsos, contradesfeito. De Zidica, a última carta, esquecera-se de trazê-la. Ocorreu-lhe espirrar. Do nada, nada obteve.

Tudo, quanto há, é saudade, alternando-se com novidades: diagrama matemático, em calor de laboratório. O diabo não é inteiro nem invento. Teresinho desconjurava-se, imaginava-se chorando morno, por fechado desespero. Zidica — desconversas escrevera, volúvel, vaga?

Correu ele a Dlena, ao súbito último ato, açorado, asas nos sapatos. De fato. O Santo não lhe valera.

Dlena, ei-la — jeitinho, sorrisinho, dolo — estampada no vestido, amarelo com malhas castanho-vermelhas. Foi ela quem abriu o envelope; o iá-iá-iá de rir — riu de modo desusado. Mas franziu-se, então que então.

Ela era: seus olhos sem cinzas, rancordiosa. A carta rasgou, desfaçava-se. — “Viva, esta!” — voz de festa; o que maldisse. Soou, e fez-se silepse.
Teresinho recuou, de surpresa, susto, queimados os dedos. Seu coração se empacotou. Decidiu-se, de vez, de ombros, não preso. Ali algo se apagava. Dlena, ente. Nada disse, e disse mal. Só o que doeu: sorriso do amarelo mais belo. Teresinho arredou olhos.

Saiu-se — e tardara — de lá, dela, de vê-la. Voou para Zidica, a São Luís, em mês se casaram.

Foram infelizes e felizes, misturadamente.
Guimarães Rosa, "Tutameia"

sábado, julho 22

Fiat lux

 


A noiva jovem

Os degraus a subir são trinta e seis, trinta e seis degraus de pedra, que o velho sobe devagar, com circunspecção, como se recolhesse um a um para conduzi-los ao primeiro andar: ele pastor, eles animais mansos. Modesto é o seu nome. Serve naquela casa há cinquenta e nove anos, portanto é o sacerdote dali.

Ao chegar ao último degrau, detém-se diante do largo corredor que se alonga sem surpresas ante seu olhar: à direita os quartos fechados dos Senhores, cinco; à esquerda sete janelas, escurecidas por folhas cegas de madeira laqueada.

Está quase amanhecendo.

Detém-se, o velho, porque precisa atualizar a contagem. Registra as manhãs que anunciou naquela casa, sempre do mesmo modo. Então acrescenta uma unidade que se perde para além dos milhares. A conta é vertiginosa, mas isso não o perturba: o fato de celebrardesde sempre o mesmo rito matutino lhe parece coerente com seu ofício, respeitoso às suas inclinações e típico do seu destino.

Depois de passar a palma das mãos no tecido engomado da calça — nos flancos, à altura das coxas —, avança a cabeça um pouquinho e recomeça a caminhar. Ignora as portas dos Senhores, mas, diante da primeira janela, à esquerda, detém-se para abrir as folhas cegas. Faz isso com gestos suaves e calculados. Repete os movimentos em cada janela, sete vezes. Só então se volta, para contemplar a luz da alvorada que entra em feixes, pelas vidraças: conhece todas as possíveis nuances e, pelo aspecto, sabe como será o dia: pode deduzir daí, às vezes, esbatidas promessas. Já que confiarão nele — todos —, é importante a opinião que vai formular. Sol encoberto, brisa leve, decide. Assim será. Então percorre de volta o corredor, dessa vez dedicando-se à parede ignorada antes. Abre as portas dos Senhores, uma a uma, e anuncia em voz alta que já é dia, com uma frase que repete cinco vezes, sem modificar nem o timbre nem a inflexão.

Bom dia. Sol encoberto, brisa leve.

Depois desaparece.

Deixa de existir até reaparecer, inalterado, na sala dos desjejuns.

Alessandro Baricco