Os “sebos” foram rareando, freqüentadores assíduos se despediram para o Caju e o São João Batista, a cidade ensaio novos hábitos, ou simplesmente perdeu velhos e não teve jeito de adquirir outros. Onde reinava o velho Quaresma e depois o velho Matos, há hoje latas de comestíveis. A “Principal”, a “Acadêmica”, o J. Leite saíram da paisagem, emigrando ou desvanecendo-se. Um lado inteiro da rua desapareceu, e foi como se arrancassem metade do tronco a um corpo vivo. Mas, no outro meio-feio, o sobrada da velha Briguiet se mantém fiel a seu destino de casa de livros. Com outro nome e outros ocupantes, o espírito literário não desertou aquelas paragens. Um menino, por assim dizer crescido na Rua São José, ali está hoje, homem feito, e a este não possível demolir nem convencer de que deve negociar em política, importações ou apartamentos. Carlos Ribeiro mantém e revigora, quase sozinho, o espírito da gloriosa Rua São José, que é uma universidade a seu modo: junto às pilhas de livros, sabedores de coisas filosofam ou pontificam. Mocinhas supõem comprar romances, quando na realidade estão se provendo de noções da eterna e tenebrosa ciência de amar; não faltam nem as presses universitaires, pois a rua edita desde manuais de macumba até estudos eruditos; e há sempre uma ideia, um projeto, um traço intelectual no ar, um traço que não quer perder-se e reage contra a burrificação geral da vida carioca.
Mas essa rua é também uma praia, aonde vão dar os volumes de bibliotecas que naufragaram. Vêm de mistura os mestres do pensamento e aquelas tímidas obrinhas de principiantes, que o destinatário nem chegou a abrir. O livreiro recolhe esses destroços e os reanima, pondo-os de novo em circulação.
O grande poeta estrangeiro oferece seu cântico ao grande poeta nacional e este, de alma doadora por natureza, o passa a um terceiro poeta, que, premido pela dura circunstância (e quem ainda não desfez ou pensou em desfazer sua biblioteca, num dia negro?) o lança à correnteza da Rua São José, onde um quarto poeta o resgata – por quanto tempo? Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, amendoeira"
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