sábado, julho 29

Nobre Rua São José

A rua é ainda egrégia e simpática. Tudo se vem fazendo por transformá-la em ponto de estacionamento de automóveis, mas a sombra de Ruy Barbosa, a de João Ribeiro, de poetas antigos, sábios, professores, bibliófilos, estudantes, gente rica e gente pobre, com amor à leitura, que por lá buquinou durante anos e anos, parece frequenta-la ao jeito das sombras: discretamente, na memória dos que gostam de evocar, na saudade de alguns sobreviventes da velha geração de caixeiros, um pouco na poeira das estantes, que as estantes veneráveis não devem ser luzidias. Há também, esparsas, memórias de leiloeiros e antiquários.

Os “sebos” foram rareando, freqüentadores assíduos se despediram para o Caju e o São João Batista, a cidade ensaio novos hábitos, ou simplesmente perdeu velhos e não teve jeito de adquirir outros. Onde reinava o velho Quaresma e depois o velho Matos, há hoje latas de comestíveis. A “Principal”, a “Acadêmica”, o J. Leite saíram da paisagem, emigrando ou desvanecendo-se. Um lado inteiro da rua desapareceu, e foi como se arrancassem metade do tronco a um corpo vivo. Mas, no outro meio-feio, o sobrada da velha Briguiet se mantém fiel a seu destino de casa de livros. Com outro nome e outros ocupantes, o espírito literário não desertou aquelas paragens. Um menino, por assim dizer crescido na Rua São José, ali está hoje, homem feito, e a este não possível demolir nem convencer de que deve negociar em política, importações ou apartamentos. Carlos Ribeiro mantém e revigora, quase sozinho, o espírito da gloriosa Rua São José, que é uma universidade a seu modo: junto às pilhas de livros, sabedores de coisas filosofam ou pontificam. Mocinhas supõem comprar romances, quando na realidade estão se provendo de noções da eterna e tenebrosa ciência de amar; não faltam nem as presses universitaires, pois a rua edita desde manuais de macumba até estudos eruditos; e há sempre uma ideia, um projeto, um traço intelectual no ar, um traço que não quer perder-se e reage contra a burrificação geral da vida carioca.

Mas essa rua é também uma praia, aonde vão dar os volumes de bibliotecas que naufragaram. Vêm de mistura os mestres do pensamento e aquelas tímidas obrinhas de principiantes, que o destinatário nem chegou a abrir. O livreiro recolhe esses destroços e os reanima, pondo-os de novo em circulação. 

O grande poeta estrangeiro oferece seu cântico ao grande poeta nacional e este, de alma doadora por natureza, o passa a um terceiro poeta, que, premido pela dura circunstância (e quem ainda não desfez ou pensou em desfazer sua biblioteca, num dia negro?) o lança à correnteza da Rua São José, onde um quarto poeta o resgata – por quanto tempo? Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, amendoeira"

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