Sempre foi e será uma festa para mim quando se quebra em casa um termômetro e liberta-se a gota gorda e contida de mercúrio prateado, ali no chão, dando uma pequena corrida e depois imobilizando-se, imune. Tento pegá-la com cuidado, auxiliada pela agudez de uma folha de papel que passa deslizadoramente por baixo dela. Ou dele, o mercúrio. Que não se pode pegar: no momento em que eu penso que o peguei ele se estilhaça mudo nos meus dedos como mudos fogos de artifício, como o que dizem que nos acontece depois da morte – o espírito vivo se espalha em energia solta, pelo ar, pelo cosmo. Que impossibilidade de capturar a gota sensível. Ela simplesmente não deixa e guarda a sua integridade, mesmo quando repartida em inúmeras bolinhas esparsas: mas cada bolinha é um ser à parte, íntegro, separado. Basta porém que eu alcance ligeiramente uma delas e ela é atraída velozmente pela que está próxima e forma um conjunto mais cheio, mais redondo. Sonho tanto hoje que quebrei um termômetro como em criança, sonho com milhares de termômetros quebrados e muito mercúrio denso e lunar e frio se espalhando. E eu a brincar, toda séria e concentrada em alto grau, a brincar com a matéria viva de uma enorme quantidade do metal de prata. Imagino-me a mergulhar como num banho nesse vasto mercúrio que imagino saído dos termômetros: ao mergulhar milhares de bolas se soltariam, cada uma por si mesma, grossas, impassíveis. O mercúrio é uma substância isenta. Isenta de quê? Nada explico, recuso-me a explicar, recuso-me a ser discursiva: é isento e basta. Parece possuir um frio cérebro que comanda as suas reações. Sinto-me em relação a ele como se eu o amasse e ele nada sentisse por mim, nem sequer uma obediência de objeto. O mercúrio é um objeto que tem vida própria. Lidar com ele é uma experiência não substituível por outra qualquer. Ele não se cede a ninguém. E ninguém consegue pôr-lhe a mão. O espírito, através do corpo como meio, não se deixa contaminar pela vida, e esse pequeno e faiscante núcleo é o último reduto do ser humano. As feras também possuem esse núcleo irradiante, tanto que elas se conservam íntegras, indomesticáveis e vitais.
Noto que passei do mercúrio ao mistério das feras. É que o mercúrio – que constitui matéria lunar – faz meditar, leva-me, de uma verdade a outra, até o núcleo de pureza e integridade que está em cada um de nós. Quem? Quem não brincou com o termômetro quebrado?
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
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