da época os teriam encarado como perigos cotidianos, e naquele tempo havia uma infinidade de outras coisas com que se preocupar: como obter alimentos do solo duro; como não deixar que a lenha acabasse; como curar a doença que podia matar uma dúzia de porcos num único dia e provocar brotoejas esverdeadas nas bochechas das crianças.
De qualquer forma, os ogros não eram tão ruins assim, desde que ninguém os provocasse. Era preciso aceitar que, de vez em quando — talvez depois de alguma obscura desavença entre eles próprios —, um desses monstros, tomado de uma fúria terrível, iria entrar atabalhoadamente numa aldeia e, apesar dos gritos e das armas brandidas em sua direção, acabaria destruindo tudo o que lhe aparecesse pela frente e ferindo quem demorasse a sair de seu caminho. Ou que, de vez em quando, um ogro poderia agarrar uma criança e sumir neblina adentro. As pessoas da época tinham que se resignar com essas atrocidades.
Numa dessas áreas na beira de um extenso pântano, à sombra de algumas colinas de contornos irregulares, vivia um casal de idosos, Axl e Beatrice. Talvez não fossem exatamente esses os nomes, mas, para facilitar, é assim que vamos nos referir a eles. Eu diria que esse casal levava uma vida isolada, mas naquele
tempo poucos viviam “isolados” em qualquer dos sentidos que entendemos hoje. Para se manter aquecidos e ter proteção, os aldeões moravam em tocas, muitas delas escavadas bem lá no fundo da encosta da colina, que se ligavam umas às outras por passagens subterrâneas e corredores cobertos. O nosso casal de velhinhos morava num desses conjuntos labirínticos de tocas, ou abrigos — “edifício” seria uma palavra digna demais para descrever aquilo —, com cerca de sessenta outros aldeões. Se saísse desse abrigo e caminhasse por vinte minutos ao redor da colina, você chegaria à comunidade vizinha, que lhe pareceria idêntica à primeira. Mas, para os próprios habitantes, haveria muitos detalhes para distinguir um abrigo do outro, dos quais eles sentiriam orgulho ou vergonha.
Kazuo Ishiguro, "O gigante enterrado"
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