A delícia dos livros está em que eles, repentinamente, nos abrem os olhos, e vemos então coisas que nunca havíamos visto. A diferença entre os textos científicos e os textos literários está em que, enquanto os textos científicos nos colocam diante da mesa metálica onde se dissecam os cadáveres, os textos literários nos colocam bem no centro da vida. Quando se lê literatura vive-se a vida de outras pessoas, em outros tempos, em outros lugares. Vidas que não existiram. Acabei de ler O livro do riso e do esquecimento, de Milan Kundera. Uma simples frase me deu um choque: “Nós escrevemos porque nossos filhos se desinteressaram de nós”. Sim, escrevemos porque somos seres solitários à procura de outros filhos. Ele conta a estória de uma jovem que trabalhava como garçonete num bar. Seu nome era Tamina. Tamina “fica sentada no bar, num tamborete, e quase sempre há alguém que quer conversar com ela. Todo mundo gosta de Tamina. Porque ela sabe ouvir o que lhe contam. Mas será que ela ouve mesmo? Ou não faz outra coisa senão olhar, muito atenta, muito calada? O que conta é que ela não interrompe a fala. Vocês sabem o que acontece quando duas pessoas conversam. Uma fala e a outra lhe corta a palavra: ‘é exatamente como eu, eu...’ e começa a falar sobre si até que a primeira consiga por sua vez cortar: ‘é exatamente como eu, eu...’. Essa frase, exatamente como eu, eu... parece ser um eco aprovador, uma maneira de continuar a reflexão do outro, mas é um engodo: na verdade é uma revolta brutal contra uma violência brutal, um esforço para libertar o nosso próprio ouvido do adversário. Pois toda a vida do homem entre seus semelhantes nada mais é do que um combate para se apossar do ouvido do outro. Todo o mistério da popularidade de Tamina é que ela não deseja falar sobre si mesma. Sem resistência, ela aceita os ocupantes de seu ouvido...” De repente, os diálogos comuns do dia a dia se me tornaram mais claros.
Rubem Alves, "Pérola feliz não faz ostra"
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