terça-feira, julho 18

Mesmo na prisão você será menos infeliz se gostar de ler

Samantha Jirón conseguiu ler ‘La Magdalena, o último tabu do cristianismo’, na prisão nicaraguense onde estava detida, talvez porque seus carcereiros acreditaram que se tratava apenas de um livro religioso e não também político

Há alguns dias, minha colega Lorena Arroyo, um dos pilares da edição americana deste jornal, teve a delicadeza de me enviar uma mensagem de voz de Samantha Jirón, 23 anos, a caçula dos presos políticos e já libertada pela ditadura nicaraguense regime de Daniel Ortega e Rosario Murillo.

Samantha conta ao jornal La Prensa, em reportagem intitulada “Lendo para resistir na Esperança”, suas aventuras para conseguir que a deixassem ler um livro, única chance de aliviar sua angústia atrás das grades.


A jovem combatente contra a barbárie da ditadura agradece em sua mensagem de voz a oportunidade que teve de ler meu livro ‘La Magdalena, o último tabu do cristianismo’, da editora Aguilar, talvez porque seus carcereiros acreditaram que se tratava de um livro apenas religioso e não também político.

Enquanto ouvia a voz feliz de Samantha no meu celular, não sem certa emoção, as últimas palavras que meu pai disse a mim e a meus dois irmãos, ainda crianças, há 83 anos, me vieram à mente antes de morrer. O meu pai, tal como a minha mãe, eram professores na aldeia rural de Arcos de Valdeorras, na província galega de Orense. Vivíamos sob o horror da Guerra Civil e da ditadura de Franco, e você poderia ir para a cadeia ou levar um tiro por causa de suas ideias.

Na escola tínhamos um único livro eufemisticamente chamado Enciclopédia para toda a educação primária . Nem mais um livro.

Meu pai compensava a falta de livros com exemplos tirados da observação da natureza. Muitas aulas nos foram dadas no meio de um pomar ou à beira de um córrego. Com ele já sabíamos aos sete anos o que era uma “metamorfose”. Como? Ele trouxe para a aula uma caixa de sapatos com bichos-da-seda que acabavam virando borboletas. Ocorrera uma metamorfose, disse-nos ele. Já sabia distinguir à distância um pé de grão-de-bico de um pé de feijão. Tudo sem livros.

Quando meu pai estava para morrer, com apenas 43 anos, por falta de antibióticos na época, chamou os três irmãos para o quarto e nos deu alguns conselhos. Explicou-nos que quando fôssemos adultos já teríamos livros e que graças a eles “mesmo na cadeia seríamos menos infelizes”.

Essa frase me perseguiu, agridoce, por toda a minha vida e com certeza foi o que me impulsionou a dedicar meus já 91 anos a estudar para escrever. E hoje quero agradecer do Brasil à jovem e corajosa combatente nicaragüense Samantha Jirón por ter me confirmado que é verdade que mesmo na prisão mais dura e violenta, como dizia meu pai, pode-se ser menos infeliz se puder ler.

Há poucos dias, eu havia lido que o direitista e anticultura Jair Bolsonaro, quando ainda era presidente do Brasil, havia zombado do fato de que Lula, se ganhasse as eleições, “iria transformar clubes de tiro em bibliotecas.” Nesses lugares se aprende a matar e Bolsonaro permitiu que até menores treinassem, levado por sua mórbida obsessão por armas e violência.

Agora, Lula está de volta ao poder e poderá concretizar a zombaria de seu antecessor e transformar não só os clubes de tiro, mas todos os presídios, alguns dos mais lotados do mundo, com cerca de um milhão de presos, em bibliotecas e centros de cultura negros.

Lula, que sem ter podido estudar devido à sua origem na pobreza conseguiu a façanha de ser três vezes presidente do país, deve hoje realizar a profecia irônica de Bolsonaro e fazer do Brasil uma grande biblioteca, justamente quando os livros estão desaparecendo.

Lula pôde recuperar a brilhante ideia, durante a presidência do social-democrata Fernando Henrique Cardoso, de dar anualmente às famílias de crianças pobres uma coleção de livros para formar uma biblioteca em suas casas. Foi quando muitos dos mais velhos recuperaram o gosto pela leitura.

Ocorre-me que Lula, em sua frenética política externa, com suas inúmeras viagens para fora do Brasil, poderia ir ao encontro de seu amigo Daniel Ortega, na Nicarágua , não para discutir sua infeliz frase de que a democracia é algo “relativo”, mas para que ele entenda que colocar uma menina de 23 anos como Samantha na cadeia só por lutar contra uma ditadura é a melhor forma de dar armas a esse furacão da nova extrema direita que contagia e obscurece os ideais de quem sonha e luta por uma mundo onde, sim, clubes de tiro e prisões podem se tornar bibliotecas sorridentes e libertadoras.

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