segunda-feira, julho 17

Ainda bem que choro

Digo-te o que ouço, invejas-me o ouvido, a piedade das pessoas ergue-se em uníssono neste refrão: « ouvido invejável, ouvido invejável» , onde quer que eu vá, gabam-me o ouvido, como às raparigas feias se gaba o sorriso. Ouvia apenas metade das frases, era uma distraída deliberada, sem paciência para as conversas de circunstância e sem capacidade para distinguir os timbres, os seus nós secretos de solidão, ternura ou desconsolo. Agora todas as vozes me inquietam e mesmo sozinha falo em voz alta, para preencher este nevoeiro de gesso em que habito. Não sei ser cega, não nasci cega, não posso esquecer o que perdi — tenho desejo da visão, um desejo físico, concreto, feito de suores e ansiedade, um desejo sexual, maculado, absoluto. Nem imaginas como odeio as pessoas que me garantem, com música de elevador na voz, que é bom manter o desejo, a raiva, a vontade, que bom, a questão é canalizar positivamente tudo isso. Odeio-os, a esses conselheiros bondosos e às suas teorias do positivo e à auréola de tolerância que lhes envolve a garganta quando me incitam a que desabafe, que desabafar faz bem. Querem que além de cega seja santa, eruditamente santa, socialmente santa, que me porte bem, que aceite o carinho empenado pela piedade que têm para me oferecer. Podem chamar-lhe compaixão, socorrer-se da raiz etimológica de paixão partilhada, odeio-os. Pelo menos sou uma ceguinha má, dura de roer, imune às maviosas vozes da resignação.

*

Esqueçam-se de mim, todos, esta noite. Esqueçam-me. É impossível a uma cega tornar-se invisível. Ah, a terrível bondade daqueles a quem nenhum sentido falta. Esmagam-me de compaixão.

Falam-me alto, espaçadamente, como se eu também fosse surda. Agarram-me no braço, continuamente. Queria conhecer alguém que tivesse a sensibilidade de me tocar apenas com o olhar. Eu sei quando olham para mim. Mas precisamente eles evitam olhar para mim, não se olha uma aleijadinha. Deixem-me entrar nos vossos risos, deixem-me ser igual a vocês.

Perguntas-me por que choro. Ainda bem que choro, Sebastião. É sinal de que os meus olhos ainda servem para alguma coisa. Escoam o naufrágio do meu coração. Pedes-me que deixe que me seques as lágrimas, e começas a beijar-me os olhos — mas já não há beijos que possam acender-me os olhos, Sebastião.

*

A música das palavras estilhaçou-se no túnel de silêncio que a cegueira construiu dentro de mim. A cegueira cresce como um longo ouvido, sim — mas os que vêem não se apercebem do silêncio aterrador que se amplia nesse hiper-ouvido. O roer do tempo torna-se audível. Pouco a pouco torna-se mesmo o único ruido audível, um roer de castor, uma parada de castores trabalhando em uníssono nas circunvoluções do nosso cérebro, mastigando-nos os ficheiros da memória. Insónias dedicadas à tipologia dos azuis: azul-anil, azul-atlântico, azul-petróleo, azul-noite, azul-desespero.

Um dia desiste-se das cores, da insidiosa subtileza das cores. Desiste-se de se fazer de conta que se vive como os outros. Então declina-se a cegueira como revolução, porta de passagem para um outro mundo, a começar do zero. E falha-se, como falham as revoluções, suicidadas por essa arrogância ingrata que sofismamos em candura. Falha-se, porque ninguém pode, nem verdadeiramente quer, começar do zero. Que zero é o zero? O zero da pedra, o zero do Jardim do Éden com as suas maçãs biológicas e as suas serpentes conversadeiras?

Ou o zero do cem por cento de algodão, do microondas e das bombas nucleares? Que partícula do zero podemos decidir? Ser cego é não poder desistir dos sons. Esse órgão agigantado já não é um ouvido, um mecanismo humano, falível, atravessado pela mentira fácil, confortável, da visão. Acabaram-se os sorrisos, o próprio tacto cede aos seus equívocos. Só a voz não tem o poder de trair, esse poder fulgurante que determinou a prevalência do Homem sobre a Terra e esse trajecto circular, épico, entorpecente, a que se pôs o nome de progresso. A palavra inicial continha já em si o poder de ligar e o de dividir, a energia bélica que está na origem da arte e da guerra. A palavra é um utensílio sofisticado que serve para tapar a voz. Na amabilidade das palavras oculto o rumor de desolação que me treme na garganta — mas a cegueira conduziu-me a esse dom que eu não queria, de ver as vozes à transparência das palavras. Não tenho como me distrair: sou inteiramente vulnerável à brutalidade das vozes, aos sentimentos incontrolados que circulam nelas, mordendo como piranhas. Centro-me no sentido específico de cada palavra, tento anular a voz que ouço, transformá-la numa cortina de fundo — mas a palavra dança e decompõe-se, quebra-se em estilhaços de vidro que voam dentro do meu corpo-ouvido, ferindo-o, primeiro, e abrindo-o em chaga, depois, porque dentro do ouvido do que é o meu corpo agita-se uma corrida de criança atraída pelo brilho das coisas perigosas. Palavras estilhaçadas. Despalavradas.
Inês Pedrosa, "A Eternidade e o Desejo"

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