sexta-feira, julho 21

A Tempestade de um Minuto

O desregrado das estações está a inventar umas chuvas fortes de alguns segundos nas Caxinas. O meu cão ladra à noite quando subitamente se abate a tromba-de-água nas janelas como se viesse de mãos a empurrar o prédio todo. Isto nunca foi assim. Os temporais duravam mais tempo, ficavam pela tarde toda, pareciam prometer não mais ir embora. Agora, têm acontecido como ideias precipitadas, inacabadas, tidas à pressa como se não soubessem bem para que servem, que sentido haverão de ter. As estações estão um bocado sem saber a que se destinam.

Ouço a folia do mar. Fica sempre numa convulsão maior, como aliado da raiva súbita das nuvens e do vento. Ouço-o do quarto igual a um vizinho gigante que espia minha casa com vontade de um dia se vingar. Vingar de quê?

Alguém me dizia em pequeno que somos pecadores culpados. Era tão importante deixar de se dizer porcarias assim às crianças. Por causa disto, é mais forte do que eu desconfiar de mim mesmo. A policiar-me nos gestos e nos pensamentos com a impressão impagável de estar tão perto do erro que poderei ser o erro. Lembro-me de os professores na escola anunciarem que alguém copiou e eu, por mais aflito estivesse, nunca copiei mas senti sempre que me culpariam por ter olhado a janela aberta, por haver espiado os sapatos à procura de um milagre, ou por pasmar diante da nuca de algum colega como quem contava cabelos para não sucumbir à falta de respostas.

Na frutaria, um colega do início do liceu disse-me que ouve o mar logo depois das chuvas e que chega a ir espreitar para se assegurar de que não está de pé pelas ruas. Sem mais nem menos, disse que vai para velho com medo de tudo por sermos culpados. Entende agora o que lhe diziam os adultos quando era criança. Somos sempre culpados, e em algum instante o mundo vai pronunciar nossa sentença. Passamos as noites a braços com a consciência.

Há dias, ainda o mar troando louco mas já a chuva passada, calei o cão e levei-o lá fora para ver também como estavam as ruas e como se arranja medo. Tenho andado a convencer-me de que nunca vi o nosso mar assim. É certamente da perturbação da pandemia, do cansaço, de não haver ninguém, mas é facto que se põe em montanhas de água, formações cada vez mais verticais que treinam claramente para se porem de pé. O Crisóstomo, o meu cão, atónito na marginal, ladra às ondas mal alumiadas da noite. Ralha com elas. Não aceita que se alterem e nos ameacem. Repito, isto nunca foi assim.

As almas penadas do costume juntam-se no canto abrigado onde fumam ervas muito escolhidas. Chamam pelo cão, dizem boa noite. Falam do temporal. Durou 40 segundos. Um temporal inteiro em 40 segundos. Como se fosse uma festa rápida da qual até duvidaríamos. E riram-se. Quem fosse apanhado ao relento, por qualquer passo já estaria náufrago em tanta água. Um dos moços mais novos brinca dizendo que o inverno transtorna pela culpa das pessoas. É para virar barcos e haverá de ser para virar casas. Se 40 segundos assim acontecerem no mar qualquer traineira afunda. Perguntei-lhe porque fala em culpa. Que raio de culpa teremos nós pelo que chove. E ele respondeu que é o que o povo diz. Depois, corrige: as mulheres. As mulheres dizem e os homens passam a dizer. Ele acha que é para manter os homens em casa. Educa-se os homens para não saírem de casa, mas eles saem.

Esta tarde, quando voltei das compras, um senhor que passava quis cumprimentar-me pelo que lê nos jornais. Agradeci. E ele acrescentou: fale sobre isto ser um sinal. E eu, confuso, perguntei a que se referia. E ele reafirmou: isto é tudo um sinal. Esta pandemia e esta chuva, veja como andam as pessoas de cara no chão. Ouça o mar. Preste atenção ao ruído do mar à noite. Aquilo é uma 
conversa zangada. O senhor repare em como é tudo nossa culpa.

Valter Hugo Mãe

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