sábado, julho 29

Aqueles tempos da Boate Id

Pela manhã, de segunda a sexta, as aulas na Faculdade de Direito. Pela tarde frequentava a Biblioteca Municipal na Praça Tomé de Sousa. Depois ia visitar a Livraria Civilização. Comprava o livro de Sartre na expectativa de que a sua leitura abriria as portas do mundo, nasceria devagar e se repetiria em curvaturas de caminhos e linhas retas das subidas.

Gostava de ficar vendo no passeio da Rua Chile com algum amigo o desfile provocante das moças, algumas no frescor de idade jovial, na estação virginal desfilando como se fosse em tempo de botão a se entreabrir na flor daí em instante.

À noite estudava as lições de Direito no volume grosso. Sua concentração na leitura do capítulo sobre contratos e obrigações era interrompida com os gemidos que vinham da mãe no quarto. Lágrimas caíam do rosto transtornado, sentia-se impotente para mudar o destino de sofrimento da mãe, dilacerando-o no sentido de que as coisas postas no mundo não mais poderiam ser alcançadas por ela na rotação diária da vida.

A noite do sábado era para se encontrar com os amigos, conversar sobre direito, filosofia, sociologia e literatura nos botecos e bares da Ajuda. Assim, de conversa em conversa, beber aos goles prazerosos a noite sensual de Salvador de Bahia. O bate-papo com os amigos sobre literatura e outros conhecimentos humanos terminava com a visita à Boate Id.

Ficava em um desses sobrados antigos de Salvador, na cidade alta. Uma escada estreita terminava no terceiro andar onde funcionava a boate, que enchia com os frequentadores na noite de sábado. Lá dentro, as mesas com quatro cadeiras distribuídas por vários cantos do salão, ao redor do círculo que servia como pequena pista de dança. À direita da entrada da boate havia um barzinho onde apenas o garçom ia buscar no balcão a bebida com o tira-gosto pedido pelo cliente. Ao lado do barzinho, a toalete masculina e a feminina.

A música ao vivo. O conjunto musical, constituído do pianista, baterista, saxofonista e cantor, tocava no tablado pequeno, armado junto a uma das paredes laterais do salão. Ninguém podia entrar no recinto acompanhado de mulher. A Boate Id tinha as suas meninas, que assim eram conhecidas, cada uma com o seu jeito sensual para atrair a atenção do homem, que acabava de chegar ao recinto, interessado no prazer que a noite oferecia, submetendo-se na vontade por uma espécie de vinho procurado por todos, naquele instante vertido de gozo. Os pares conversavam sentados ao redor de cada mesa, misturando as vozes com a sensação de prazer que lhes davam a bebida e o cigarro.

Naquele tempo era comum a cidade de Salvador propiciar encontro de amigos nem sempre em um local marcado. A cidade ainda mantinha um jeito de interior, mesmo se tratando de uma das capitais mais importantes do Nordeste. Sua população talvez tivesse uns quinhentos mil habitantes. Em alguns locais como a Rua Chile, a cidade toda passava durante a semana.

A noite oferecia a oportunidade de extrair de alguns o tédio ou a angústia, que à época se chamava de fossa, escondida atrás de uma fachada aparentemente brilhante, mas em situação crítica, formada por conflitos, fissuras e rupturas de um caos interior ou em família. E porque tinha gente que sobrevivia vendendo acarajé, abará, mingau, pipoca, milho assado e churrasquinho de carne no espeto, na rua onde estava localizada a Boate Id, como em outros locais semelhantes da Cidade Alta, houve quem dissesse que Salvador era uma mão acolhedora, que protegia os que dependiam para sobreviver de um precário comércio improvisado na boca da noite.

Para os que circulavam na boêmia, a noite podia significar um desabafo no encontro fugaz do amor com uma das meninas da Boate Id. Reciclava-se dessa maneira, no ímpeto máximo do prazer, a energia que o corpo necessitava para prosseguir na semana pelos caminhos árduos da vida.

Houve um estudante, filho de família rica do interior, que teve um romance com uma das meninas da Boate Id. Foi um grande transtorno para a família saber daquele romance entre um rapaz de classe alta e uma mulher que ia para a cama fazer amor com o homem que lhe pagasse pela entrega do corpo. O estudante fez cinco vezes o vestibular de Direito sem lograr êxito. Como foi que terminou aquele romance impregnado de volúpia? O estudante foi viver com a amada em alguma cidade do interior baiano ou deu um ponto final naquela dissipação da vida, em noites perdidas com bebida, cigarro, dança e muita paixão por uma mulher que mercava o sexo na vida difícil que levava?

Na Boate Id era reprovado o gesto de algum homem que saísse do limite e ousasse chamar uma das meninas de puta. Por sua inconveniência, calcada em ressentimentos pessoais ou paixão compulsiva, era colocado para fora do recinto pelo segurança. Quando insistia na ofensa, causando o escândalo, podia ficar proibido de frequentar a boate para sempre.

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