quarta-feira, julho 5

Ceição

A escada tem vinte e oito degraus. E liga as tirânicas necessidades da mesa de D. Marfisa ao comércio ambulante e rumoroso que lhe passa pela frente do sobrado. Ao longo dessa escada, circulam pra baixo e pra cima, incansavelmente, duas pernas finas e esfoladas. São as pernas de Maria da Conceição – a Ceição. Agora, a carrocinha do verdureiro para defronte à casa de D. Marfisa. E, Dona Marfisa comanda:

- Ceição, dá um pulinho lá e pergunta o que é que ele tem de bom, hoje. 
Conceição vai e volta:

- Tem abobra, chuchu, couve, repolho, agrião…

- Pergunta pra ele se tem alface. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que tem.

- Pergunta pra ele se a alface é nova. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que é.

- Pergunta pra ele quanto é o pé. Ceição vai e volta:
- Mandou dizer que é cinquenta…

- Pergunta pra ele se não acha caro. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que não, que é até barato.

- Então, pede dois pés. Ceição vai e volta:

- Tai, madrinha. D. Marfisa apanha os pés de alface, olha-os, examina-os.

- Bem. Agora, dá um pulinho lá e pergunta pra ele se tem troco pra uma nota de duzentos. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que tem.

- Pergunta pra ele se não é melhor assentar no caderno. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que, se a senhora quiser, ele assenta.

- Diz pra ele que não. Leva o dinheiro e paga já. Não quero mais saber de caderno. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que é pra senhora conferir o troco.

D. Marfisa confere:

- Tá certo. Mas esta nota parece que é falsa. Dá um pulinho lá e diz pra ele que me mande outra. Ceição vai e volta. Volta e geme:

- Tai, madrinha.

Então as duas pernas dobram, vergam – os ossos de Ceição quase se desmancham no assoalho asseadíssimo do sobrado da madrinha.

Ontem, D. Marfisa estava dizendo para a cozinheira:

- Como tu vês, Josefa, eu poupo o mais possível essa negrinha…

Athos Damasceno, "Persianas Verdes"

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