Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la. Eu penso em imagens congeladas numa fotografia, no entanto, esta não está impressa numa placa, parece desenhada à pena, é uma recordação minuciosa e perfeita, de volumes suaves e cores quentes, renascentista, como uma intenção captada sobre um papel granulado ou uma tela. É um momento profético, é toda a nossa existência, tudo o que foi vivido e está por viver, todas as épocas simultâneas, sem princípio nem fim. A certa distância olho esse desenho, onde também estou. Sou espectador e protagonista.
Estou na penumbra, velado pela bruma de um cortinado translúcido. Sei que sou eu, mas sou também o que observa de fora. Conheço o que sente o homem pintado sobre a cama revolta, num quarto de vigas escuras e tectos de catedral, onde a cena aparece como um fragmento de uma cerimónia antiga. Estou ali contigo e também aqui, sozinho, noutro tempo da consciência. No quadro o casal descansa depois de fazer amor, a pele de ambos brilha húmida. o homem tem os olhos fechados, uma mão no peito e outra na coxa dela, em íntima cumplicidade. Para mim esta visão é recorrente e imutável, nada se altera, sempre o mesmo sorriso plácido do homem, a mesma languidez da mulher, as mesmas pregas dos lençóis e cantos sombrios do quarto, sempre a luz da lâmpada a iluminar os seios e as faces dela do mesmo ângulo, e o xaile de seda e os cabelos escuros a cair com igual delicadeza.
Cada vez que penso em ti, vejo-te assim, assim nos vejo, detidos para sempre nessa tela, invulneráveis ao estrago da má memória. Posso recriar longamente essa cena, até sentir que entro no espaço do quadro e já não sou o que observa, mas o homem que jaz junto a essa mulher.
Então rompe-se a quietude simétrica de pintura e escuto as nossas vozes muito perto.
- Conta-me um conto - digo-te, - Como queres que ele seja? -
Conta-me um conto que nunca contasses a ninguém.
ROLF CARLÉ
Isabel Allende, "Contos de Eva Luna"
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