quarta-feira, maio 29

Voe!

 


O peso dos livros

Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento.
Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente.
Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro.

Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando
não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando
não conseguimos respirar. Quando pensei nisso,
tive uma vaga noção de título.

E um hálito branco a querer ser página.

Filipa Leal

Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá

— Fio, fais um zóio de boi lá fora pra nóis.

O menino saiu do rancho com um baixeiro na cabeça, e no terreiro, debaixo da chuva miúda e continuada, enfincou o calcanhar na lama, rodou sobre ele o pé, riscando com o dedão uma circunferência no chão mole — outra e mais outra. Três círculos entrelaçados, cujos centros formavam um triângulo equilátero.

Isto era simpatia para fazer estiar. E o menino voltou:

— Pronto, vó.

— O rio já encheu mais? — perguntou ela.

— Chi, tá um mar d’água! Qué vê, espia, — e apontou com o dedo para fora do rancho. A velha foi até a porta e lançou a vista. Para todo lado havia água. Somente para o sul, para a várzea, é que estava mais enxuto, pois o braço do rio aí era pequeno. A velha voltou para dentro, arrastando-se pelo chão, feito um cachorro, cadela, aliás: era entrevada. Havia vinte anos apanhara um “ar de estupor” e desde então nunca mais se valera das pernas, que murcharam e se estorceram.

Começou a escurecer nevroticamente. Uma noite que vinha vagarosamente, irremediavelmente, como o progresso de uma doença fatal.

O Quelemente, filho da velha, entrou. Estava ensopadinho da silva. Dependurou numa forquilha a caroça, — que é a maneira mais analfabeta de se esconder da chuva, — tirou a camisa molhada do corpo e se agachou na beira da fornalha.

— Mãe, o vau tá que tá sumino a gente. Este ano mesmo, se Deus ajudá, nóis se muda.

Onde ele se agachou, estava agora uma lagoa, da água escorrida da calça de algodão grosso.

A velha trouxe-lhe um prato de folha e ele começou a tirar, com a colher te pau, o feijão quente da panela de barro. Era um feijão brancacento, cascudo, cozido sem gordura. Derrubou farinha de mandioca em cima, mexeu e pôs-se a fazer grandes capitães com a mão, com que entrouxava a bocarra.

Agora a gente só ouvia o ronco do rio lá embaixo — ronco confuso, rouco, ora mais forte, ora mais fraco, como se fosse um zunzum subterrâneo.

A calça de algodão cru do roceiro fumegava ante o calor da fornalha, como se pegasse fogo.

Já tinha pra mais de oitenta anos que os dos Anjos moravam ali na foz do Capivari no Corumbá. O rancho se erguia num morrote a cavaleiro de terrenos baixos e paludosos. A casa ficava num triângulo, de que dois lados eram formados por rios, e o terceiro, por uma vargem de buritis. Nos tempos de cheias os habitantes ficavam ilhados, mas a passagem da várzea era rasa e podia-se vadear perfeitamente.

No tempo da guerra do Lopes, ou antes ainda, o avô de Quelemente veio de Minas e montou ali sua fazenda de gado, pois a formação geográfica construíra um excelente apartador. O gado, porém, quando o velho morreu, já estava quase extinto pelas ervas daninhas. Daí para cá foi a decadência. No lugar da casa de telhas, que ruiu, ergueram um rancho de palhas. A erva se incumbiu de arrasar o resto do gado e as febres as pessoas.

“— Este ano, se Deus ajudá, nóis se muda.” Há quarenta anos a velha Nhola vinha ouvindo aquela conversa fiada. A princípio fora seu marido: “— Nóis precisa de mudá, pruquê senão a água leva nóis”. Ele morreu de maleita e os outros continuaram no lugar. Depois era o filho que falava assim, mas nunca se mudara. Casara-se ali: tivera um filho; a mulher dele, nora de Nhola, morreu de maleita. E ainda continuaram no mesmo lugar a velha Nhola, o filho Quelemente e o neto, um biruzinho sempre perrengado.

A chuva caía meticulosamente, sem pressa de cessar. A palha do rancho porejava água, fedia a podre, derrubando dentro da casa uma infinidade de bichos que a sua podridão gerava. Ratos, sapos, baratas, grilos, aranhas, —

o diabo refugiava-se ali dentro, fugindo à inundação, que aos poucos ia galgando a perambeira do morrote.

Quelemente saiu ao terreiro e olhou a noite. Não havia céu, não havia horizonte — era aquela coisa confusa, translúcida e pegajosa. Clareava as trevas o branco leitoso das águas que cercavam o rancho. Ali pras bandas da vargem é que ainda se divisava o vulto negro e mal recortado do mato. Nem uma estrela. Nem um pirilampo. Nem um relâmpago. A noite era feito um grande cadáver, de olhos abertos e embaciados. Os gritos friorentos das marrecas povoavam de terror o ronco medonho da cheia.

No canto escuro do quarto, o pito da velha Nhola acendia-se e apagava-se sinistramente, alumiando seu rosto macilento e fuxicado.

— Ocê bota a gente hoje em riba do jirau, viu? — pediu ela ao filho. — Com essa chuveira de dilúvio, tudo quanto é mundice entra pro rancho e eu num quero drumi no chão não.

Ela receava a baita cascavel que inda agorinha atravessara a cozinha numa intimidade pachorrenta.

Quelemente sentiu um frio ruim no lombo. Ele dormia com a roupa ensopada, mas aquele frio que estava sentindo era diferente. Foi puxar o baixeiro e nisto esbarrou com água. Pulou do jirau no chão e a água subiu-lhe ao umbigo. Sentiu um aperto no coração e uma tonteira enjoada. O rancho estava viscosamente iluminado pelo reflexo do líquido. Uma luz cansada e incômoda, que não permitia divisar os contornos das coisas. Dirigiu-se ao jirau da velha. Ela estava agachada sobre ele, com um brilho aziago no olhar (2).

Lá fora o barulhão confuso, subterrâneo, sublinhado pelo uivo de um cachorro.

— Adonde será que tá o chulinho?

Foi quando uma parede do rancho começou a desmoronar. Os torrões de barro do pau-a-pique se desprendiam dos amarrilhos de embiras e caíam nágua com um barulhinho brincalhão — tchibungue — tibungue. De repente, foi-se todo o pano de parede. As águas agitadas vieram banhar as pernas inúteis de mãe Nhola:

— Nossa Senhora d’Abadia do Muquém!

— Meu Divino Padre Eterno!

O menino chorava aos berros, tratando de subir pelos ombros da estuporada e alcançar o teto. Dentro da casa, boiavam pedaços de madeira, cuias, coités, trapos e a superfície do líquido tinha umas contorções diabólicas de espasmos epiléticos, entre as espumas alvas.

— Cá, nego, cá, nego — Nhola chamou o chulinho que vinha nadando pelo quarto, soprando a água. O animal subiu ao jirau e sacudiu o pêlo molhado, trêmulo, e começou a lamber a cara do menino.

O teto agora começava a desabar, estralando, arriando as palhas no rio, com um vagar irritante, com uma calma perversa de suplício. Pelo vão da parede desconjuntada podia-se ver o lençol branco. — que se diluía na cortina diáfana, leitosa do espaço repleto de chuva, — e que arrastava as palhas, as taquaras da parede, os detritos da habitação. Tudo isso descia em longa fila, aos mansos boléus das ondas, ora valsando em torvelinhos, ora parando nos remansos enganadores. A porta do rancho também ia descendo. Era feita de paus de buritis amarrados por embiras.

Quelemente nadou, apanhou-a, colocou em cima a mãe e o filho, tirou do teto uma ripa mais comprida para servir de varejão, e lá se foram derivando, nessa jangada improvisada.

— E o chulinho? — perguntou o menino, mas a única resposta foi mesmo o uivo do cachorro.

Quelemente tentava atirar a jangada para a vargem, a fim de alcançar as árvores. A embarcação mantinha-se a coisa de dois dedos acima da superfície das águas, mas sustinha satisfatoriamente a carga. O que era preciso era alcançar a vargem, agarrar-se aos galhos das árvores, sair por esse único ponto mais próximo e mais seguro. Daí em diante o rio pegava a estreitar-se entre barrancos atacados, até cair na cachoeira. Era preciso evitar essa passagem, fugir dela. Ainda se se tivesse certeza de que a enchente houvesse passado acima do barranco e extravasado pela campina adjacente a ele, podia-se salvar por ali. Do contrário, depois de cair no canal, o jeito era mesmo espatifar-se na cachoeira.

— É o mato? — perguntou engasgadamente Nhola, cujos olhos de pua furavam o breu da noite.

Sim. O mato se aproximava, discerniam-se sobre o líquido grandes manchas, sonambulicamente pesadas, emergindo do insondável — deviam ser as copas das árvores. De súbito, porém, a sirga não alcançou mais o fundo. A correnteza pegou a jangada de chofre, fê-la tornear rapidamente e arrebatou-a no lombo espumarento. As três pessoas agarraram-se freneticamente aos buritis, mas um tronco de árvore que derivava chocou-se com a embarcação, que agora corria na garupa da correnteza.

Quelemente viu a velha cair nágua, com o choque, mas não pôde nem mover-se: procurava, por milhares de cálculos, escapar à cachoeira, cujo rugido se aproximava de uma maneira desesperadora. Investigava a treva, tentando enxergar os barrancos altos daquele ponto do curso. Esforçava-se para identificar o local e atinar com um meio capaz de os salvar daquele estrugir encapetado da cachoeira.

A velha debatia-se, presa ainda à jangada por uma mão, despendendo esforços impossíveis por subir novamente para os buritis. Nisso Quelemente notou que a jangada já não suportava três pessoas. O choque com o tronco de árvore havia arrebentado os atilhos e metade dos buritis havia-se desligado e rodado. A velha não podia subir, sob pena de irem todos para o fundo. Ali já não cabia ninguém. Era o rio que reclamava uma vítima.

As águas roncavam e cambalhotavam espumejantes na noite escura que cegava os olhos, varrida de um vento frio e sibilante. A nado, não havia força capaz de romper a correnteza nesse ponto. Mas a velha tentava energicamente trepar novamente para os buritis, arrastando as pernas mortas que as águas metiam por baixo da jangada. Quelemente notou que aquele esforço da velha estava fazendo a embarcação perder a estabilidade. Ela já estava quase abaixo das águas. A velha não podia subir. Não podia. Era a morte que chegava, abraçando Quelemente com o manto líquido das águas sem fim. Tapando a sua respiração, tapando seus ouvidos, seus olhos, enchendo sua boca de água, sufocando-o, sufocando-o, apertando sua garganta. Matando seu filho, que era perrengue e estava grudado nele.

Quelemente segurou-se bem aos buritis e atirou um coice valente na cara aflissurada da velha Nhola. Ela afundou-se para tornar a aparecer, presa ainda à borda da jangada, os olhos fuzilando numa expressão de incompreensão e terror espantado (3). Novo coice melhor aplicado e um tufo d’água espirrou no escuro. Aquele último coice, entretanto, desequilibrou a jangada, que fugiu das mãos de Quelemente, desamparando-o no meio do rio.

Ao cair, porém, sem querer, ele sentiu sob seus pés o chão seguro. Ali era um lugar raso. Devia ser a campina adjacente ao barranco. Era raso. O diabo da correnteza, porém, o arrastava, de tão forte. A mãe, se tivesse pernas vivas, certamente teria tomado pé, estaria salva. Suas pernas, entretanto, eram uns molambos sem governo, um estorvo.

Ah! se ele soubesse que aquilo era raso, não teria dado dois coices na cara da velha, não teria matado uma entrevada que queria subir para a jangada num lugar raso, onde ninguém se afogaria se a jangada afundasse…

Mas quem sabe ela estava ali, com as unhas metidas no chão, as pernas escorrendo ao longo do rio?

Quem sabe ela não tinha rodado? Não tinha caído na cachoeira, cujo ronco escurecia mais ainda a treva?

— Mãe, ô mãe!

— Mãe, a senhora tá aí?

E as águas escachoantes, rugindo, espumejando, refletindo cinicamente a treva do céu parado, do céu defunto, do céu entrevado, estuporado.

— Mãe, ô mãe! Eu num sabia que era raso.

— Pera aí, mãe.

O barulho do rio ora crescia, ora morria e Quelemente foi-se metendo por ele adentro. A água barrenta e furiosa tinha vozes de pesadelo, resmungo de fantasmas, timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos.

— Mãe! — lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não respondia, e foi deixá-lo, empanzinado, nalgum perau distante, abaixo da cachoeira.
Bernardo Élis, “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”

De glórias e gloríolas

Uma glória, a única que tive com a poesia, eu a conquistei lá pelos dezesseis anos. Um amigo de meu bairro, o Jardim Saúde, tolo e jovem como eu, sabendo que eu andava versejando, pediu que eu escrevesse um poema para a sua namorada, que estava amuada com ele. Eu cometi a infâmia suprema de um acróstico. Ele o levou à amada como se o houvesse feito. Alguns anos depois eles se casaram. De lá para cá, mais nenhuma de minhas iniquidades rimadas teve efeito sequer parecido.

***
A fama, podes gozá-la em vida. De tua glória os pósteros não te poderão dar notícia.

***

Não canto o ribeirão, canto o arroio. Não canto o trigo maduro, canto o joio. Não canto o clarão, canto a escuridão, canto o escuro. Canto o direito de ter um defeito, de aprimorá-lo e de, tornando-o perfeito, assim proclamá-lo. Não canto a glória de ter o nome na história, canto o fracasso, canto a pequena glória de ter sido o mais desconhecido de todos os desconhecidos e de morrer assim e de assim permanecer.

***

Eu também tive ilusões, e o incrível, e o impensável e o inatingível não eram inadmissíveis nem impossíveis. Acreditei na fama, na glória, na concretização de todos os sonhos e do amor. Olhem bem para mim e me digam se vocês acham que consegui. Que vocês agora embarquem no barco em que um dia embarquei. Se acreditam na fama, na glória, na concretização de todos os sonhos e no amor, tudo bem. Eu também acreditei.
Raul Drewnick

Ceição

A escada tem vinte e oito degraus. E liga as tirânicas necessidades da mesa de D. Marfisa ao comércio ambulante e rumoroso que lhe passa pela frente do sobrado. Ao longo dessa escada, circulam pra baixo e pra cima, incansavelmente, duas pernas finas e esfoladas. São as pernas de Maria da Conceição – a Ceição. Agora, a carrocinha do verdureiro para defronte à casa de D. Marfisa. E, Dona Marfisa comanda:

- Ceição, dá um pulinho lá e pergunta o que é que ele tem de bom, hoje.

Conceição vai e volta:

- Tem abobra, chuchu, couve, repolho, agrião…

- Pergunta pra ele se tem alface. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que tem.

- Pergunta pra ele se a alface é nova. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que é.

- Pergunta pra ele quanto é o pé. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que é cinquenta…

- Pergunta pra ele se não acha caro. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que não, que é até barato.

- Então, pede dois pés. Ceição vai e volta:

- Tai, madrinha. D. Marfisa apanha os pés de alface, olha-os, examina-os.

- Bem. Agora, dá um pulinho lá e pergunta pra ele se tem troco pra uma nota de duzentos. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que tem.

- Pergunta pra ele se não é melhor assentar no caderno. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que, se a senhora quiser, ele assenta.

- Diz pra ele que não. Leva o dinheiro e paga já. Não quero mais saber de caderno. Ceição vai e volta:

- Mandou dizer que é pra senhora conferir o troco.

D. Marfisa confere:

- Tá certo. Mas esta nota parece que é falsa. Dá um pulinho lá e diz pra ele que me mande outra. Ceição vai e volta. Volta e geme:

- Tai, madrinha.

Então as duas pernas dobram, vergam – os ossos de Ceição quase se desmancham no assoalho asseadíssimo do sobrado da madrinha.

Ontem, D. Marfisa estava dizendo para a cozinheira:

- Como tu vês, Josefa, eu poupo o mais possível essa negrinha…

Athos Damasceno, "Persianas Verdes"

terça-feira, maio 28

Pintassilgo

Eu desconhecia a extensão do mundo. Minhas palavras minguadas não explicavam minha descrença na esperança. Eu possuía, oculto em mim, também o que eu não sabia dizer. Trazia de cor e decifradas algumas palavras: aturdido, suspeito, profundo, deserto, promessa, solidão e um amor condenado a minguar pelo exílio. Cobiçava conhecer mais palavras para nomear o incômodo perpétuo instalado pela dor.


No lugar de meu irmão veio morar comigo o Pintassilgo. Menino negro como o pássaro. Meu amigo emitia um assobio afinado como flauta soprada por anjo. Saltávamos pelos morros atrás de mais passarinho para conversar. O menino amigo, cantando outros silvos, me fazia fartar-me de fugaz felicidade. E não havia mentira mais verdadeira do que a de supor possível escutar o coração dos pássaros.

Cinco. O correio trouxe notícias da irmã que já não bordava mares com linhas azuis. Sua letra trêmula no envelope indicava o urdimento de estranhas tramas. Pedia à irmã mais nova para — em mais um de seus nascimentos — nascer ao seu lado. Estava só, e havia meses alimentava-se de solidão. Afirmava estar salgando seu prato com lágrimas. Sem mais para dizer-se, despedia suplicando o acordo do pai. A irmã mais nova renasceu para sempre em outro lugar fora do globo, sem o alfinete demarcando a distância.

Cada despedida se anunciava dando mais sustância às fatias do tomate. O que antes era apenas transparência — hóstia maculada de ameaça — agora se fazia corpo e decretava abandono. As mãos matemáticas da mulher registravam com a faca e a força, e sobre a pele do tomate, suas premeditadas vitórias.

Há dias em que o passado me acorda e não posso desvivê-lo. Esfrego os olhos buscando desanuviar a manhã que embaça o dia. Deixo a cama carregado pelos fados de ontem. Encaminho-me à cozinha sabendo não encontrar brasas cobertas de cinzas. Sorvo um pouco de café, e o sabor do quintal de meu avô já não me vem à boca. Sem possuir um olho de vidro, diviso o mundo vivido do mundo sonhado, com a nitidez da loucura. Meu real é mais absurdo que minha fantasia. O presente é a soma de nostalgias, agora irremediáveis. A memória suporta o passado por reinventá-lo incansavelmente. Tento espantar o presente balbuciando uma nova palavra. Tudo é maio, tudo é seco, tudo é frio.

Bartolomeu Campos de Queiroz, "Vermelho Amargo"

Delivery a leitura

 


Com o mundo nas mãos

Bernardo tem cinco anos, mas já sabe da existência do Japão. E aponta para o céu com o dedo: “É atrás daquele teto azul que fica o Japão”. Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum. “Mas então o céu não é o teto do mundo”. “Não: o céu é o céu. O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O Japão fica é lá embaixo” e apontei para o chão: “O mundo é redondo feito uma bola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu mesmo, mais nada. Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de desilusão: “ Então este Brasil é mesmo o fim do mundo.

Daqui pra lá não tem mais nada... Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão estar lá embaixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não caem” Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.


Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feito de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões.

O menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei.

Consegui convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha nova aquisição. Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar.

Descobri que a Coreia é muito mais lá para cima do que eu imaginava uma espécie de penduricalho da China, ali mesmo no costado do Japão. O que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali, tão longe de casa.

O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não encontrei.

Continua sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem.

Outra confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo; Síria, Líbano, Arábia Saudita, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom de geografia. Duvido que alguém me diga onde fica Andorra.

A última pessoa a quem perguntei me disse que ficava nos limites de Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso todo no Festival da Canção.

Em compensação, a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa quase todo o Pólo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de soprar para encher o mundo. De repente me vem uma ideia meio paranoide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio murcho, acho que o ar está se escapando.

E quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com meu sopro.
O nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo, e do tamanho desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios de peixes e singrados por navios, as cidades agarradas aos continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar riscado de aviões, de gaivotas e de urubus...

Tudo isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um segundo de satisfação ao longo dos séculos de História, não mais que alguns minutos em face da eternidade.

Que aventura mais temerária, a de Deus, escolhendo caprichosamente este lindo e insignificante planetinha para a ele enviar através dos espaços o seu Filho feito homem, com a missão de redimir a nossa pobre humanidade. Faço votos que tenha valido a pena e que um dia ela se veja redimida.

Até lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu filho Bernardo, irrompendo alegremente no escritório, me arrebata das mãos e sai chutando pela casa.
Fernando Sabino, "As Melhores Crônicas de Fernando Sabino"

A porta

Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:

- Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!

E a porta não foi aberta. Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:

- Não deixa entrar, esses não são a maioria.

Apareceu um moçambicano branco e o porteiro foi assaltado por protestos:

- Não abre! Esses não são originais!

E a porta não se abriu. Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:

- Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências…

E o porteiro negou passagem. Apareceu outro moçambicano de raça negra, reclamando passagem:

- Se você deixar passar esse aí, nós vamos-te acusar de tribalismo!

O porteiro voltou a guardar a chave, negando aceder o pedido. Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.

Mia Couto

A mágica da leitura

Ler as letras de uma página é apenas um dos muitos disfarces da leitura. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu – todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos.
Alberto Manguel, "Uma História de Leitura"

segunda-feira, maio 27

Cochilo na livvraria

 


As palavras e a moda

As palavras têm moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.

Depois dizem-nos adeus e ainda voltam depois de nos terem dito adeus.

Enfim – toda essa “tourné” maravilhosa que nos põe a cabeça em água até ao dia em que já somos nós quem dá corda às palavras para elas estarem a dançar.

Almada Negreiros

O ribeiro

Era uma vez um rapaz que morava numa casa no campo. Era uma casa pequena e branca, com uma chaminé muito alta por onde saía o fumo da lareira, que no inverno estava sempre acesa, e que servia para cozinhar e para aquecer a casa. 

À roda da casa havia um pomar com árvores de fruto e, como as árvores eram de várias espécies, havia sempre fruta fresca durante quase todo o ano. No inverno as árvores davam laranjas e tangerinas, na primavera davam peras e maçãs vermelhas, no verão era a vez das ameixas, das cerejas e dos pêssegos, no fim do verão e no outono chegavam os figos e os marmelos e a parreira grande que dava sombra enchia-se de uvas. E, quando passava a estação própria de cada fruta, podia-se comer as compotas que a mãe do rapaz tinha feito e que guardava em tigelas de barro e boiões de vidro que davam sempre um cheiro perfumado a toda a casa. 

Mas, além das árvores do pomar, o campo à roda da casa onde o rapaz vivia tinha também outras árvores, muito altas e grossas e que eram tão antigas que já estavam lá antes de a casa ter sido feita pelo avô do rapaz. O castanheiro dava castanhas, a nogueira dava nozes, mas, acima de tudo, as árvores grandes e antigas, como os dois carvalhos em frente de casa, davam sombra e pareciam guardar a casa e fazer companhia. 

Junto ao ribeiro, que passava à frente do terreno, havia faias, altas e esguias, e chorões, cuja copa densa caía até o chão e debaixo das quais o rapaz brincava às cabanas com os amigos e com os dois irmãos mais novos. 

Mas o sítio preferido do rapaz era o ribeiro. O ribeiro era um braço do rio que passava lá ao longe, na aldeia, e que de repente se separava dele e serpenteava pelo meio dos campos, entre os arrozais e os campos de milho do verão, até voltar a encontrar-se outra vez com o rio principal, já depois de passada a casa. O ribeiro fazia uma curva e depois mergulhava numa pequena cascata de pedras, antes de se alargar e formar um lago, mesmo em frente da casa. O chão era de areia e pequenas pedras, que se chamam seixos, e a água era transparente e ótima para beber. 

As pessoas que moravam naquele lugar e na aldeia próxima bebiam daquela água, cozinhavam com ela e pescavam no rio e por isso todos tinham muito cuidado para não sujar o rio, deitando lixo ou outras coisas lá para dentro. As pessoas sabiam que a água é a coisa mais preciosa da vida e que um rio que corre limpo é um milagre da natureza que não pode ser estragado.

Aí, nesse pequeno lago que o ribeiro formava, o rapaz aprendera a nadar ainda muito pequeno e passava lá todos os dias de verão a tomar banho. Debaixo de água nadava com os olhos abertos e por isso conhecia já quase todo o fundo do rio, desde as pedras mais bonitas até as várias espécies de peixes que desciam pela cascata e atravessavam o lago, continuando pelo rio abaixo em direção ao mar, muito longe dali. Havia também dois ou três peixes que não estavam de passagem e moravam nas margens do pequeno lago, entre esconderijos de pedras, cobertos por ramos de árvores que mergulhavam sobre as águas e escondiam os seus buracos. Às vezes o rapaz ia espreitá-los nas suas casas e, quando não os via lá, sabia que os peixes tinham ido nadar ao longo do rio, à procura de comida.
Miguel Sousa Tavares, "O segredo do rio"

Meditado com malícia

Ah, não: tudo eu não posso contar. Ou bem lhe digo o lugar, ou então lhe conto o fato - mas eu, se fosse o senhor, escolheria o fato, porque é um fato e tanto. Depois, se o senhor quiser mesmo recontá-lo, basta trabalhar em cima dele, retificar, esmerilhar, tirar as aparas, dar uma insuflada e, pronto, aí está uma bela história; e, apesar de eu ser mais jovem que o senhor, história é o que não me falta. O lugar talvez o senhor adivinhe, assim não precisa acrescentar nada; mas, se eu lhe disser onde fica, eu acabo tendo problemas, porque aquela gente é boa, mas um pouco melindrosa." 

Conhecia Faussone havia apenas dois ou três dias. Encontramo-nos por acaso no refeitório, o refeitório para estrangeiros de uma fábrica muito distante, para a qual fui deslocado devido ao meu ofício de químico de vernizes. Nós dois éramos os únicos italianos; ele estava lá havia três meses, mas tinha estado naquelas terras outras vezes e se virava muito bem com a língua, além das quatro ou cinco que já falava, incorretamente, mas com fluência. Tem uns trinta e cinco anos de idade, é alto, seco, quase calvo, bronzeado, sempre bem barbeado. Um rosto sério, quase imóvel e pouco expressivo. Não é um grande narrador: ao contrário, chega a ser bastante monótono, propenso à diminuição e à elipse, como se temesse parecer exagerado, mas muitas vezes se deixa levar e então exagera sem se dar conta. Tem um vocabulário reduzido e frequentemente se exprime por meio de lugares-comuns que talvez lhe pareçam argutos e novos; se quem o escuta não ri, ele repete, como se estivesse lidando com um tonto. 

"... porque, sabe, se estou nesse negócio de circular por todos os estaleiros, fábricas e portos do mundo, não é por acaso, e sim porque eu mesmo quis. Todos os jovens sonham em conhecer florestas, desertos ou a Malásia, e eu também sonhei com essas coisas; só que gosto que meus sonhos se tornem reais, senão permanecem como uma doença que a gente carrega pela vida inteira, ou como a cicatriz de uma operação, que volta a doer toda vez que o tempo fica úmido. Havia duas alternativas: esperar ficar rico e depois me transformar num turista ou então trabalhar como montador. Eu optei por ser um montador. É claro que existem outras maneiras - como quem dissesse virar contrabandista etc. -, mas essas coisas não servem para mim, porque eu gosto de conhecer países, mas sou um tipo dentro das regras. Agora já me habituei tanto a esta vida que, se precisasse ficar sossegado num canto, adoeceria: para mim, o mundo é belo porque é variado." 

Olhou-me por um momento, com olhos singularmente inexpressivos, e depois repetiu com paciência: 

"Se alguém está na própria casa, talvez até esteja sossegado, mas é o mesmo que chupar prego. O mundo é belo porque é variado. Então, como eu estava dizendo, já passei por tantas e boas, mas a história mais sinistra que me aconteceu foi no ano passado, naquele país que prefiro não mencionar, mas posso dizer que é muito longe daqui e também da nossa casa, e, enquanto aqui sofremos um frio danado, lá, ao contrário, faz um calor de rachar durante nove meses do ano, e nos outros três venta muito. Estava lá trabalhando no porto, mas lá não é como em nossa terra: o porto não é do Estado, e sim de uma família, e a família pertence ao pai de família. Antes de começar a trabalhar na montagem, precisei apresentar-me a ele de terno, almoçar, conversar, fumar sem pressa, imagine só, nós que sempre temos as horas contadas. Não por nada, mas é que custamos caro, e esse é o nosso orgulho. Esse pai de família era um tipo meio a meio, meio moderno e meio tradicionalista; vestia uma bela camisa branca, dessas que não são passadas, mas quando entrava em casa tirava os sapatos e também pediu que eu tirasse os meus. Falava inglês melhor do que os ingleses (que, aliás, não lhe agradam muito), mas não me apresentou às mulheres de sua família. Também como patrão devia ser meio a meio, uma espécie de escravocrata progressista: imagine que mandou pendurar sua foto emoldurada em todos os escritórios e até nos depósitos, como se fosse um Jesus Cristo. Mas todo o país é um pouco assim, há um monte de mulas e de monitores, há aeroportos que deixam o de Caselle no chinelo, mas muitas vezes, para chegar a um lugar, é mais rápido ir a cavalo. Há mais boates que padarias, mas se vê gente nas ruas com tracoma. 

"O senhor deve saber que montar um guindaste é um trabalho e tanto, e uma ponte rolante é ainda pior, mas não são tarefas que se façam sem uma equipe: é preciso alguém que conheça as malícias do ofício e que coordene tudo - nós - e depois os auxiliares da obra. E é aqui que começam as surpresas. Naquele tal porto, as confusões sindicais também são um grande problema; o senhor sabe, é um país onde, se alguém rouba alguma coisa, cortam-lhe a mão em praça pública: a direita ou a esquerda, a depender do que foi roubado, ou às vezes até uma orelha, mas sempre com anestesia e bons cirurgiões, que estancam a hemorragia num segundo. É verdade, não são lendas, e se alguém começar a espalhar calúnias a respeito de uma dessas famílias importantes, cortam-lhe a língua e pronto. 

"Pois bem, apesar de tudo isso, lá eles têm associações muito bem organizadas, que participam de todas as decisões: todos os operários de lá carregam sempre um radinho de pilha, como se fosse um patuá, e se a rádio disser que há greve, tudo para, não há ninguém que ouse levantar um dedo; de resto, se alguém tentasse, era capaz de receber uma facada, talvez não imediatamente, mas dali a dois ou três dias; ou então o sujeito levava uma viga na cabeça ou bebia um café e caía duro. Não gostaria de viver naquele lugar, mas me sinto satisfeito por ter estado lá, porque há certas coisas que a gente só acredita vendo. 

"Então eu lhe dizia que estava lá para montar um guindaste de cais, um desses gigantões de braço retrátil, e uma ponte rolante fantástica, quarenta metros de luz e um motor de suspensão de cento e quarenta cavalos; meu Deus, que máquina, me lembre de lhe mostrar a foto amanhã à tarde. Quando terminei de montá-la e fizemos os testes e parecia que tudo ia às mil maravilhas, deslizando feito manteiga, senti como se tivessem me dado um título de comendador e até paguei bebida para todos. Não, vinho não: aquela porcaria que eles chamam de cumfàn, com gosto de mofo, mas que refresca e faz bem - mas vamos com calma. Aquela montagem não foi uma coisa simples, não pelo aspecto técnico, que correu perfeitamente bem desde o primeiro parafuso; não, era mais uma atmosfera que se sentia ao redor, como um ar pesado, quando está para cair uma tempestade. Pessoas que falavam pelos cantos, fazendo sinais e caretas que eu não entendia, e de vez em quando surgia um jornal pregado na parede e todos se amontoavam em volta, lendo ou pedindo que lessem em voz alta, e eu ficava sozinho no alto dos andaimes, como um melro. 

"Depois a tempestade desabou. Um dia percebi que os operários se chamavam uns aos outros com gestos e assovios; todos foram embora, e aí, como eu não podia fazer nada sozinho, também desci das estruturas e fui assistir à assembleia deles. Era num grande depósito em construção: ao fundo montaram uma espécie de palco, com cavaletes e mesas; subiam ao palco e falavam um depois do outro. Entendo pouco a língua deles, mas se via que estavam furiosos, como se tivessem cometido uma injustiça contra eles. A certa altura subiu um mais velho, que parecia um mestre-de-obras; o sujeito estava muito seguro do que dizia, falava com calma, cheio de autoridade, sem gritar como os outros, e nem precisava disso, porque diante dele todos faziam silêncio. Pronunciou um discurso tranquilo, e todos ficaram convencidos; ao final, fez uma pergunta e todos ergueram a mão gritando não sei o quê; quando fez a pergunta inversa, nenhuma mão se levantou. Então o velho chamou um rapaz que estava na primeira fila e lhe deu uma ordem. O rapaz saiu correndo, foi ao depósito de ferramentas e voltou num instante, segurando numa das mãos a foto do patrão e um livro. 

"Perto de mim havia um especialista em testes que era do lugar, mas não sabia inglês; até estabelecemos certa camaradagem, porque convém sempre agradar aos testadores: a cada santo sua vela." 

Faussone tinha acabado de comer uma porção abundante de assado, mas chamou a garçonete e pediu uma segunda porção. A mim me interessava mais a sua história, e não os seus provérbios, mas ele o repetiu com método: 

"Em todos os países do mundo é assim, os santos exigem suas velas: eu tinha dado àquele especialista em testes uma vara de pescar, porque é bom agradar aos testadores. Assim ele me explicou que se tratava de uma questão boba: havia tempos os operários pediam que a cantina da fábrica oferecesse refeições com patíveis com a sua religião; no entanto o patrão queria posar de pessoa moderna, embora no fim das contas fosse um ferrenho partidário de outra religião, mas aquele país é um labirinto de religiões no qual qualquer um se perde. Enfim, mandou o chefe de pessoal dizer que ou eles se contentavam com o refeitório do jeito que estava, ou nada de refeitório. Já tinha havido duas ou três greves, mas o patrão não tinha nem piscado o olho, porque afinal as provisões eram magras. 

Então surgiu a proposta de fazer-lhe a caveira, só por represália." 

"Como assim, fazer-lhe a caveira?" 

Faussone explicou-me pacientemente que fazer a caveira é como fazer um feitiço, lançar um mau-olhado sobre alguém, fazer uma mandinga: 

"... não necessariamente para matá-lo: ao contrário, daquela vez com certeza não queriam que ele morresse, porque o irmão mais novo era pior do que ele.

 Queriam apenas meter-lhe medo, sei lá, que pegasse uma doença, sofresse um acidente, só para ver se mudava de ideia, e também para deixar claro que eles sabiam se defender. 

"Então o velho pegou uma faca, arrancou os pregos da moldura e a destacou do retrato. Parecia que ele tinha grande prática naqueles trabalhos; abriu o livro, fechou os olhos, pôs o dedo numa página, depois abriu de novo os olhos e leu no livro alguma coisa que não entendi, nem o testador. Pegou a foto, fez um rolo com ela e a amassou bem com as mãos. Mandou que buscassem uma chave de fenda, ordenou que a deixassem em brasa num fogão a querosene e a enfiou no rolo amassado. Aí desdobrou a foto e a exibiu, e todos batiam as mãos: a foto tinha seis buracos de queimadura, um na testa, outro perto do olho direito, um no canto da boca. Os outros três se espalharam no fundo, fora do rosto. 

"Então o velho repôs a foto na moldura do jeito que estava, amassada e furada, e o garoto partiu para recolocá-la no lugar, e todos voltaram a trabalhar. "Pois bem, no final de abril o patrão ficou doente. Não disseram com todas as letras, mas a notícia se espalhou logo, sabe como é. Desde o início parecia que era grave - não, não tinha nada no rosto, a história já é bastante estranha do jeito que é. A família quis logo metê-lo num avião e despachá-lo para a Suíça, mas não houve tempo: ele tinha algo no sangue e em dez dias morreu. E pense que era um tipo robusto, que nunca esteve doente, sempre girando pelo mundo de avião e, entre uma viagem e outra, sempre atrás das mulheres ou jogando toda a noite, até o sol raiar. 

"A família denunciou os operários por homicídio, aliás, por 'assassínio meditado com malícia': me disseram que lá era assim. Como se vê, eles têm tribunais que é melhor nem passar por perto. E não há um código só, mas três, de modo que eles escolhem um ou outro segundo a conveniência do mais forte ou de quem paga mais. A família, como eu dizia, argumentava que houve o assassinato: houve a vontade de matar, houve ações que visaram à morte e houve a morte. O advogado de defesa respondeu que as ações não pretendiam aquele resultado, no máximo apenas causariam erupções na pele, não sei, abscessos ou furúnculos; disse que, se a foto tivesse sido cortada ao meio ou queimada com gasolina, aí sim teria sido grave. Porque parece que, de acordo com as mandingas, de um furo nasce um furo, de um corte, um corte, e assim por diante; a gente acha a coisa meio engraçada, mas todos eles acreditam nisso, até os juízes, até os advogados de defesa." 

"Como terminou o processo?"

 "O senhor deve estar brincando: ainda continua, e vai continuar até sabe-se lá quando. Naquele país os processos não terminam nunca. Mas aquele testador que eu mencionei prometeu que me manteria informado, e, se o senhor quiser, eu também posso mantê-lo informado, se é que essa história lhe interessa."


 A garçonete veio servir a portentosa porção de queijo que Faussone pedira; tinha uns quarenta anos, era magrinha e curvada, com cabelos lisos e oleosos por causa de algum produto, o rosto triste de cabra assustada. Olhou Faussone com insistência, e ele sustentou o olhar com ostensiva indiferença. Quando foi embora, me disse: "Parece o cão chupando manga, coitadinha. Mas fazer o quê? A cavalo dado não se olham os dentes." 

Fez um gesto com a mandíbula em direção ao queijo e me perguntou com escasso entusiasmo se eu aceitava um pouco. Depois o atacou com avidez e, entre uma bocada e outra, retomou: 

"O senhor sabe, aqui, em matéria de garotas, é um fiasco. A cavalo dado não se olham os dentes. Dado pela fábrica, digo."
Primo Levvi, "A chave Estrela"

domingo, maio 26

Refúgio contra os 'cães'

 


É preciso repensar...

É preciso repensar a nossa vida. Repensar a cafeteira do café, de que nos servimos de manhã, e repensar uma grande parte do nosso lugar no universo. Talvez isso tenha a ver com a posição do escritor, que é uma posição universal, no lugar de Deus, acima da condição humana, a nomear as coisas para que elas existam. Para que elas possam existir… Isto tem a ver com o poeta, sobretudo, que é um demiurgo. Ou tem esse lado. Numa forma simples, essa maneira de redimensionar o mundo passa por um aspecto muito profundo, que não tem nada a ver com aquilo que existe à flor da pele. Tem a ver com uma experiência radical do mundo.

Por exemplo, com aquela que eu faço de vez em quando, que é passar três dias como se fosse cego. Por mais atento que se seja, há sempre coisas que nos escapam e que só podemos conhecer de outra maneira, através dos outros sentidos, que estão menos treinados… Reconhecer a casa através de outros sentidos, como o tacto, por exemplo. Isso é outra dimensão, dá outra profundidade. E a casa é sempre o centro e o sentido do mundo. A partir daí, da casa, percebe-se tudo. Tudo. O mundo todo.

Al Berto

Antologia Granta

Fazer uma antologia que traga no título a expressão “Os Melhores…” é (diria o dr. Machado Penumbra) mergulhar no paradoxo e se expor ao vitupério. Tudo que não é quantificável, como é o caso da qualidade literária, fica sujeito ao que a linguagem popular denomina de “gosto”, um nó-górdio que não se deslinda e só se pode cortar com a frase (talvez inventada por Seu Lunga) “gosto não se discute”.

A função de um antologista ou de um crítico os obriga a equilibrar o seu gosto com um conjunto diferente de expectativas. Sua leitura, sem deixar de ser uma leitura pessoal, tem também uma visão coletiva, porque sua função naquele momento tem algo de normativo, de definidor de parâmetros. Uma antologia que usa a expressão “Os melhores…” tende a transformar seus contos em sinalizadores. Os escolhidos de hoje são os imitados de amanhã. Em casos assim, a preferência pessoal dá um passo atrás e cede a vez a uma preocupação mais ampla. O crítico não está premiando unicamente o que lhe agrada, mas o que lhe parece mais necessário e mais enriquecedor para o conjunto da literatura, naquele momento específico.

A antologia “Os Melhores Jovens Escritores Brasileiros”, organizada pela Editora Alfaguara e revista Granta, definiu uma série de limites para participação (autores até 40 anos, com pelo menos um conto publicado, que enviassem um conto inédito). Recebeu 247 originais, e os sete jurados (entre os quais há amigos meus) escolheram 20. Mesmo considerando que estes 20 fossem superiores aos 227 restantes, é perfeitamente justo imaginar que existem no Brasil outros 20 autores, ou outros 200, igualmente bons e que por alguma razão não se inscreveram. (Não li a antologia, e não tenho motivos para supor que os contos não sejam bons.)

Quando organizei minha antologia “Páginas de Sombra – Contos Fantásticos Brasileiros”, um amigo me sugeriu que incluísse no título o trmo “melhores”. Respondi que não podia considerar aqueles 16 contos os melhores de nossa literatura fantástica, até porque seria impossível ler e comparar os milhares de candidatos; e um leitor de bom senso iria considerar que ninguém incluiria numa antologia um conto que não merecesse ser lido. “Bobagem”, disse ele, “tanto faz.

O público quer ter a ilusão de estar levando para casa o melhor produto, porque há cem anos as agências de publicidade lhe vendem a melhor cerveja, o melhor pneu, o melhor plano de saúde ou de telefonia. Ele precisa da ilusão de que está comprando ‘o melhor’, mesmo que isto lhe seja dito pelo próprio fabricante”. Toda antologia que anuncia “Os Melhores” está com um pé na crítica literária e o outro na propaganda.

Soneto da buquinagem

Buquinemos, amiga, neste sebo.
A vela, ao se apagar, é sebo apenas,
e quero a meia-luz. Amo as serenas
Angras do mar dos livros, onde bebo

– álcool mais absoluto – alheias penas
consoladas na estrofe, e calmo, e gebo,
tiro da baixa estante sete avenas
em sete obras que pago e que recebo.

Amiga, buquinemos, pois é morta
Inês de antigos sonhos, e conforta
no tempo de papel tramar de novo

nosso papel , velino, e nosso povo
é Lucrécio e Villon, velhos autores,
aos novos poetas muito superiores.
Carlos Drumond de Andrade, "Viola de bolso"

sábado, maio 25

Cidade mágica

 


O livro e a vida

Você não pode embarcar de novo na vida, esta viagem de carro única, quando ela termina; mas, se tem um livro na mão, por mais complexo ou difícil que seja compreendê-lo, ao terminá-lo você pode, se quiser, voltar ao começo, ler de novo, e assim compreender aquilo que é difícil, assim compreendendo também a vida.

Orhan Pamuk

Meus heróis civilizadores

Não existe redenção para as grandes tragédias, mas a vingança sublime e a única forma de transcendência dos homens ao desmazelo da vida é transformar a má fortuna e a dor em beleza, civilização e arte. Os meus heróis civilizadores não frequentaram bibliotecas, não discutiram a alta filosofia nas academias e universidades, não escreveram tratados iluministas, não pintaram os quadros do Renascimento, não escreveram romances, não compuseram sinfonias, não conduziram exércitos em grandes guerras, não redigiram leis, não fundaram empresas, não elaboraram tratados e constituições e não planejaram monumentos, edifícios e pontes.

Os homens que me civilizaram chegaram às praias do meu país nos porões infectos dos tumbeiros e foram vendidos e marcados feito gado no mercado.

Eu fui civilizado pelo rufar dos tambores misteriosos, pelo toque de São Bento Grande no berimbau de cabaça, pela dança desafiadora do Obá dos Obás, pelo bailado da dona do afefé – sagrado vento – e pelo xaxará do senhor da varíola, a quem reverencio e peço a calma para não estranhar o mundo – Atotô!

Aprendi a olhar com admiração os homens ao conhecer os dribles de Mané, a ginga de Pastinha, a sabedoria de Menininha, a força de Candeia, os versos de Silas, o miudinho de Argemiro, as esculturas de Mestre Didi, as toalhas rendadas de Tia Prisciliana, o cachimbo de Dona Eulália, o canto de Anescar, o tempero da Iyá Bassê, o lamento dos vissungos, o machado do jongo, as folhas de Ossain e os cantos de evocação de Oxupá, dindinha Lua.

Quem me criou não tinha educação formal e não me deu o Quixote, o Crime e Castigo, o Dom Casmurro, o Grande Sertão e outros tantos grandes livros que, como esses, eu li um dia e passei a amar. Quem me criou, porém, me contou das artimanhas de Exu, da flecha certeira de Oxóssi, dos amores de Ogum, das mulheres de Xangô, do tronco forte de Tempo e do pano branco de Lemba – e eu passei a gostar de ouvir e inventar histórias, no alargamento da vida.

Quem me criou não me levou aos teatros, não me apresentou a grandes óperas e não me presenteou com discos de sublimes sinfonias – que dessas coisas quem me criou não sabia. Mas quem me conduziu cantou, para confortar as minhas noites, sambas, toadas, jongos, afoxés, cirandas, maracatus, alujás, calangos, xibas e xotes – e eu fui apaziguando a alma com os sons do meu povo.

E é por isso, por essas áfricas que me fizeram como sou, que gosto da rua, do mercado, dos amigos, da gente miúda feito eu, do porre, da bola, do beijo, da troça, da raça, do sol, da cachaça, da carne, da alegria, da subversão, da insubmissão, da guerrilha, do vento, da aldeia, do mistério, da mistura, do dendê, das pernas tortas, do português torto, da língua do Congo e do pranto do banzo.

E eu me pego todo dia a orar a Zâmbi por um Brasil mais tolerante com o seu povo. Há que se lamentar e reverenciar – todos os dias – o martírio dos tumbeiros, fazer do tronco do castigo o totem da humanidade e louvar a todos os quilombolas, de ontem e de hoje, que me ensinaram a amar a terra e celebrar a vitória da vida sobre a morte – lição maior de Licutam, Luísa Mahin, Zomadônu e Zacimba Gaba. O Brasil haverá de saber quem eles são.

É só assim que a gente afaga o tempo, serpenteia a dor e apascenta, entre um tombo e outro, o olhar sobre a belezura do que pode ser o mundo.

Luiz Antonio Simas, "Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros"

Uma história de tanto amor

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longínquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte.

Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café – e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordálas seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrirlhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava: – Mas é o galo, que é um nervoso, quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue! Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou-lhe: – Nós comemos Petronilha.

A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade.

Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe.

– Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhoua num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das Minas Gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.

O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico: era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma presciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens
Clarice Lispector, "A descoberta do mundo"

quinta-feira, maio 23

Boa colheita

 


Jardins e sonhos

O que mata um jardim não é o abandono. O que mata um jardim é esse olhar de quem por ele passa indiferente… E assim é com a vida, você mata os sonhos que finge não ver.
Mario Quintana

Barra limpa

E como as páginas dos jornais estivessem mais sujas de sangue que as que embrulham o peso de carne nos açougues, eu resolvi desligar e buscar um pouco de beleza no mundo. Olhei minha nova casa em torno, toda caiada de branco, modesta em seu recolhimento, e os belos arraiolos no piso de tábuas, e fui espiar meu escritório ainda incompleto, pintado de amarelo-acácia, e vi minha mesa de trabalho com a Smith Corona em posição de sentido e o maço de folhas quadriculadas à minha espera para o artigo, o poema, a canção. À esquerda, o Pequeno dicionário, de mestre Aurélio, o tubo plástico de cola-tudo, a caixa de clipes e o copinho de couro ornado em cobre com as esferográficas e os lápis prontos para tudo. Pedi um café e sentei-me, tomado de grande paz. Vinha daquele ambiente um silêncio tão antigo; aquela casa era a tal ponto a representação de outras em que eu nunca tinha estado - como o reflexo ao infinito de uma imagem num espelho - que eu poderia dizer naquele instante como viviam e pensavam os homens mais remotos no tempo. Foi então que vi, através da janela, a pedra dos Dois Irmãos, na luz pura da manhã na Gávea; e ela estava de tal modo precisa em seus contornos, tão íntegra em sua estrutura milenar, que sorri para ela e ela me correspondeu sensível à onda de percepção que eu irradiava.

Senti como se estivesse nascendo naquele momento. Uma vida nova, passada a limpo, me esperava em direção a um Norte mais nítido, a uma morte mais próxima e sem alternativa. Mas aquela casa me protegia, e dentro dela uma mulher se esforçava por me fazer feliz. Aquelas folhas de papel me esperavam também, intocadas, e era minha obrigação escurecê-las de idéias, histórias, sortilégios capazes, talvez, de fazer alguém parar no seu cotidiano e se pôr a sonhar. Era bela a minha missão. "E sou um poeta", pensei, "um homem dotado de um dom mágico com relação às palavras; a bem dizer, um encantador de palavras, com a habilidade de ordená-las no seu caos e fazê-las significar, torná-las cruéis, pungentes, desesperadas, ou boas, úteis, generosas; com o poder de interpretar para alguém o milagre de um sentimento ignorado; de dar expressão ao inexprimível; de associar idéias, cores, sons aparentemente contrastantes; de emprestar sentido e beleza ao terrível paradoxo da vida..." E senti como nunca dantes a necessidade de uma disciplina física e mental que pudesse ajudar meu corpo a tornar-se cada dia mais apto para usufruir, meu espírito mais lúcido para receber, meu coração mais simples para dar.

Pensei em seres lindos semeados ao longe do meu caminho, que comeram o pão que o diabo amassou, e nem por isso se deixaram envenenar pelo ressentimento; pelo contrário, a cada sofrimento vivido pareciam crescer em consciência, amor e perdão - e como que deles emanava uma paz. Pensei que alguns desses seres já se foram, transpuseram o muro do silêncio, e suas imagens, fixadas na eternidade, continuam a transmitir-me esse recado de perdão. Perdoar... Transcender o efêmero de cada sentimento, de cada ressentimento, e tentar compreender o ser humano em sua fragilidade, em sua transitoriedade e inabilidade intrínseca para demarcar os limites de sua solidão; em sua inútil e permanente mania de viver esbanjando a própria morte: a única coisa de que é realmente possuidor. Ah, que conquista tão bela, a do perdão... - e não o perdão autocomplacente; mas o perdão punitivo, o que responsabiliza aquele que perdoa, como o de Sócrates com seus juízes, o de Cristo com a adúltera, o da mulher que ama com o homem que acabou de traí-la. O amor que transcende.

Que seres difíceis de digerir se tornaram os cosmonautas, em seu mundo mecânico e pasteurizado... Tomara que tenham êxito em sua badalação cósmica, que nos tragam, de preferência, antibióticos contra a guerra e não vírus contra a paz, que possam olhar o espaço invertido, com perdão da palavra, em noite de terra-cheia, e ver também, como nós vemos de cá, o Santo Guerreiro vencendo o Dragão da Maldade - que já não é sem tempo! E sobretudo que ao voltarem - e faço votos do fundo do meu coração - não comecem com muitas explicações cibernéticas quando ouvirem Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald cantar velhas baladas como "Blue Moon" e outras do mesmo lunário em louvor da outrora bela e mágica Silene, a que apaixonou Endimião, e a quem tudo o que se pode dizer hoje em dia é que não lhe cairia mal um face peeling. Porque, ou muito me engano, ou uma grande onda romântica deve vir por aí, em contagem regressiva, em reação aos pops & ops, hips & trops, concs & struts, de que já está todo o mundo cheio.

Depois de todas essas considerações, umas pertinentes, outras ímper, peguei meu carro e fui até a Barra, visitar um antigo cosmonauta: meu amigo Zanine. Zanine é um construtor terrestre, no mais amplo sentido da palavra, isto é, não apenas de casas, mas de sua própria vida. Gosta de fazer tudo com as mãos, ou orientando as de seus obreiros como se fossem o prolongamento das suas. Ele ama a terra, a pedra, a areia, a água, o barro cozido, a madeira nua, a cal branca, o ferro batido, a mulher baiana. É um artista no que planeja como visão de conjunto, e um artesão na pureza e simplicidade do que faz - com tudo o que essa palavra contém de beleza e sensualidade. Fórmica com ele não tem vez. Zanine acabou de construir uma bela casa - a sua casa - onde mora com a mulher e a filhinha, a alto cavaleiro do mar: um marzão que é uma bestialidade, povoado de ilhas toscas e peixes ferozes. O crepúsculo que Zanine me ofereceu esse dia, naquele horizonte imenso, era de dar vontade de ter asas. Aliás, voavam por ali tudo balõezinhos de julho, retardatários, que por não serem impulsionados por nenhum foguete - no que muito bem obravam - acabaram por cair no mar, em obediência a uma antiga lei de física, qual seja a da gravidade dos corpos, que, diga-se de passagem, qualquer dia é bem capaz de fazer uma falseta a um desses cosmonautas que teimam em desrespeitá-la.

Para mim não há nada mais inocente que essas revistas pseudo-eróticas que andam por aí. As moças nuas, em off-set, parecem-me de tal modo cândidas, malgrado o esforço em contrário dos fotógrafos, que para mim constituem verdadeiros breves contra a luxúria. Já o mesmo não pode ser dito da natureza: pelo menos tal como ela se me oferecia, ao voltar da Barra. Pois imaginem que ao olhar o céu rubro do crepúsculo (eu diria melhor: ruborizado!) constatei, nada mais, nada menos - veja só! - que a tarde estava com a Lua toda de fora...
Vinicius de Moraes, Jornal do Brasil (31/12/1969)

Sem nada ver.

Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro de chauffeur. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me. - "Perdão! Perdão!" digo às pessoas aque me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócio, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e, como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramento percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. Tudo foi visto ou ouvido de relance, talvez não tenha sido visto nem ouvido bem, mas avulta quando estou só - e distingo perfeitamente a criança, o operário faminto, os namorados que desejam deitar-se. Eles me invadiram por assim dizer violentamente.

Graciliano Ramos, "Angústia"

Autoestima, relaxamento, empenho escolar: os efeitos poderosos da leitura para crianças


Miguel Salas, doutor em Literatura e professor, é enfático em sua visão de vida: "Procuramos um lazer muito fácil, em troca de muito pouco, seja assistindo TV, checando o celular ou jogando com ele. Se estamos dando esse exemplo aos nossos filhos, é muito difícil que eles leiam um livro". Em uma palestra, o acadêmico dá alguns conselhos para ajudar os adultos na luta para fazer com que as crianças deixem de lado os prazeres passageiros da tecnologia e adotem o hábito tradicional da leitura.

No entanto, ele adverte que esta não é uma tarefa fácil.

— Existem causas sociais que afetam a leitura, porque exige concentração, aprofundamento e silêncio, mas a sociedade em que vivemos promove o contrário.

Partindo de sua experiência pessoal, Salas conta que seu amor pelos livros começou, como na maioria dos casos, porque sua família é muito leitora.

— Sempre tentaram promover esse amor pelos livros em casa e, no caso dos meus irmãos e no meu, conseguiram. A verdade é que gostamos de fazer isso — revela.

A razão que ele atribui à origem de sua paixão não é muito diferente da de muitos leitores amadores. Estima-se que quase 80% das crianças reconhecem que as pessoas que as incentivaram a ler foram seus familiares.

— Igualmente na idade adulta, mas sobretudo na infância, os livros são uma oportunidade de se abrir para o mundo, viver outras vidas, viajar para lugares que não se sabe localizar no mapa quando se é muito pequeno — observa Salas.

"Aprender a ler é acender um fogo, cada sílaba soletrada é uma faísca", é uma citação atribuída ao autor Victor Hugo. E o francês não está errado, através da leitura qualquer pessoa pode viajar para outros lugares e momentos da história, até mesmo ser transportado para um lugar de sonhos ou uma realidade alternativa cheia de fantasias.

— É uma possibilidade, sem sair da sua cama ou do seu sofá, de viajar para outros lugares e tempos — diz Salas.

O especialista enumera uma série de vantagens que as crianças que aprendem a ler desde cedo e desfrutam do hábito ao longo de suas vidas adquirem. Para Salas, os benefícios não são apenas a melhor compreensão da leitura e a vantagem em termos acadêmicos, mas também melhorias sociais e individuais.

Veja alguns benefícios da leitura.

Contribui para o desenvolvimento da capacidade comunicativa de forma muito importante. Uma criança que lê é uma criança que se expressa melhor e que compreende melhor;

Aumento evidente do vocabulário. De acordo com Salas, aos 20 meses de idade, uma criança em um ambiente familiar culturalmente rico domina cerca de 200 palavras. Já uma que está em um ambiente de nível sociocultural baixo domina 20;

Desenvolvimento da imaginação. Isto é fundamental porque as pessoas são muito mais audiovisuais agora e não precisam de informações para completar um cenário;

Função social. Está mais do que provado por centenas de estudos que a leitura está diretamente relacionada ao desempenho das crianças na escola;

Fomenta a empatia bem direcionada. O hábito coloca as crianças diante de um espelho e as faz entender a si mesmas através do que outros escreveram. Para Salas, uma biblioteca é uma seleção das melhores mentes da história da humanidade;

Permite se envolver e escapar. É uma atividade com "fluxo", ou seja, que é capaz de fazer com que o leitor esqueça suas preocupações e se concentre de maneira tão perfeita que é quase como se estivesse meditando.

Existem causas sociais, acadêmicas e, é claro, familiares. As familiares — aponta Salas — têm a ver com o fato de não ser possível pedir a uma criança que faça coisas que seus pais não fazem.

Ele também explica que as condições atuais não favorecem que seja um hábito fácil.

— Chegamos em casa exaustos e procuramos um lazer que não nos exija muito. Então, ligamos a TV e ao mesmo tempo estamos checando o celular ou brincando com ele porque nos evadimos em troca de muito pouco — diz.

Por isso, da mesma forma que uma família estabelece horários para as refeições, estudar ou trabalhar, Salas sugere fazer o mesmo com a leitura.

— Meia hora de leitura por dia, cada um com um livro. Mas além disso, temos um momento para o jantar, outro para o esporte, as tarefas e assim por diante. Só é necessário meia hora por dia, não é necessário mais — aconselha.

Leituras recomendadas para iniciar as crianças

Salas sugere uma série de livros que, baseado em sua experiência com crianças, sempre funcionam: livros escritos por Arthur Conan Doyle como Sherlock Holmes; Os Três Mosqueteiros ou O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas; as obras de Jane Austen que são da literatura do século XVIII e que, além disso, têm um tom sentimental que os jovens adoram.

Quando uma criança ou adolescente pergunta "o que posso ler?" deve ser levado a sério porque, nas palavras do especialista, isso pode mudar suas vidas.

Por último, cita o poema "Los Justos" do argentino Jorge Luis Borges que costuma recitar para seus alunos do ensino médio quando estão angustiados com a carreira, o ensino médio, a vocação ou o sentido da vida.

Diz assim: "Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire. Aquele que agradece que na terra haja música. Aquele que descobre com prazer uma etimologia. Dois empregados que em um café do sul jogam um silencioso jogo de xadrez. Um ceramista que premedita uma cor e uma forma. O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade. Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto. Aquele que acaricia um animal adormecido. Aquele que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram. Aquele que agradece que na terra haja Stevenson. Aquele que prefere que os outros tenham razão. Essas pessoas que se ignoram estão salvando o mundo".

quarta-feira, maio 22

Efeito Livro

 


O pião

Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedí-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas - era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim, só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças - que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos - afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.

Franz Kafka

Nome de guerra

Um dia na cidade do Porto presenciei uma cena entre um homem e uma mulher que nunca mais pude esquecer. O cenário onde isto se passou é dos mais pitorescos que os meus olhos viram: a Ribeira, ou a Ribeira Velha, creio eu que lhe chamam. É um cais sobre o Douro, perto da ponte de D. Luís. Todo o aspecto em redor é pesado e amontoado, conforme o carácter da cidade. Desde aquele cais a cidade sobe sempre em todas as direcções até à Torre dos Clérigos. Na outra margem a ascensão iguala-se à de cá, de modo que o rio parece ter metido pelo mais alto de um monte que ficou dividido. Tudo isto faz com que o cais nos dê a estúpida impressão de estar enterrado. Lembro-me de umas interessantíssimas casas cujos alicerces se adivinham por causa da solidez com que as suas fachadas intimam os nossos olhos. Julgo serem vermelhas, ou foi a impressão violenta da cor que me deixaram. Do que bem me lembro é dos arcos em vez de portas e de umas janelas que pareciam desviadas dos seus respectivos lugares. Os arcos abriam umas lojas não sei de quê, pois fixei apenas os seus fundos negros, os mais negros e os mais fundos que tenho conhecido.

Pondo por cima disto tudo uma camada de antiguidade cor de ardósia e de ferrugem, de nevoeiro fabril e de salitre, a descrição deve ficar aproximada, descontando, é claro, o autor e a circunstância de ter gozado esta vista apenas uma vez.

No cais as pessoas são bem as das respectivas casas. A aglomeração de gente é como a do casario. Um mercado justifica aquela frequência. Além disto, a carga e a descarga das fragatas ocupa uma quantidade imensa de mulheres e de homens, mas sobretudo mulheres. É uma raça diferente da do mercado. Poucas vezes me foi dado compreender melhor o que significam aquelas: ganhar o pão de cada dia, do que ao ver essas mulheres que iam e vinham sobre duas grossas e compridas pranchas de madeira lançadas desde a borda da fragata até ao cais, numa distância parecida com uns dez metros. O equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação à altura de três homens da água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros. Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da fragata. Daquela vez não me lembro do que descarregavam; apetecia-me que fossem laranjas, mas não insisto com a memória; tenho, contudo, ainda na mente a maneira rápida como davam conta daquele serviço, conservando sempre um tempo ginástico, e não digo militar, porque além dos gestos sóbrios e simplificados, corrigidos para o próprio trabalho repetido em que andavam, havia também uma beleza de linhas e de formas à qual não era estranha a sua natureza feminina. O gesto de abaixarem-se para acertar a cabeça ao meio da canastra carregada, a marcha sobre a prancha com o peso todo à cabeça, o modo de despejar a canastra inclinando o corpo de lado pela cintura eram exactos e cheios de graça. As alcochetanas que descarregam das fragatas o carvão inglês nos cais de Lisboa por este mesmo processo não podem infelizmente ser-lhes comparadas. Se não lhes falta a graça, a sua graça é outra, mas não dispõem das ossaturas opulentas das mulheres do Norte e muito menos daquela dignidade externa, a qual me surpreendeu em mulheres de pé descalço. Eram umas dezenas de mulheres todas semelhantes. Por contraste com a sua actividade havia no cais uns homens sentados e outros deitados ao sol em sacas de sarapilheira cheias de mercadoria. Para um destes homens aquelas dezenas de mulheres não eram todas a mesma; esperava sempre que essa passasse mais perto donde ele estava para lhe dizer o que tinha a dizer-lhe. A rapariga não fazia caso e seguia como as outras. Era um dito qualquer e talvez sempre o mesmo de todas as vezes que acontecia chegar a altura de ela passar por onde ele estava. Centenas de vezes e não falhou uma! Mas de uma vez a rapariga vinha a meio da prancha com a canastra carregadinha, e ele começou logo como de costume a gracejar com ela; sem ninguém esperar, ali mesmo de cima da prancha, parou de repente, despejou a canastra no rio, apontou o braço livre em direcção ao tal homem e com o sangue todo nas faces disse-lhe esta única palavra:

— Desgraçador!

Nunca mais esqueci esta palavra.
Almada Negreiros