sábado, agosto 31
Sons dos ancestrais
— Que barulho é esse que você carrega atrás de si? — Qual barulho? — perguntou Haru. O corvo grasnou. — Não sei — respondeu o sacerdote —, mas o ouvimos. Conversaram sobre várias coisas mas logo Haru teve a sensação de ouvir palavras e sons do mundo como se eles se produzissem em outro lugar. Estava sozinho num território desconhecido varrido por um rumor límpido e, logo ao lado, se desenrolava o curso das coisas reais. Ele perdeu o fio da conversa do velho sacerdote, ergueu o nariz para o céu que escurecia — céu de neve, mas não estou sozinho, pensou. Então, riu e, cortando a palavra do homem de fé, disse-lhe: — O barulho, sabe? São meus ancestrais. — Ah! — disse o outro. — Eu bem que sabia! E virando-se para o corvo: — São os ancestrais dele. Depois disso ele traduziu amavelmente a conversa para a língua dos corvos.
Muriel Barbery, "Em: Uma hora de fervor"
Muriel Barbery, "Em: Uma hora de fervor"
Os genes
- Eu também aprecio os livros de História. Ensinam-nos que, basicamente, somos iguais hoje ao que fomos outrora. Pode haver diferenças insignificantes em termos de vestuário e de estilo de vida, mas não há grande diferença no que pensamos e fazemos. No fundo, os seres humanos não passam de veículos, ou locais de passagem, para os genes. De geração em geração, correm dentro de nós até nos esgotarem, como cavalos de corrida. Os genes não pensam no bem e no mal. Não querem saber se somos felizes ou infelizes. Para eles, não passamos de um meio para atingir um fim. Só pensam no que é mais eficaz do seu ponto de vista.
- Apesar de tudo, não conseguimos deixar de pensar no bem e no mal. Não é o que está a dizer?
A senhora anuiu.
- Precisamente. As pessoas ‘têm’ de pensar nessas coisas. Mas os genes são o que controla a base da forma como vivemos. Como é natural, as contradições surgem.
Haruki Murakami, "1Q84"
- Apesar de tudo, não conseguimos deixar de pensar no bem e no mal. Não é o que está a dizer?
A senhora anuiu.
- Precisamente. As pessoas ‘têm’ de pensar nessas coisas. Mas os genes são o que controla a base da forma como vivemos. Como é natural, as contradições surgem.
Haruki Murakami, "1Q84"
Aos que choram
Tenho chorado muito ultimamente, mais do que de costume. E, o que é pior, sem motivo.
Fui ao médico e ele me perguntou: O senhor tem fígado? Tinha, respondi, quando era criança; agora já nem sei mais. A vida me tem roubado tanta coisa! O senhor tem tuberculose na sua família? Tuberculosos não tenho, não senhor, nem tampouco tenho família. Sou órfão por todos os lados, como se pode ver perfeitamente. E loucos? Houve algum caso de loucura entre os seus antepassados? Que eu saiba, só três tios e vinte e sete tias. Mas, se me permite, eu vim aqui saber o que tenho e não o que tiveram ou deixaram de ter meus avós e tataravós, o macaco de Darwin inclusive. O senhor é uma besta!
E assim fiquei sem saber exatamente o que tenho, ou mesmo se tenho, graças à enciclopédica ignorância do doutorzinho que me atendeu e que na sua placa dizia trazer longa prática dos hospitais de Berlim, Roma, Tejucupapo, Hollywood, Cannes e Punta del Este. (Esquecia-me de dizer que não lhe paguei a consulta, que era caríssima, mas lhe dei em troca um piparote no cocuruto, no instante mesmo em que ele se abaixava para examinar-me o sexo com o ar mais cínico deste mundo. É sempre assim que pago a esses professores de meia-tigela, quando os pego distraídos e com a mão na massa, em flagrante delito de autossuficiência.) Mas, para não dizer que havia perdido o dia, entrei numa farmácia e comprei um tubo de comprimidos de qualquer coisa, e saí chupando-os pela rua afora, ainda com um resto de lágrimas entre as pálpebras para não perder o hábito.
Aos que só choram quando há motivos para chorar, e não costumam bancar carpideiras sobre a nudez ardente da bem amacia ou mesmo de uma simples rameira (quando toda a nossa atenção deve estar concentrada num único ponto, como o arqueiro no instante de visar o centro do alvo) eu formulo aqui um apelo ao mesmo tempo simples e desesperado, como o formularia ao próprio Deus caso ele existisse e estivesse presente, já que não tenho um só amigo que me possa valer nesta angústia infinita. Dai-me, eu vos peço, a receita de não chorar à toa sobre as mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano, e de ver com olhos de cego, como vós fazeis, as aparentes belezas deste vasto cemitério sobre o qual caminhamos e que, de tão repleto de mortos, já está até cheirando mal, apesar da primavera que há no céu e nas flores. Dai-me a fórmula de sabedoria que me permita, aos quarenta anos — idade da minha imagem no espelho — contentar-me com o efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua, e com os fugidios prazeres que nos podem advir do corpo ou do espírito, QUANDO sobre nossas cabeças paira, cada vez mais densa, a gigantesca sombra da morte, com a sua certeza que não admite sofismas nem tergiversações, por mais que a queiramos ignorar em nossos instantes de sono ou mesmo de vigília. Se a morte para a qual caminhamos a passos rápidos — e que ainda hoje pode colher-nos de surpresa, como nos colhe um raio em meio à tempestade — se essa morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a grande verdade contra a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem tampouco seu incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu ignorá-la com um sorriso nos lábios, como se este mundo fora o paraíso terrestre e não a terra deserta e sem caminho de que fala a Bíblia, livro que em tudo mais não merece grande crédito. Eu que sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte, rindo-me de tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia, sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais triste do que o palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa de gargalhada. É que o meu riso, que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado, como só agora me dou conta de todo, em face desta lacrimorreia aparentemente absurda em que me afogo. Em suma: nada mais vos peço senão que afugenteis a morte da minha vista, já que não podeis afugentá-la das minhas costas, e que me deis o segredo desse filtro que vos faz tão tranquilos e ao mesmo tempo tão vivos, mesmo com o cheiro de cadáver já exalando de vossas narinas. Dai-me, enfim, a arte de mentir a mim mesmo, eu que não sei mentir nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os mortos como se pisasse apenas sobre esqueletos antediluvianos, que não me dissessem respeito e muito menos desrespeito, dada a minha alta qualidade de ser imortal e indiferente aos abismos.
Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"
Fui ao médico e ele me perguntou: O senhor tem fígado? Tinha, respondi, quando era criança; agora já nem sei mais. A vida me tem roubado tanta coisa! O senhor tem tuberculose na sua família? Tuberculosos não tenho, não senhor, nem tampouco tenho família. Sou órfão por todos os lados, como se pode ver perfeitamente. E loucos? Houve algum caso de loucura entre os seus antepassados? Que eu saiba, só três tios e vinte e sete tias. Mas, se me permite, eu vim aqui saber o que tenho e não o que tiveram ou deixaram de ter meus avós e tataravós, o macaco de Darwin inclusive. O senhor é uma besta!
E assim fiquei sem saber exatamente o que tenho, ou mesmo se tenho, graças à enciclopédica ignorância do doutorzinho que me atendeu e que na sua placa dizia trazer longa prática dos hospitais de Berlim, Roma, Tejucupapo, Hollywood, Cannes e Punta del Este. (Esquecia-me de dizer que não lhe paguei a consulta, que era caríssima, mas lhe dei em troca um piparote no cocuruto, no instante mesmo em que ele se abaixava para examinar-me o sexo com o ar mais cínico deste mundo. É sempre assim que pago a esses professores de meia-tigela, quando os pego distraídos e com a mão na massa, em flagrante delito de autossuficiência.) Mas, para não dizer que havia perdido o dia, entrei numa farmácia e comprei um tubo de comprimidos de qualquer coisa, e saí chupando-os pela rua afora, ainda com um resto de lágrimas entre as pálpebras para não perder o hábito.
Entre os vários motivos de pranto que conheço, e que suponho sejam os mesmos de todo mundo, não há nenhum que eu possa legitimamente invocar como fonte deste choro convulso que me tem visitado nestes últimos tempos e que ainda agora, neste banco de jardim, me arrebata por inteiro, como se eu fora o mais triste dos assassinos. Seja ao pé do meu cipreste funéreo — o que ainda seria uma justificativa — seja durante o banho ou quando estou simplesmente à mesa esperando pelo meu almoço, vem-me de súbito, com uma força incoercível, a necessidade de chorar todas as lágrimas que trago guardadas dentro de mim, exatamente como se eu sentisse necessidade de esvaziar a bexiga ou os intestinos, naquele mesmo instante e não dez minutos depois. Ainda ontem à noite, quando me encontrava num bordel copulando com uma bela desconhecida, e no instante mesmo em que o espasmo final se aproximava, em meio a uma farândola de pernas e braços entrelaçados — subiu-me de súbito à cabeça, e daí aos olhos, uma torrente de lágrimas quentes e amargas, que não só me tirou de pronto todo o entusiasmo exigido pelas circunstâncias como ainda molhou por inteiro as costas e a nuca da minha companheira, a ponto de causar-lhe um começo de resfriado. Da quase plenitude do gozo passei, sem transição, ao cúmulo da angústia física e moral, para grande pasmo e surpresa da tresnoitada mulher, que a essa altura já se preparava para cobrar-me o preço da viagem. A custo conseguiu ela safar as nádegas de sob o meu corpo convulso e desgovernado, e quando dei por mim ela já havia fugido do quarto e deixado a porta escancarada, o que fez aumentar ainda mais minha situação de pânico e de vergonha. Esse insucesso carnal, regado a pranto de desespero, foi que me fez procurar hoje mesmo a tal sumidade médica de várias nações — charlatão internacional, fichado em hospitais e universidades do Velho e do Novo Mundo — o qual, como ficou dito, não contente de imiscuir-se na vida íntima dos meus avós e bisavós, ainda teve o desplante de querer examinar-me o sexo como se o meu mal fora destempero de urina e não de pranto.
Aos que só choram quando há motivos para chorar, e não costumam bancar carpideiras sobre a nudez ardente da bem amacia ou mesmo de uma simples rameira (quando toda a nossa atenção deve estar concentrada num único ponto, como o arqueiro no instante de visar o centro do alvo) eu formulo aqui um apelo ao mesmo tempo simples e desesperado, como o formularia ao próprio Deus caso ele existisse e estivesse presente, já que não tenho um só amigo que me possa valer nesta angústia infinita. Dai-me, eu vos peço, a receita de não chorar à toa sobre as mazelas e as incongruências deste mundo tão cotidiano, e de ver com olhos de cego, como vós fazeis, as aparentes belezas deste vasto cemitério sobre o qual caminhamos e que, de tão repleto de mortos, já está até cheirando mal, apesar da primavera que há no céu e nas flores. Dai-me a fórmula de sabedoria que me permita, aos quarenta anos — idade da minha imagem no espelho — contentar-me com o efêmero espetáculo do dinheiro e da mulher nua, e com os fugidios prazeres que nos podem advir do corpo ou do espírito, QUANDO sobre nossas cabeças paira, cada vez mais densa, a gigantesca sombra da morte, com a sua certeza que não admite sofismas nem tergiversações, por mais que a queiramos ignorar em nossos instantes de sono ou mesmo de vigília. Se a morte para a qual caminhamos a passos rápidos — e que ainda hoje pode colher-nos de surpresa, como nos colhe um raio em meio à tempestade — se essa morte é, cada dia mais, de minuto a minuto, a grande verdade contra a qual não prevalece nenhuma filosofia do homem nem tampouco seu incomensurável orgulho, dizei-me como e sobretudo por que devo eu ignorá-la com um sorriso nos lábios, como se este mundo fora o paraíso terrestre e não a terra deserta e sem caminho de que fala a Bíblia, livro que em tudo mais não merece grande crédito. Eu que sempre levei uma vida aventurosa, modéstia à parte, rindo-me de tudo e de todos sem pedir licença ao papa nem ao chefe de polícia, sempre fui no íntimo um pobre espantalho dentro da noite, mais triste do que o palhaço mais triste, com o riso da caveira à guisa de gargalhada. É que o meu riso, que a muitos parecia louco, era em verdade e apenas um pranto disfarçado, como só agora me dou conta de todo, em face desta lacrimorreia aparentemente absurda em que me afogo. Em suma: nada mais vos peço senão que afugenteis a morte da minha vista, já que não podeis afugentá-la das minhas costas, e que me deis o segredo desse filtro que vos faz tão tranquilos e ao mesmo tempo tão vivos, mesmo com o cheiro de cadáver já exalando de vossas narinas. Dai-me, enfim, a arte de mentir a mim mesmo, eu que não sei mentir nem aos outros, e fazei com que eu pise sobre os mortos como se pisasse apenas sobre esqueletos antediluvianos, que não me dissessem respeito e muito menos desrespeito, dada a minha alta qualidade de ser imortal e indiferente aos abismos.
Campos de Carvalho, "A Lua Vem da Ásia"
quarta-feira, agosto 28
Cantiga quase de roda
Na roda do mundo
lá vai o menino.
O mundo é tão grande
e os homens tão sós.
De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras.)
Mãos dadas aos homens,
lá vai o menino,
na roda da vida
rodando e cantando.
A seu lado, há muitos
que cantam também:
cantigas de escárnio
e de maldizer.
Mas como ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância
– então ele canta
cantigas de roda
e às vezes inventa
algumas – mas sempre
de amor ou de amigo.
Cantigas que tornem
a vida mais doce
e mais brando o peso
das sombras que o tempo
derrama, derrama
na fronte dos homens.
Na roda do mundo
lá vai o menino,
rodando e cantando
seu canto de infância.
Pois sabe que os homens
embora se façam
de graves, de fortes,
no fundo carecem
de claras cantigas
– senão ficam ocos,
senão endoidecem.
Então ele segue
cantando de bosques,
de rosas e de anjos,
de anéis e cirandas,
de nuvens e pássaros,
de sanchas senhoras
cobertas de prata,
de barcas celestes
caídas no mar.
Na roda do mundo,
mãos dadas aos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
cantigas que façam
a vida mais doce
cantigas que façam
os homens mais crianças.
EPITÁFIO
O canto desse menino
talvez tenha sido em vão.
Mas ele fez o que pôde.
Fez sobretudo o que sempre
lhe mandava o coração.
Thiago de Mello, "Faz escuro mas eu canto"
lá vai o menino.
O mundo é tão grande
e os homens tão sós.
De pena, o menino
começa a cantar.
(Cantigas afastam
as coisas escuras.)
Mãos dadas aos homens,
lá vai o menino,
na roda da vida
rodando e cantando.
A seu lado, há muitos
que cantam também:
cantigas de escárnio
e de maldizer.
Mas como ele sabe
que os homens, embora
se façam de fortes,
se façam de grandes,
no fundo carecem
de aurora e de infância
– então ele canta
cantigas de roda
e às vezes inventa
algumas – mas sempre
de amor ou de amigo.
Cantigas que tornem
a vida mais doce
e mais brando o peso
das sombras que o tempo
derrama, derrama
na fronte dos homens.
Na roda do mundo
lá vai o menino,
rodando e cantando
seu canto de infância.
Pois sabe que os homens
embora se façam
de graves, de fortes,
no fundo carecem
de claras cantigas
– senão ficam ocos,
senão endoidecem.
Então ele segue
cantando de bosques,
de rosas e de anjos,
de anéis e cirandas,
de nuvens e pássaros,
de sanchas senhoras
cobertas de prata,
de barcas celestes
caídas no mar.
Na roda do mundo,
mãos dadas aos homens,
lá vai o menino
rodando e cantando
cantigas que façam
a vida mais doce
cantigas que façam
os homens mais crianças.
EPITÁFIO
O canto desse menino
talvez tenha sido em vão.
Mas ele fez o que pôde.
Fez sobretudo o que sempre
lhe mandava o coração.
Thiago de Mello, "Faz escuro mas eu canto"
Eu e Jimmy
Lembro-me ainda de Jimmy, aquele rapaz de cabelos castanhos e despenteados, encobrindo um crânio alongado de rebelde nato.
Lembro-me de Jimmy, de seus cabelos e de suas ideias. Jimmy achava que nada existe de tão bom quanto a natureza. Que se duas pessoas se gostam nada há a fazer senão amarem-se, simplesmente. Que tudo o mais, nos homens, que se afasta dessa simplicidade de princípio de mundo, é cabotinismo, e espuma. Se essas ideias partissem de outra cabeça, eu não toleraria ouvi-las sequer. Mas havia a desculpa do crânio de Jimmy e havia sobretudo a desculpa de seus dentes claros e de seu sorriso limpo de animal contente.
Jimmy andava de cabeça erguida, o nariz espetado no ar, e, ao atravessar a rua, pegava-me pelo braço com uma intimidade muito simples. Eu me perturbava. Mas a prova de que eu já estava nesse tempo imbuída das ideias de Jimmy e sobretudo do seu sorriso claro, é que eu me repreendia essa perturbação. Pensava, descontente, que evoluíra demais, afastando-me do tipo padrão – animal. Dizia-me que é fútil corar por causa de um braço; nem mesmo de um braço de uma roupa. Mas esses pensamentos eram difusos e se apresentavam com a incoerência que transmito agora ao papel. Na verdade, eu apenas procurava uma desculpa para gostar de Jimmy. E para seguir suas ideias. Aos poucos estava me adaptando à sua cabeça alongada. Que podia eu fazer, afinal?
Por isso e por Jimmy, eu também me tornei aos poucos natural.
E foi assim que um belo dia, depois de uma noite quente de verão, em que dormi tanto como nesse momento em que escrevo (são os antecedentes do crime), nesse belo dia Jimmy me deu um beijo. Eu previra essa situação, com todas as variantes. Desapontou-me, é verdade. Ora, “isso” depois de tanta filosofia e delongas! Mas gostei. E daí em diante dormi descansada; não precisava mais sonhar.
Encontrava-me com Jimmy na esquina. Muito simplesmente dava-lhe o braço. E mais tarde, muito simplesmente acariciava-lhe os cabelos despenteados. Eu sentia que Jimmy estava maravilhado com o meu aproveitamento. Suas lições haviam produzido um efeito raro e a aluna era aplicada. Foi um tempo feliz.
Depois fizemos exames. Aqui começa a história propriamente dita.
Um dos examinadores tinha olhos suaves e profundos. As mãos muito bonitas; morenas.
(Jimmy era claro como um bebê.) Quando me falava, sua voz tornava-se misteriosamente áspera e morna. E eu fazia um esforço enorme para não fechar os olhos e não morrer de alegria.
Não houve lutas íntimas. Dormi (sic) apertava-me com o examinador à tarde, às seis horas. E encantava-me sua voz, falando-me de ideias absolutamente não jimiescas. Tudo isso envolvido de crepúsculo, no jardim silencioso e frio.
Era eu então absolutamente feliz. Quanto a Jimmy continuava despenteado e com o mesmo sorriso que me esquecera de esclarecer a Jimmy a nova situação.
Um dia, perguntou-me por que andava eu tão diferente. Respondi-lhe risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos pela boca do meu examinador. Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que Jimmy não entendeu nada, porque Hegel era um ponto do fim do programa e nós nunca chegamos até lá. Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D..., e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinador não me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana. Inútil a digressão.
Jimmy olhava-me estupidamente e só soube perguntar:
– E eu?
Irritei-me.
Não sei, respondi, chutando uma pedrinha imaginária e pensando: ora, arranje-se! Nós somos simples animais.
Jimmy estava nervoso. Disse-me uma série de desaforos, que eu não passava de uma mulher, inconstante e borboleta como todas. E ameaçou-me: eu ainda me arrependerei dessa mudança súbita. Em vão tentei explicar-me com as suas teorias: eu gostava de alguém e era natural, apenas; que se eu fosse “evoluída” e “pensante” começaria por tornar tudo complicado, aparecendo com conflitos morais, com bobagens da civilização, coisas que os animais desconhecem em absoluto. Falei com uma eloquência adorável, tudo devido à influência dialética do examinador (aí está a ideia de mamãe: a mulher deve seguir... etc.). Jimmy, pálido e desfeito, mandou-me para o diabo a mim e as minhas teorias. Gritei-lhe nervosa, que não eram minhas essas maluquices e que, na verdade, só podiam ter nascido de uma cabeça despenteada e comprida. Ele gritou-me, mais alto ainda, que eu não entendera nada do que então me explicara com tanta bondade: que tudo comigo era tempo perdido. Era demais. Exigi uma nova explicação. Ele mandou-me de novo ao inferno.
Saí confusa. Em comemoração, tive uma forte dor de cabeça. De uns restinhos de civilização, surgiu-me o remorso.
Minha avó, uma velhinha amável e lúcida, a quem contei o caso, inclinou a cabecinha branca e explicou-me que os homens costumam construir teorias para si e outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de uma pausa e um suspiro, esquecem-nas exatamente no momento de agir... Retruquei a vovó que eu, que aplicava com êxito a lei das contradições de Hegel, não entendera palavra do que ela disse. Ela riu e explicou-me bem-humorada:
Minha querida, os homens são uns animais.
Voltávamos, assim, ao ponto de partida? Não achei que esse fosse um argumento, mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não há mesmo nada a fazer senão viver. Só continuava a me intrigar a mudança de Jimmy. A teoria é tão boa!
Clarice Lispector, "Todos os contos"
Lembro-me de Jimmy, de seus cabelos e de suas ideias. Jimmy achava que nada existe de tão bom quanto a natureza. Que se duas pessoas se gostam nada há a fazer senão amarem-se, simplesmente. Que tudo o mais, nos homens, que se afasta dessa simplicidade de princípio de mundo, é cabotinismo, e espuma. Se essas ideias partissem de outra cabeça, eu não toleraria ouvi-las sequer. Mas havia a desculpa do crânio de Jimmy e havia sobretudo a desculpa de seus dentes claros e de seu sorriso limpo de animal contente.
Jimmy andava de cabeça erguida, o nariz espetado no ar, e, ao atravessar a rua, pegava-me pelo braço com uma intimidade muito simples. Eu me perturbava. Mas a prova de que eu já estava nesse tempo imbuída das ideias de Jimmy e sobretudo do seu sorriso claro, é que eu me repreendia essa perturbação. Pensava, descontente, que evoluíra demais, afastando-me do tipo padrão – animal. Dizia-me que é fútil corar por causa de um braço; nem mesmo de um braço de uma roupa. Mas esses pensamentos eram difusos e se apresentavam com a incoerência que transmito agora ao papel. Na verdade, eu apenas procurava uma desculpa para gostar de Jimmy. E para seguir suas ideias. Aos poucos estava me adaptando à sua cabeça alongada. Que podia eu fazer, afinal?
Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres. Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos próprios também, sobre... liberdade e igualdade das mulheres. O mal foi a coincidência de matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose e borda e canta no piano e faz bolinhos aos sábados, tudo pontualmente e com alegria. Tem ideias próprias, ainda, mas se resumem numa: a mulher deve sempre seguir o marido, como a parte acessória segue a essencial (a comparação é minha, resultado das aulas do Curso de Direito).
Por isso e por Jimmy, eu também me tornei aos poucos natural.
E foi assim que um belo dia, depois de uma noite quente de verão, em que dormi tanto como nesse momento em que escrevo (são os antecedentes do crime), nesse belo dia Jimmy me deu um beijo. Eu previra essa situação, com todas as variantes. Desapontou-me, é verdade. Ora, “isso” depois de tanta filosofia e delongas! Mas gostei. E daí em diante dormi descansada; não precisava mais sonhar.
Encontrava-me com Jimmy na esquina. Muito simplesmente dava-lhe o braço. E mais tarde, muito simplesmente acariciava-lhe os cabelos despenteados. Eu sentia que Jimmy estava maravilhado com o meu aproveitamento. Suas lições haviam produzido um efeito raro e a aluna era aplicada. Foi um tempo feliz.
Depois fizemos exames. Aqui começa a história propriamente dita.
Um dos examinadores tinha olhos suaves e profundos. As mãos muito bonitas; morenas.
(Jimmy era claro como um bebê.) Quando me falava, sua voz tornava-se misteriosamente áspera e morna. E eu fazia um esforço enorme para não fechar os olhos e não morrer de alegria.
Não houve lutas íntimas. Dormi (sic) apertava-me com o examinador à tarde, às seis horas. E encantava-me sua voz, falando-me de ideias absolutamente não jimiescas. Tudo isso envolvido de crepúsculo, no jardim silencioso e frio.
Era eu então absolutamente feliz. Quanto a Jimmy continuava despenteado e com o mesmo sorriso que me esquecera de esclarecer a Jimmy a nova situação.
Um dia, perguntou-me por que andava eu tão diferente. Respondi-lhe risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos pela boca do meu examinador. Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que Jimmy não entendeu nada, porque Hegel era um ponto do fim do programa e nós nunca chegamos até lá. Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D..., e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinador não me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana. Inútil a digressão.
Jimmy olhava-me estupidamente e só soube perguntar:
– E eu?
Irritei-me.
Não sei, respondi, chutando uma pedrinha imaginária e pensando: ora, arranje-se! Nós somos simples animais.
Jimmy estava nervoso. Disse-me uma série de desaforos, que eu não passava de uma mulher, inconstante e borboleta como todas. E ameaçou-me: eu ainda me arrependerei dessa mudança súbita. Em vão tentei explicar-me com as suas teorias: eu gostava de alguém e era natural, apenas; que se eu fosse “evoluída” e “pensante” começaria por tornar tudo complicado, aparecendo com conflitos morais, com bobagens da civilização, coisas que os animais desconhecem em absoluto. Falei com uma eloquência adorável, tudo devido à influência dialética do examinador (aí está a ideia de mamãe: a mulher deve seguir... etc.). Jimmy, pálido e desfeito, mandou-me para o diabo a mim e as minhas teorias. Gritei-lhe nervosa, que não eram minhas essas maluquices e que, na verdade, só podiam ter nascido de uma cabeça despenteada e comprida. Ele gritou-me, mais alto ainda, que eu não entendera nada do que então me explicara com tanta bondade: que tudo comigo era tempo perdido. Era demais. Exigi uma nova explicação. Ele mandou-me de novo ao inferno.
Saí confusa. Em comemoração, tive uma forte dor de cabeça. De uns restinhos de civilização, surgiu-me o remorso.
Minha avó, uma velhinha amável e lúcida, a quem contei o caso, inclinou a cabecinha branca e explicou-me que os homens costumam construir teorias para si e outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de uma pausa e um suspiro, esquecem-nas exatamente no momento de agir... Retruquei a vovó que eu, que aplicava com êxito a lei das contradições de Hegel, não entendera palavra do que ela disse. Ela riu e explicou-me bem-humorada:
Minha querida, os homens são uns animais.
Voltávamos, assim, ao ponto de partida? Não achei que esse fosse um argumento, mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não há mesmo nada a fazer senão viver. Só continuava a me intrigar a mudança de Jimmy. A teoria é tão boa!
Clarice Lispector, "Todos os contos"
É da tua mão que eu preciso agora
É da tua mão que eu preciso agora. Há momentos, sabes, que me sinto tão cansado, todos estes dias cheios de palavras que me fogem. Então penso em ti: Joana. Penso: vou contar-te uma coisa. Há pouco tempo morreu a filha de um amigo meu, homem generoso e bom, melhor do que alguma vez fui. Um cemitério é um lugar horrível e a dor dele doía-me. Depois de tudo acabar voltei para o automóvel. Eram muitos passos nas veredas a voltarem para os automóveis. O caixãozinho branco. Aquelas árvores que tu conheces de quando a gente há dois anos. Despedi-me das pessoas um pouco ao acaso, sem sentir os dedos que apertava: têm tantos dedos as pessoas. Nem me lembro já porquê abri a mala do carro. Estavam lá dentro coisas tuas de Espanha: batas, papéis, as inutilidades confusas que estás sempre a juntar. Peguei numa das tuas batas, abracei-a. E desatei num choro de menino, de cabeça inclinada para a mala do carro na esperança de que não me vissem. Depois lá enxuguei o nariz à manga nunca perdi o hábito de enxugar o nariz à manga engoli-me a mim mesmo e vim-me embora. Sempre que me sento no teu carro lembro-me de ti. Também me lembro quando não me sento no carro mas sempre que me sento no carro lembro-me de ti. De ti e de Malanje onde começaste a ser, e as mangueiras tremem-me no interior do sangue.Mas é da tua mão que eu preciso agora. Há momentos em que me farto de ser homem: tudo tão pesado, tão estranho, tão difícil. Eu vou tendo paciência e no entanto, às vezes as coisas magoam, há ideias que entram na gente como espinhos. Não se podem tirar com uma pinça: ficam lá. É então que a cara principia a estragar-se e a gente diz e envelhece. Necessito de muito pouca coisa hoje em dia: uns livros, o meu trabalho de escrever, amigos que se estreitam com o tempo, alguns deixados para trás, não sei onde. A minha avó dizia que fui a pessoa por quem chorava mais. Nunca acreditei. Era autoritária, mimada, sedutora: tratava-me tão bem! Jogávamos a ver qual de nós dois conquistava o outro: andávamos mais ou menos empatados (sabes como detesto perder)e nisto ela morreu. Recordo-me de sair de sua casa e vir à cervejaria comer. Ainda não tinha tempo de sentir-lhe a ausência. Pedi o jornal desportivo ao empregado. Ao voltar para cima achei-a vestida sobre a cama.Agora é Novembro, tenho frio, ando às voltas com um romance de que não estou a gostar. Nunca estou a gostar do que escrevo, acho aquele em que trabalho o mais difícil, acho que as palavras me derrotam. Frases puxadas como pedras de um poço que não vejo. Banalidades que me indignam por estarem tão longe do que quero. Capítulos que me fogem, o plano da história dinamitado pelos caprichos da minha mão, que não faz o que pretendo: escapa-se sempre, inventa, tenho de apanhá-la a meio de um período inverosímil. Talvez seja por isso que preciso da tua. Ou não por isso: não bebo e no entanto há alturas em que me sinto tão só que é quase o mesmo. E sem essa solidão não me é possível escrever. O meu amigo a quem morreu a filha chama-se José Francisco. Quando sorri os cantos da boca parecem levantar voo. Faz-me bem. Gostava de sorrir assim. Experimentei ao espelho e não é igual. Quer dizer, a boca curvou-se mas os olhos ficaram fixos, duros. Deixei de sorrir e enchi a cara de espuma da barba, até ser apenas nariz e olhos. Então sorri outra vez e os olhos acharam graça e mudaram. Os meus olhos sérios olhavam para os meus olhos divertidos. Pisquei o esquerdo e o espelho piscou o direito. Lavei a cara, apaguei a luz, saí. Por um segundo veio-me a sensação de caminhar em Malanje. Aquele cheiro da terra, demorado, opaco, violento. E pronto, é tarde. Em chegando ao fim da página acabou-se. Ponho a tampa na caneta, os cotovelos na mesa e fico a observar a parede. Nem vou reler isto, mando tal e qual. Prefiro observar a parede, deixar-me impregnar devagarinho pela essência das coisas. Esta cadeira, aquele móvel, uma manchinha de cinza no chão, as minhas mãos geladas de frio a acabarem esta crónica. Se calhar amanhã telefono-te. Ou regresso ao romance na teimosia dos cães. Penso: nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Comecei-o no princípio de Outubro, falta muito. Alinho os papéis, ponho tudo em ordem para a escrita. Nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Leio a última frase, continuo. Só por um bocadinho de nada, antes que continue, importas-te de tirar as batas do carro? Importas-te de me dar a mão?
António Lobo Antunes, "Segundo Livro de Crónicas"
terça-feira, agosto 27
Ela tem alma de pomba
Que a televisão prejudica o movimento da pracinha Jerônimo Monteiro, em todos os Cachoeiros de Itapemirim, não há dúvida. Sete horas da noite era hora de uma pessoa acabar de jantar, dar uma volta pela praça para depois pegar uma sessão das 8 no cinema. Agora todo mundo fica em casa venda uma novela, depois outra novela.
O futebol também pode ser prejudicado. Quem vai ver um jogo do Estrela do Norte F. C. , se pode ficar tomando cervejinha é assistindo a um bom Fla-Flu, ou a um Inter x Cruzeiro, ou qualquer coisa assim?
Que a televisão prejudica a leitura de livros, também não há dúvida. Eu mesmo confesso que lia mais quando não tinha televisão. Radio, a gente pode ouvir baixinho, enquanto está lendo um livro. Televisão e incompatível com livro – e com tudo mais nesta vida, inclusive a boa conversa, até o making love.
Só não acredito que televisão seja máquina de fazer doido. Até acho que é o contrário, ou quase o contrário: é máquina de amansar doido, distrair doido, acalmar, fazer doido dormir.
O futebol também pode ser prejudicado. Quem vai ver um jogo do Estrela do Norte F. C. , se pode ficar tomando cervejinha é assistindo a um bom Fla-Flu, ou a um Inter x Cruzeiro, ou qualquer coisa assim?
Que a televisão prejudica a leitura de livros, também não há dúvida. Eu mesmo confesso que lia mais quando não tinha televisão. Radio, a gente pode ouvir baixinho, enquanto está lendo um livro. Televisão e incompatível com livro – e com tudo mais nesta vida, inclusive a boa conversa, até o making love.
Também acho que a televisão paralisa a criança numa cadeira mais do que o desejável. O menina fica ali parado, vendo e ouvindo, em vez de sair por aí, chutar uma bola, brincar de bandido, inventar uma besteira qualquer para fazer.
Só não acredito que televisão seja máquina de fazer doido. Até acho que é o contrário, ou quase o contrário: é máquina de amansar doido, distrair doido, acalmar, fazer doido dormir.
Quando você cita um inconveniente da televisão, uma boa observação que se pode fazer é que não existe nenhum aparelho de TV, a cores ou em preto e branco, sem um botão para desligar. Mas quando um pai de família o utiliza, isso pode produzir o ódio e rancor no peito das crianças e até de outros adultos.
Quando o apartamento é pequeno, a família é grande, e a TV é só uma – então sua tendência é para ser um fator de rixas intestinas.
– Agora você se agarra nessa porcaria de futebol…
– Mas, francamente, você não tem vergonha de acompanhar essa besteira de novela?
– Não sou eu não, são as crianças! – Crianças, para a cama!
Mas muito lhe será perdoado, à TV, pela sua ajuda aos doentes, aos velhos, aos solitários. Na grande cidade – num apartamentinho de quarto e sala, num casebre de subúrbio, numa orgulhosa mansão – a criatura solitária tem nela a grande distração, a grande consolo, a grande companhia. Ela instala dentro de sua toca humilde o tumulto e o frêmito de mil vidas, a emoção, suspende, a fascinação dos dramas do mundo.
A corujinha da madrugada não é apenas a companheira de gente importante, e a grande amiga da pessoa desimportante e só, da mulher velha, do homem doente… É a amiga dos entrevados, dos abandonados, dos que a vida esqueceu para um canto… ou dos que estão parados, paralisados, no estupor de alguma desgraça… ou que no meio da noite sofrem o assalto de dúvidas e melancolias… mãe que espera filho, mulher que espera marido… homem arrasado que espera que a noite passe, que a noite passe, que a noite passe…
Quando o apartamento é pequeno, a família é grande, e a TV é só uma – então sua tendência é para ser um fator de rixas intestinas.
– Agora você se agarra nessa porcaria de futebol…
– Mas, francamente, você não tem vergonha de acompanhar essa besteira de novela?
– Não sou eu não, são as crianças! – Crianças, para a cama!
Mas muito lhe será perdoado, à TV, pela sua ajuda aos doentes, aos velhos, aos solitários. Na grande cidade – num apartamentinho de quarto e sala, num casebre de subúrbio, numa orgulhosa mansão – a criatura solitária tem nela a grande distração, a grande consolo, a grande companhia. Ela instala dentro de sua toca humilde o tumulto e o frêmito de mil vidas, a emoção, suspende, a fascinação dos dramas do mundo.
A corujinha da madrugada não é apenas a companheira de gente importante, e a grande amiga da pessoa desimportante e só, da mulher velha, do homem doente… É a amiga dos entrevados, dos abandonados, dos que a vida esqueceu para um canto… ou dos que estão parados, paralisados, no estupor de alguma desgraça… ou que no meio da noite sofrem o assalto de dúvidas e melancolias… mãe que espera filho, mulher que espera marido… homem arrasado que espera que a noite passe, que a noite passe, que a noite passe…
Rubem Braga
Devia morrer-se de outra maneira
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio”.
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
“Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…
José Gomes Ferreira, "Antologia Poética"
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio”.
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
“Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…
José Gomes Ferreira, "Antologia Poética"
As águas
E lembrando disso penso no quanto estávamos ao sabor das marés, por causa da conjunção das chuvas, com a lua cheia e a preamar, era fatal nossa rua transbordar e a água ameaçar entrar em nosso apartamento térreo; a água barrenta, escura, da rua sem calçamento misturada às águas negras do canal logo adiante, subindo, atraídas pela força da lua acima de nós, para além das nuvens carregadas. E eu ali no mar límpido, sabia que ele era parte do sistema de coisas que deixava minha mãe aperreada. Tudo era uma água só, entranhada no subsolo, por baixo do calçamento, minando na rua Pampulha. A água, a grande narradora da cidade onde vivíamos.
Toinho Castro, “O cheiro dos sargaços”
Toinho Castro, “O cheiro dos sargaços”
Profeta urbano
Era a imagem de uma ruína do que antes devia ter sido um monumento de homem e portava as clássicas barbas do profeta.
– Pois é – disse, limpando a boca com um gesto que acabou por levar seu dedo em riste em direção ao Corcovado [e no ímpeto quase cai de tão bêbado que estava]. – Pois é. Fica lá ele, coitado, o dia inteiro de braços abertos abençoando a cidade... [seu olhar dardejou em torno], abençoando a cidade que nem liga mais para ele. Eu, Mansueto, filho de Anacleto, digo isso porque sei. Eu, Mansueto, sei que aquele homem lá, que por sinal não é homem não é nada, é Jesus Cristo, filho de Maria, rei dos reis, tábua da salvação, esperança do mundo, conforto dos aflitos, pai dos pecadores [a partir daí sua voz embargou-se e ele começou a choramingar] – eu, Mansueto, sei que aquele homem lá está sozinho, está sozinho no alto daquela montanha também chamada Corcovado. Eu, Mansueto, sei que toda santa noite aquele homem lá derrama as suas santas lágrimas de pena por esta pobre cidade mergulhada no crime e no pecado...
– Porque em cada coração habita a luxúria, a maldade e a sede de ouro! Porque todos só pensam no poder e no luxo! Porque cada um só quer ter o seu rabo-de-peixe [o profeta estava um pouco atrasado no tempo diante da atual mania dos Mercedes] e o povo nem sequer tem peixe para comer... [aí os soluços embargaram-lhe a voz e ele teve de parar para enxugar os olhos com a manga do paletó em farrapos].
E então exclamou com os punhos cerrados na direção do Cristo:
– Por que, Senhor, pergunto eu, Mansueto, filho de Anacleto, por que continuas abençoando esta cidade, de vício e abandonas o pobre ao seu triste destino de comer o resto dos ricos? Por que ficas de braços abertos feito um pateta em vez de lançar os vossos exércitos conta o fariseu – feito o seu Guimarães lá do armazém que só fia se apalpar a mulher dos outros. Eu sei porque eu vi. Português descarado! Ainda hei de fazer o mesmo com a tua mulher, ouviu! que embora seja uma santa senhora há de pagar pelo pecador!
– Você aí! Que sabes da maldade humana? Repara só nele lá em cima, de braços abertos, abençoando esta cidade toda esburacada, chorando de noite de tristeza porque seus filhos o abandonaram para cair na farra com mulheres que não valem nem para jogar no lixo, em todas essas Copacabanas [seu braço girou violentamente em torno] de mulatinhas todas pintadas como se fossem umas [censura], que aliás são! São umas [censura] de [censura] que saem remexendo a [censura] e atacando os homens como se fossem tigres. E para quê? Dizei-me para quê? Não sabe? Ah! [apontando-me] ele não sabe... Bem se vê que é um mocinho [obrigado, profeta!] rico que não sabe de nada senão cavar o ouro e ir gastar com as mulheres de todas essas Copacabanas! Mas eu te peço, Senhor: lança os vossos exércitos contra o fariseu e deixa dessa pose que não te adianta nada, porque esse negócio de ficar de braço aberto não resolve, a gente quer ver mesmo é diminuir o preço das coisas, as pessoas vão acabar mesmo é comendo umas às outras, porque carne não tem, só a carne dessas [censura] de todas essas Copacabanas que o raio de Deus fulmine e consuma e toque fogo em toda essa [censura] que anda por aí!
Dito o quê, ele me olhou com um olhar cheio de lágrimas, que parecia vir do fundo de um caos bíblico de recordações, misérias, humilhações e ressentimentos sofridos, moveu a cabeça com um ar trêmulo de animal vencido e saiu em frente, dois passos para cá, três para lá, em meio à risota e aos comentários dos circunstantes; mas mesmo de longe sua voz me chegava como a de um Isaías imprecando:
– Mas essa sopa vai acabar! Essa sopa vai acabar.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"
– Pois é – disse, limpando a boca com um gesto que acabou por levar seu dedo em riste em direção ao Corcovado [e no ímpeto quase cai de tão bêbado que estava]. – Pois é. Fica lá ele, coitado, o dia inteiro de braços abertos abençoando a cidade... [seu olhar dardejou em torno], abençoando a cidade que nem liga mais para ele. Eu, Mansueto, filho de Anacleto, digo isso porque sei. Eu, Mansueto, sei que aquele homem lá, que por sinal não é homem não é nada, é Jesus Cristo, filho de Maria, rei dos reis, tábua da salvação, esperança do mundo, conforto dos aflitos, pai dos pecadores [a partir daí sua voz embargou-se e ele começou a choramingar] – eu, Mansueto, sei que aquele homem lá está sozinho, está sozinho no alto daquela montanha também chamada Corcovado. Eu, Mansueto, sei que toda santa noite aquele homem lá derrama as suas santas lágrimas de pena por esta pobre cidade mergulhada no crime e no pecado...
Foi deste ponto em diante que eu tirei a caneta e comecei a anotar rápido o teor das lamentações do profeta urbano.
– Porque em cada coração habita a luxúria, a maldade e a sede de ouro! Porque todos só pensam no poder e no luxo! Porque cada um só quer ter o seu rabo-de-peixe [o profeta estava um pouco atrasado no tempo diante da atual mania dos Mercedes] e o povo nem sequer tem peixe para comer... [aí os soluços embargaram-lhe a voz e ele teve de parar para enxugar os olhos com a manga do paletó em farrapos].
E então exclamou com os punhos cerrados na direção do Cristo:
– Por que, Senhor, pergunto eu, Mansueto, filho de Anacleto, por que continuas abençoando esta cidade, de vício e abandonas o pobre ao seu triste destino de comer o resto dos ricos? Por que ficas de braços abertos feito um pateta em vez de lançar os vossos exércitos conta o fariseu – feito o seu Guimarães lá do armazém que só fia se apalpar a mulher dos outros. Eu sei porque eu vi. Português descarado! Ainda hei de fazer o mesmo com a tua mulher, ouviu! que embora seja uma santa senhora há de pagar pelo pecador!
Neste momento ele olhou em torno com ar de briga e dando comigo me interpelou com veemência:
– Você aí! Que sabes da maldade humana? Repara só nele lá em cima, de braços abertos, abençoando esta cidade toda esburacada, chorando de noite de tristeza porque seus filhos o abandonaram para cair na farra com mulheres que não valem nem para jogar no lixo, em todas essas Copacabanas [seu braço girou violentamente em torno] de mulatinhas todas pintadas como se fossem umas [censura], que aliás são! São umas [censura] de [censura] que saem remexendo a [censura] e atacando os homens como se fossem tigres. E para quê? Dizei-me para quê? Não sabe? Ah! [apontando-me] ele não sabe... Bem se vê que é um mocinho [obrigado, profeta!] rico que não sabe de nada senão cavar o ouro e ir gastar com as mulheres de todas essas Copacabanas! Mas eu te peço, Senhor: lança os vossos exércitos contra o fariseu e deixa dessa pose que não te adianta nada, porque esse negócio de ficar de braço aberto não resolve, a gente quer ver mesmo é diminuir o preço das coisas, as pessoas vão acabar mesmo é comendo umas às outras, porque carne não tem, só a carne dessas [censura] de todas essas Copacabanas que o raio de Deus fulmine e consuma e toque fogo em toda essa [censura] que anda por aí!
Dito o quê, ele me olhou com um olhar cheio de lágrimas, que parecia vir do fundo de um caos bíblico de recordações, misérias, humilhações e ressentimentos sofridos, moveu a cabeça com um ar trêmulo de animal vencido e saiu em frente, dois passos para cá, três para lá, em meio à risota e aos comentários dos circunstantes; mas mesmo de longe sua voz me chegava como a de um Isaías imprecando:
– Mas essa sopa vai acabar! Essa sopa vai acabar.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"
segunda-feira, agosto 26
Tornar-se pedra
Hoje o tempo não me enganou. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desfiados de nuvens. E o céu, daqui, parece fresco, parece água limpa de um açude. Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu. Um açude sem peixes, sem fundo, este céu. Nuvens, veios ténues. E o ar a arder por dentro, chamas quentes e abafadas na pele, invisíveis. Suspenso, como um homem cansado, ar. Há-de ser um instante em que não se veja um pardal, em que não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas a observar-nos. Chegará. Hei-de o distinguir no horizonte. Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro. Mais, sabia que por toda a planície se calarão as cigarras e os grilos. De encontro ao céu, as oliveiras e os sobreiros hão-de parar os ramos mais finos; num momento, hão-de tornar-se pedra.
José Luís Peixoto, "Nenhum olhar"
José Luís Peixoto, "Nenhum olhar"
Cadeira de balanço
Quando elas se acordam
do sono, se espantam
das gotas de orvalho
na orla das saias,
dos fios de relva
nos negros sapatos,
quando elas se acordam
na sala de sempre,
na velha cadeira
que a morte as embala...
E olhando o relógio
de junto à janela
onde a única hora,
que era a da sesta,
parou como gota que ia cair,
perpassa no rosto
de cada avozinha.
um susto do mundo
que está deste lado...
Que sonho sonhei
que sinto inda um gosto
de beijo apressado?
- diz uma e se espanta:
Que idade terei?
Diz outra:
- Eu corria
menina em um parque...
e como saberia
o tempo que era?
Os pensamentos delas
já não têm sentido.
A morte as embala,
as avozinhas dormem
na deserta sala
onde o relógio marca
a nenhuma hora
enquanto suas almas
vêm sonhar no tempo
o sonho vão do mundo...
e depois se acordam
na sala de sempre
na velha cadeira
em que a morte as embala...
Mário Quintana, "Poesia completa"
do sono, se espantam
das gotas de orvalho
na orla das saias,
dos fios de relva
nos negros sapatos,
quando elas se acordam
na sala de sempre,
na velha cadeira
que a morte as embala...
E olhando o relógio
de junto à janela
onde a única hora,
que era a da sesta,
parou como gota que ia cair,
perpassa no rosto
de cada avozinha.
um susto do mundo
que está deste lado...
Que sonho sonhei
que sinto inda um gosto
de beijo apressado?
- diz uma e se espanta:
Que idade terei?
Diz outra:
- Eu corria
menina em um parque...
e como saberia
o tempo que era?
Os pensamentos delas
já não têm sentido.
A morte as embala,
as avozinhas dormem
na deserta sala
onde o relógio marca
a nenhuma hora
enquanto suas almas
vêm sonhar no tempo
o sonho vão do mundo...
e depois se acordam
na sala de sempre
na velha cadeira
em que a morte as embala...
Mário Quintana, "Poesia completa"
'Nós não somos iguais e nunca seremos'
“Nós não somos iguais e nunca seremos”. Ouvi a frase da boca do Chef Nuno Diniz, numa entrevista a Joana Barrios. Diniz di-la com firmeza a propósito do episódio em que um aluno de cozinha ousou tratá-lo por Nuno em vez de “Chef”. O tom altivo, áspero, seguro, que usa para afirmar a impossibilidade de ultrapassar a diferença fez-me pensar. Nos últimos 50 anos, vivemos numa democracia baseada numa ideia de igualdade formal perante a lei, que até agora ninguém parecia disposto a pôr em causa de maneira explícita, mesmo que as diferenças materiais tenham sido sempre tão grandes, que esta “igualdade” não passou nunca de uma abstração, que serve algumas boas consciências.
Mas por que me arrepiou tanto, então, a frase de Nuno Diniz, quando sei há muito que a igualdade é mais dita que real e o fosso entre os que estão por cima e os que ficaram por baixo não para de aumentar? Talvez porque Diniz diz de peito feito e voz límpida o que ao longo da minha vida ouvi sempre (e foram muitas vezes) em surdina.
A candura com que Diniz fala de uma pessoa que é dada a outra como um objeto e impossibilitada de qualquer arbítrio sobre si mesma mostra uma naturalização da desigualdade que parece incompreensível para alguém que acredite num sistema democrático. Há aqui uma ordem natural que confere direitos e deveres à nascença: há as que nascem ‘criadas’ e os que se dispõem a criá-las e até as deixam comer à mesa.
Nuno Diniz só se engana quando diz pertencer “a um meio social que já não se usa muito”. Entende-se-lhe a nostalgia nas palavras, perante um tempo em que não seria sequer preciso explicar o que lhe parece óbvio às “pessoas com complexos”.
Mas a verdade é que o sentimento de superioridade natural que ostenta usa-se muito. Usa-se cada vez mais. Vem disfarçado de “meritocracia” (que o que não se usa tanto é a “aristocracia”). Mas essa é só mais uma forma de distinguir entre os que à nascença têm quase tudo aquilo de que precisam para vingar na vida e os que só por um acaso da sorte estatisticamente muito irrelevante lá chegarão.
Agarrados à ideia de que se se esforçarem muito, conseguirão ter sucesso, os de baixo já não se vêm como as “criadas” que são dadas às filhas casadoiras. Mas os de cima ficam libertos para se assumirem como os vencedores naturais, mesmo que as condições de partida lhes tenham dado uma vantagem praticamente insuperável.
É neste contexto que a ostentação do luxo passou a ser uma espécie de pornografia social consumida em larga escala. O luxo é um objeto de desejo para quem nunca o terá, uma afirmação grotesca de superioridade para quem o alcança. É exibido sem pudor, precisamente porque se criou a ficção de que é acessível a quem se esforce. É o “mérito” que o torna aceitável.
As vidas medem-se, mais do que nunca, pelo seu peso em ouro. Não acreditam? Há uma matemática simples de fazer. Entre 2013 e 2023, mais de 26 mil pessoas perderam a vida a tentar cruzar o Mediterrâneo. Vinham em botes precários, fugidas da guerra, da fome e da miséria. Prestamos-lhes pouca atenção e, quando o fazemos, é para as temer como invasores. Mas seguimos atentamente e com ansiedade as buscas pelas cinco pessoas que naufragaram no submarino Titan, no ano passado, e cujas fortunas somadas equivaliam a 2,6 mil milhões de dólares (mais do que o PIB de Cabo Verde). E vemos agora com detalhe as vidas dos seis milionários que naufragaram num iate de luxo ao largo da Sicília.
Nuno Diniz tem razão. “Nós não somos iguais”. Só espero que um dia possamos vir a sê-lo. E essa é a diferença que nos separa.
Mas por que me arrepiou tanto, então, a frase de Nuno Diniz, quando sei há muito que a igualdade é mais dita que real e o fosso entre os que estão por cima e os que ficaram por baixo não para de aumentar? Talvez porque Diniz diz de peito feito e voz límpida o que ao longo da minha vida ouvi sempre (e foram muitas vezes) em surdina.
Demos, então, outra vez a voz ao Chef para perceber de onde vem e como entende a diferença que lhe parece natural, incontestada e inultrapassável. “Eu pertenço a um meio social que já não se usa muito. (…) De cada vez que uma filha se casava, ia para a lua de mel logo com a criada. Portanto, havia a filha de uma das criadas da minha avó, que era despachada com a menina que casava. Isto quer dizer que eu até ter 22 ou 23 anos tive uma criada em casa, que era a Celeste. Para as pessoas com complexos, que me estejam a ouvir, ‘criada’ não é um termo depreciativo, o nome ‘criada’ é porque era criada connosco. E, portanto, era uma pessoa da família, comia connosco à mesa”, explica-nos Nuno Diniz.
A candura com que Diniz fala de uma pessoa que é dada a outra como um objeto e impossibilitada de qualquer arbítrio sobre si mesma mostra uma naturalização da desigualdade que parece incompreensível para alguém que acredite num sistema democrático. Há aqui uma ordem natural que confere direitos e deveres à nascença: há as que nascem ‘criadas’ e os que se dispõem a criá-las e até as deixam comer à mesa.
Nuno Diniz só se engana quando diz pertencer “a um meio social que já não se usa muito”. Entende-se-lhe a nostalgia nas palavras, perante um tempo em que não seria sequer preciso explicar o que lhe parece óbvio às “pessoas com complexos”.
Mas a verdade é que o sentimento de superioridade natural que ostenta usa-se muito. Usa-se cada vez mais. Vem disfarçado de “meritocracia” (que o que não se usa tanto é a “aristocracia”). Mas essa é só mais uma forma de distinguir entre os que à nascença têm quase tudo aquilo de que precisam para vingar na vida e os que só por um acaso da sorte estatisticamente muito irrelevante lá chegarão.
Agarrados à ideia de que se se esforçarem muito, conseguirão ter sucesso, os de baixo já não se vêm como as “criadas” que são dadas às filhas casadoiras. Mas os de cima ficam libertos para se assumirem como os vencedores naturais, mesmo que as condições de partida lhes tenham dado uma vantagem praticamente insuperável.
É neste contexto que a ostentação do luxo passou a ser uma espécie de pornografia social consumida em larga escala. O luxo é um objeto de desejo para quem nunca o terá, uma afirmação grotesca de superioridade para quem o alcança. É exibido sem pudor, precisamente porque se criou a ficção de que é acessível a quem se esforce. É o “mérito” que o torna aceitável.
As vidas medem-se, mais do que nunca, pelo seu peso em ouro. Não acreditam? Há uma matemática simples de fazer. Entre 2013 e 2023, mais de 26 mil pessoas perderam a vida a tentar cruzar o Mediterrâneo. Vinham em botes precários, fugidas da guerra, da fome e da miséria. Prestamos-lhes pouca atenção e, quando o fazemos, é para as temer como invasores. Mas seguimos atentamente e com ansiedade as buscas pelas cinco pessoas que naufragaram no submarino Titan, no ano passado, e cujas fortunas somadas equivaliam a 2,6 mil milhões de dólares (mais do que o PIB de Cabo Verde). E vemos agora com detalhe as vidas dos seis milionários que naufragaram num iate de luxo ao largo da Sicília.
Nuno Diniz tem razão. “Nós não somos iguais”. Só espero que um dia possamos vir a sê-lo. E essa é a diferença que nos separa.
Apaguem as luzes
Apaguem as luzes, estou com medo. Não sabia que existiam criaturas assim, vorazes, na escuridão, cegas a tudo a não ser à própria fome, ou à própria gula, sabe-se lá com que intenção nos caçam tanto assim. Melhor fazer de conta que nunca as vimos e que se as vimos isso ajudou a afastá-las, ao invés (pelo menos é o que a gente espera!) de atraí-las. Banqueiro por dinheiro é tubarão por sangue. Quantas outras coisas existem, afora dinheiro e sangue, que produzam uma tal leminguização do Homo Sapiens?
Lembrei agora a história do cego de nascença que, finalmente curado, ao atravessar as avenidas sentia-se mais seguro quando fechava os olhos, porque não registrava as motos resfolegantes, os ônibus de bote armado, os carros-esporte velozes e indiferentes. Fechava os olhos; e atravessava. Retornava ao lusco-fusco do somente áudio, onde se sentia mais senhor de si.
Melhor deixar as luzes do país bem apagadas. Eu não esperava tanto serpentário espalhado em bairros dos mais belos jardins, em gente do mais branco sorriso, em famílias que ostentam amor e solidariedade na lapela. Melhor ter desligado o P. A., ou ter abaixado a chave no quadro-de-luz, do que permitir que uma tamanha algazarra midiática revelasse o país inteiro a si mesmo, assim, de chofre, ao longo de uma ou duas décadas de pura vertigem, de voo cibernético, de strip-tease desta nação véia diante do espelho.
A Web tornou-se a tela íntima e pública dos nossos pensamentos, desde o melhor que há nos artigos ao pior que há nos comentários. Antes você tinha o cinema, aquela telona gigantesca. De repente, do lado oposto você tem cem mil telinhas, como se fosse aquelas histórias de Marc Laidlaw sobre uma parede com cem apartamentos, em dez camadas de dez. É mundo demais, realidade demais, vampirismo curitibano demais, nelsonrodriguismo demais. O “cerumano” não pode ser tão previsivelmente real assim. Apaguem já essa luz.
Eu preferiria aquelas elegias melancólicas que falam do fim do mundo como um lento e imperceptível anoitecer. Deixar a vida aos poucos, como o ficando-reto de uma onda, não com a guilhotina súbita de um interruptor.
Tive um susto danado com o que vi, obrigado por terem desligado. Bem, continuo vendo tudo à minha frente. Engraçado isso. Acho que deve ser o conhecido fenômeno da persistência retiniana, que mantém vivo, por frações de segundo, o lampejo do entrevisto. Engraçado. O lampejo ainda não sumiu. Mesmo com as luzes apagadas, consigo ver tudo. Não é como se estivesse vendo mesmo, pra valer, luz acesa olhos abertos. É um fantasma do que eu vi, mas ele é tudo que minha lembrança é capaz de ver agora.
Lembrei agora a história do cego de nascença que, finalmente curado, ao atravessar as avenidas sentia-se mais seguro quando fechava os olhos, porque não registrava as motos resfolegantes, os ônibus de bote armado, os carros-esporte velozes e indiferentes. Fechava os olhos; e atravessava. Retornava ao lusco-fusco do somente áudio, onde se sentia mais senhor de si.
Melhor deixar as luzes do país bem apagadas. Eu não esperava tanto serpentário espalhado em bairros dos mais belos jardins, em gente do mais branco sorriso, em famílias que ostentam amor e solidariedade na lapela. Melhor ter desligado o P. A., ou ter abaixado a chave no quadro-de-luz, do que permitir que uma tamanha algazarra midiática revelasse o país inteiro a si mesmo, assim, de chofre, ao longo de uma ou duas décadas de pura vertigem, de voo cibernético, de strip-tease desta nação véia diante do espelho.
A Web tornou-se a tela íntima e pública dos nossos pensamentos, desde o melhor que há nos artigos ao pior que há nos comentários. Antes você tinha o cinema, aquela telona gigantesca. De repente, do lado oposto você tem cem mil telinhas, como se fosse aquelas histórias de Marc Laidlaw sobre uma parede com cem apartamentos, em dez camadas de dez. É mundo demais, realidade demais, vampirismo curitibano demais, nelsonrodriguismo demais. O “cerumano” não pode ser tão previsivelmente real assim. Apaguem já essa luz.
Eu preferiria aquelas elegias melancólicas que falam do fim do mundo como um lento e imperceptível anoitecer. Deixar a vida aos poucos, como o ficando-reto de uma onda, não com a guilhotina súbita de um interruptor.
Tive um susto danado com o que vi, obrigado por terem desligado. Bem, continuo vendo tudo à minha frente. Engraçado isso. Acho que deve ser o conhecido fenômeno da persistência retiniana, que mantém vivo, por frações de segundo, o lampejo do entrevisto. Engraçado. O lampejo ainda não sumiu. Mesmo com as luzes apagadas, consigo ver tudo. Não é como se estivesse vendo mesmo, pra valer, luz acesa olhos abertos. É um fantasma do que eu vi, mas ele é tudo que minha lembrança é capaz de ver agora.
domingo, agosto 25
Ítaca
Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.
Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.
Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.
Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas.
Konstantinos Kaváfis
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.
Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.
Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.
Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas.
Konstantinos Kaváfis
A cidade era a minha casa, o meu quintal, o mundo ao alcance dos pés
Se o quintal do poeta Manoel de Barros era maior do que o mundo, o meu quintal era a cidade, minha casa era a cidade, meu mundo era a cidade. Saía porta afora e me sentia no meu lugar. Atravessava a ponte trêmula de madeira, pegava o ônibus lotado e renascia: estava a caminho da escola, do comércio, das vendedoras de unha de caranguejo, de tapioca servida em folha de bananeira, de tacacá, caruru e vatapá.
Era como se eu morasse na Ceilândia e estudasse no Plano Piloto. E podia ir a pé, meia hora de caminhada. Aos 10 anos, eu só precisava do corpo para dominar a cidade. De ônibus ou de pés, percorria alegremente a distância entre a periferia mais pobre e o centro soberano de Belém. Igrejas, colégios, casarios, praças, palácios, Ver-o-Peso, baía do Guajará, comércio, arquiteturas várias, palacetes, galerias de mangueiras, tudo ao alcance de um corpo de metro e meio.
Era tudo demasiado do lado de fora e eu já existia em demasia do lado de dentro. Sem saber, lançava meus meteoros internos, corpo de menina, na escala urbana de Belém, corpo de cidade. Da janela do ônibus, ia acompanhando, fascinada, o caos vibrante da periferia, das casas e cortiços colados, da vala de siris enlameados, dos urubus dando rasantes de bom dia, da rua estreita e sem calçada, do cheiro de esgoto, do cheiro de água do rio, da gente andando que nem formiga a caminho do formigueiro. Tudo vibrava em mormaço e eu vibrava em tudo.
Tão estreita era a rua de paralelepípedo que eu via, da janela do ônibus, o lado de dentro dos casarios coloniais estreitos e compridos das ruas seculares, perto do centro da cidade. Corredores escuros e lá no fundo a silhueta de um morador sentado à mesa do café. Via as salas de poucos e pesados móveis, tudo sempre no mesmo lugar, os quadros de santos nas paredes, as crianças abrindo a porta e saindo para escola. Casa, calçada, rua, ônibus, carro, carroça, tudo tão perto que parecia uma cidade compacta da Idade Média.
O silêncio quase sepulcral tinha ficado em casa. A rua me devolvia a festa pagã contínua de uma cidade normal, daquelas que nasceram de movimentos humanos vários e que foram se constituindo vagarosamente. Uma cidade irradiada a partir de um centro, como um formigueiro, um cupinzeiro, uma colmeia, uma floresta de humanos semoventes, diversos e misturados.
A cidade do lado de fora abria cidades dentro de mim. Pra meu tamanho de menina, era um imenso e encantador parque de diversões. Quando eu via, naquele começo dos anos 1970, os palacetes em ruínas, eu não sabia que eram palacetes nem que tinham imenso valor arquitetônico, mas eles me sideravam. Mesmo corroídos, alguns sem teto, com as janelas e portas esburacadas, ficava fascinada por eles, sem saber por quê, sem me perguntar por quê. Enamorada, ia contando quantos predinhos faltavam para eu passar quase colada no palacete que reluzia aos meus olhos mesmo em ruínas. Muito depois fui saber que era o Palacete Bolonha, hoje plenamente restaurado.
Na adolescência, mudei de quintal. Dois mil quilômetros Brasil abaixo, parei em Goiânia, um centro de onde partem avenidas radiais, cidade planejada nos anos 1930, mas vivamente enriquecida pelo acaso. Morava num bairro periférico próximo, e do mesmo modo, ia e voltava a pé ao centro da cidade.
Já adulta, vim pra Brasília. Diferente de tudo quanto o meu corpo/cidade havia conhecido. E tive de inventar dentro de mim o inaudito lugar. A nova morada reacendeu os meus desertos. O meu corpo era pequeno demais para tantas lonjuras. Eu já não tinha mais o domínio da cidade aos meus pés. E precisei construir com palavras a estranha cidade de vazios infindos.
Era como se eu morasse na Ceilândia e estudasse no Plano Piloto. E podia ir a pé, meia hora de caminhada. Aos 10 anos, eu só precisava do corpo para dominar a cidade. De ônibus ou de pés, percorria alegremente a distância entre a periferia mais pobre e o centro soberano de Belém. Igrejas, colégios, casarios, praças, palácios, Ver-o-Peso, baía do Guajará, comércio, arquiteturas várias, palacetes, galerias de mangueiras, tudo ao alcance de um corpo de metro e meio.
Era tudo demasiado do lado de fora e eu já existia em demasia do lado de dentro. Sem saber, lançava meus meteoros internos, corpo de menina, na escala urbana de Belém, corpo de cidade. Da janela do ônibus, ia acompanhando, fascinada, o caos vibrante da periferia, das casas e cortiços colados, da vala de siris enlameados, dos urubus dando rasantes de bom dia, da rua estreita e sem calçada, do cheiro de esgoto, do cheiro de água do rio, da gente andando que nem formiga a caminho do formigueiro. Tudo vibrava em mormaço e eu vibrava em tudo.
Tão estreita era a rua de paralelepípedo que eu via, da janela do ônibus, o lado de dentro dos casarios coloniais estreitos e compridos das ruas seculares, perto do centro da cidade. Corredores escuros e lá no fundo a silhueta de um morador sentado à mesa do café. Via as salas de poucos e pesados móveis, tudo sempre no mesmo lugar, os quadros de santos nas paredes, as crianças abrindo a porta e saindo para escola. Casa, calçada, rua, ônibus, carro, carroça, tudo tão perto que parecia uma cidade compacta da Idade Média.
O silêncio quase sepulcral tinha ficado em casa. A rua me devolvia a festa pagã contínua de uma cidade normal, daquelas que nasceram de movimentos humanos vários e que foram se constituindo vagarosamente. Uma cidade irradiada a partir de um centro, como um formigueiro, um cupinzeiro, uma colmeia, uma floresta de humanos semoventes, diversos e misturados.
A cidade do lado de fora abria cidades dentro de mim. Pra meu tamanho de menina, era um imenso e encantador parque de diversões. Quando eu via, naquele começo dos anos 1970, os palacetes em ruínas, eu não sabia que eram palacetes nem que tinham imenso valor arquitetônico, mas eles me sideravam. Mesmo corroídos, alguns sem teto, com as janelas e portas esburacadas, ficava fascinada por eles, sem saber por quê, sem me perguntar por quê. Enamorada, ia contando quantos predinhos faltavam para eu passar quase colada no palacete que reluzia aos meus olhos mesmo em ruínas. Muito depois fui saber que era o Palacete Bolonha, hoje plenamente restaurado.
Na adolescência, mudei de quintal. Dois mil quilômetros Brasil abaixo, parei em Goiânia, um centro de onde partem avenidas radiais, cidade planejada nos anos 1930, mas vivamente enriquecida pelo acaso. Morava num bairro periférico próximo, e do mesmo modo, ia e voltava a pé ao centro da cidade.
Já adulta, vim pra Brasília. Diferente de tudo quanto o meu corpo/cidade havia conhecido. E tive de inventar dentro de mim o inaudito lugar. A nova morada reacendeu os meus desertos. O meu corpo era pequeno demais para tantas lonjuras. Eu já não tinha mais o domínio da cidade aos meus pés. E precisei construir com palavras a estranha cidade de vazios infindos.
Crônica da cidade de Havana
Os pais tinham fugido para o Norte. Naquele tempo, a revolução e ele eram recém-nascidos. Um quarto de século depois, Nelson Valdes viajou de Los Angeles a Havana, para conhecer seu país.
A cada meio-dia, Nelson tomava o ônibus, a guagua 68, na porta do hotel, e ia ler livros sobre Cuba. Lendo passava as tardes na biblioteca Jose Marti, até que a noite caia.
Naquele meio-dia, a guagua 68 deu uma violenta freada num cruzamento. Houve gritos de protesto, pela tremenda sacudida, até que os passageiros viram o motivo daquilo tudo: uma mulher prodigiosa, que tinha atravessado a rua.
— Me desculpem, cavalheiros — disse o motorista da guagua 68, e desceu. Então todos os passageiros aplaudiram e lhe desejaram boa sorte.
O motorista caminhou balançando, sem pressa, e os passageiros viram como ele se aproximava da saborosa mulher que estava na esquina, encostada no muro, lambendo um sorvete. Da guagua 68 os passageiros seguiam o ir-e-vir daquela linguinha que beijava o sorvete enquanto o motorista falava sem resposta, até que de repente ela riu, e brindou-lhe um olhar. O motorista ergueu o polegar e todos os passageiros lhe dedicaram uma intensa ovação.
Mas quando o chofer entrou na sorveteria, produziu-se uma certa inquietação generalizada. E quando depois de um instante saiu com um sorvete em cada mão, espalhou-se o pânico nas massas.
Tocaram a buzina. Alguém grudou-se na buzina com alma e vida, e tocou a buzina como alarme de roubos ou sirena de incêndios; mas o motorista, surdo, continuava grudado na perigosa mulher.
Então avançou, lá dos fundos da guagua 68, uma mulher que parecia uma bala de canhão e tinha cara de mandona. Sem dizer uma palavra, sentou-se
no assento do chofer e ligou o motor. A guagua 68 continuou sua rota, parando nos pontos habituais, até que a mulher chegou no seu próprio ponto e desceu. Outro passageiro ocupou seu lugar, durante um bom trecho, de ponto em ponto, e depois outro, e outro, e assim a guagua 68 continuou ate o fim.
Nelson Valdes foi o ultimo a descer. Tinha esquecido a biblioteca.
Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"
A cada meio-dia, Nelson tomava o ônibus, a guagua 68, na porta do hotel, e ia ler livros sobre Cuba. Lendo passava as tardes na biblioteca Jose Marti, até que a noite caia.
Naquele meio-dia, a guagua 68 deu uma violenta freada num cruzamento. Houve gritos de protesto, pela tremenda sacudida, até que os passageiros viram o motivo daquilo tudo: uma mulher prodigiosa, que tinha atravessado a rua.
— Me desculpem, cavalheiros — disse o motorista da guagua 68, e desceu. Então todos os passageiros aplaudiram e lhe desejaram boa sorte.
O motorista caminhou balançando, sem pressa, e os passageiros viram como ele se aproximava da saborosa mulher que estava na esquina, encostada no muro, lambendo um sorvete. Da guagua 68 os passageiros seguiam o ir-e-vir daquela linguinha que beijava o sorvete enquanto o motorista falava sem resposta, até que de repente ela riu, e brindou-lhe um olhar. O motorista ergueu o polegar e todos os passageiros lhe dedicaram uma intensa ovação.
Mas quando o chofer entrou na sorveteria, produziu-se uma certa inquietação generalizada. E quando depois de um instante saiu com um sorvete em cada mão, espalhou-se o pânico nas massas.
Tocaram a buzina. Alguém grudou-se na buzina com alma e vida, e tocou a buzina como alarme de roubos ou sirena de incêndios; mas o motorista, surdo, continuava grudado na perigosa mulher.
Então avançou, lá dos fundos da guagua 68, uma mulher que parecia uma bala de canhão e tinha cara de mandona. Sem dizer uma palavra, sentou-se
no assento do chofer e ligou o motor. A guagua 68 continuou sua rota, parando nos pontos habituais, até que a mulher chegou no seu próprio ponto e desceu. Outro passageiro ocupou seu lugar, durante um bom trecho, de ponto em ponto, e depois outro, e outro, e assim a guagua 68 continuou ate o fim.
Nelson Valdes foi o ultimo a descer. Tinha esquecido a biblioteca.
Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"
sexta-feira, agosto 23
A velhice é um vento
A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.
Fernando Echevarría
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.
Fernando Echevarría
Como flores para uma amiga
Tenho alguns amigos, poucos, mas todos muito diferentes uns dos outros. A variedade de personalidade deles me encanta e me enriquece. Várias qualidades, porém, todos têm em comum: lealdade e franqueza, por exemplo. E de quase todos já recebi compreensão, irmandade, perdão.
Mas e eu? O que dou a eles? Não sei, e sinto-me incapaz de calcular. Embora imagine que alguma coisa eu certamente lhes tenha dado em troca; e se imagino isso é por saber que amizade é um intercâmbio. Acho, porém, que sem sentir andei falhando com uma das amigas. Pois ela me disse ao telefone: “Você já me deu muito e no entanto eu tenho um pedido para fazer.” E, bastante sem jeito, como uma menina, perguntou se eu não poderia escrever algumas linhas para ela, só para ela, como lembrança minha, e que nem sequer mostraria a alguém. O que me surpreendeu foi o tom embaraçado: o mesmo que algumas pessoas muito jovens usam para me pedir que eu autografe um livro. Nossa intimidade prescindia desse tom. Imediatamente depois de ter falado, ela se arrependeu com muita sinceridade e com voz aflita quis retirar o pedido. Mas eu respondi que era inútil: o pedido já tinha sido ouvido e eu estava alegre em poder lhe dar alguma coisa. Ela se despediu com o ar de criança que errou. O que escrever para você, Rosa? A ajuda que você, como amiga, sempre me deu nunca foi em público.
Quando precisei de você sempre recebi palavras, presença, consolo, amizade – e tudo de graça, tudo dado só para ser dado. Eu deveria escrever algumas linhas para você em particular? No entanto fiquei tão encantada com o que você tem de criança, com esse tom de pedir autógrafo que os tímidos às vezes tomam, você que tinha direito de pedir sem nenhuma timidez. Não me leve a mal se, em vez de lhe dar particularmente as linhas, eu as dê em público: não faz mal, é tão natural que você queira uma lembrança minha. Assim, Rosa, como se eu lhe mandasse flores, dou a você estas linhas, e são só para você. Pena que não sejam bonitas como flores. Mas a intenção era, a amizade é.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
A cidadezinha
Era uma vez uma cidadezinha, dessas muito antigas. Pequena, mal tinha umas cinco ruas meio tortas e desencontradas. As casas, nessas ruas, eram quase todas baixinhas. No meio delas uns dois sobrados, o casarão da escola e o outro casarão muito feio, com janelas gradeadas, onde ficava a cadeia.
Mas a graça daquela cidadezinha era a igreja, que a gente até poderia chamar de igrejinha. Ficava no alto do morro, toda branca, de portas azuis, parecia leve, muito linda. Talvez por causa da igrejinha no morro, a cidadezinha ganhou o nome de Morro Lindo. A igrejinha é que era linda, mas o morro ficou com a fama. E não era dessas igrejas importantes, paredes de pedra, com as torres apontando para o céu. Tinha as paredes muito simples, era quadradinha, com uma torre também quadrada. E bem debaixo do telhado da torre, ficava o sino.
Mas a graça daquela cidadezinha era a igreja, que a gente até poderia chamar de igrejinha. Ficava no alto do morro, toda branca, de portas azuis, parecia leve, muito linda. Talvez por causa da igrejinha no morro, a cidadezinha ganhou o nome de Morro Lindo. A igrejinha é que era linda, mas o morro ficou com a fama. E não era dessas igrejas importantes, paredes de pedra, com as torres apontando para o céu. Tinha as paredes muito simples, era quadradinha, com uma torre também quadrada. E bem debaixo do telhado da torre, ficava o sino.
Raquel de Queiroz
terça-feira, agosto 20
Despedida
E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.
Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?
Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Rubem Braga, "A Traição das Elegantes"
Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.
E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?
Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.
Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.
A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.
Rubem Braga, "A Traição das Elegantes"
pois eles tinham coisas para dizer
os canários estavam lá, e o limoeiro
e a mulher velha com verrugas;
e eu estava lá, uma criança
e eu tocava as teclas do piano
enquanto eles conversavam –mas não tão alto
pois tinham coisas para dizer
todos os três;
e eu os espiava a cobrirem os canários à noite
com sacos:
“assim eles conseguem dormir, querido.”
eu toquei o piano bem baixo
uma nota por vez,
os canários sob seus sacos,
e havia pimenteiras,
pimenteiras roçando o telhado feito chuva
e pendendo de fora da janela
como chuva verde,
e eles conversavam, os três
sentados em um semicírculo na noite quente,
e as teclas eram pretas e brancas
e respondiam a meus dedos
como a magia secreta
de um mundo adulto à espera;
e agora eles se foram, todos os três
e eu estou velho:
pés de piratas pisotearam
os assoalhos bem varridos
da minha alma,
e os canários não cantam mais.
Charles Bukowski, "As pessoas parecem flores finalmente"
e a mulher velha com verrugas;
e eu estava lá, uma criança
e eu tocava as teclas do piano
enquanto eles conversavam –mas não tão alto
pois tinham coisas para dizer
todos os três;
e eu os espiava a cobrirem os canários à noite
com sacos:
“assim eles conseguem dormir, querido.”
eu toquei o piano bem baixo
uma nota por vez,
os canários sob seus sacos,
e havia pimenteiras,
pimenteiras roçando o telhado feito chuva
e pendendo de fora da janela
como chuva verde,
e eles conversavam, os três
sentados em um semicírculo na noite quente,
e as teclas eram pretas e brancas
e respondiam a meus dedos
como a magia secreta
de um mundo adulto à espera;
e agora eles se foram, todos os três
e eu estou velho:
pés de piratas pisotearam
os assoalhos bem varridos
da minha alma,
e os canários não cantam mais.
Charles Bukowski, "As pessoas parecem flores finalmente"
Á noite, habitua-se
A gente habitua-se à noite, tanto quanto os pássaros acabam por habituar-se a viver nas gaiolas suspensas das empenas. Se acontece de alguém erradamente os soltar, conhecem apenas a tristeza de umas asas sem préstimo. Perderam o sentido da orientação. Não sabem que as árvores servem para nelas pousarem. Remam no ar, contra o vento, embatem em obstáculos súbitos e inevitáveis. Desconhecem um mundo e recusam-se a aprendê-lo de novo. Cheios do tédio do infinito, permanecem atónitos e dificilmente escapam às doenças que existem só nos desertos. Se os não voltam a fechar nas gaiolas, morrem facilmente, perdidos da alegria. E já não têm idade. E nada sabem a respeito dos outros pássaros de voo largo e horizontal que, sendo livres, pousam tão devagar na alegria. Até medo lhes ganham. Afigura-se-lhes que os objectos que eles se tinham habituado a olhar à distância, por detrás da sua prisão de canas fictícias, estão agora para os devorar.
João de Melo, "A Divina Miséria de Entre Pássaro e Anjo"
O que o poeta é
Um poeta não é um político, não é um professor, não é um filósofo. De um poeta não convém esperar pronunciamentos nem verdades. Um poeta não só deve ter o direito de cometer erros, mas deve ser estimulado a cometê-los. Um poeta pode tentar mil vezes a melhor forma de definir uma estrela. Haverá maneira mais adequada de transformar uma estrela em mil e uma? Ou de encontrar enfim a definição única de estrela, aquela que há milênios se busca em nome da perfeição absoluta da beleza?
Mario Quintana era um poeta simples, um poeta completo, um poeta poeta.
De um poeta nunca se sabe o que se deve esperar. Quem arriscar vai errar. Um poeta em moldes não cabe. Um poeta pode surgir, fazer um truque e depois de fazer mais um ou dois, dar-nos boa noite e sair. Ou pode, estando em bom dia, esmerar-se na magia e em três palavras dizer tudo, simplesmente tudo que a vida tem de conteúdo: viver, viver e viver.
A técnica, o método e o trabalho são importantes na formação de um poeta. Mas um grande poeta, um poeta verdadeiramente extraordinário, sempre tem um atributo impossível de definir, algo em que os antigos viam uma intromissão dos deuses – uma visão que talvez ainda hoje possa considerar-se válida.
Os conselhos dos manuais de autoajuda deram-lhe frutos imediatos. Em três meses, presumiu-se poeta, proclamou-se grande poeta e intitulou-se poeta genial.
Uma noite, muitos anos atrás, o poeta Carlos Drummond de Andrade perdeu o bonde e a esperança. Estão aí duas palavras, já quase em desuso, que os jovens leitores talvez precisem procurar num dicionário: poeta e bonde. Já esperança acredito que saibam o que significa ou tenham ao menos uma ideia. Eu, quando jovem, julgava saber.
***
Mario Quintana era um poeta simples, um poeta completo, um poeta poeta.
***
De um poeta nunca se sabe o que se deve esperar. Quem arriscar vai errar. Um poeta em moldes não cabe. Um poeta pode surgir, fazer um truque e depois de fazer mais um ou dois, dar-nos boa noite e sair. Ou pode, estando em bom dia, esmerar-se na magia e em três palavras dizer tudo, simplesmente tudo que a vida tem de conteúdo: viver, viver e viver.
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A técnica, o método e o trabalho são importantes na formação de um poeta. Mas um grande poeta, um poeta verdadeiramente extraordinário, sempre tem um atributo impossível de definir, algo em que os antigos viam uma intromissão dos deuses – uma visão que talvez ainda hoje possa considerar-se válida.
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Os conselhos dos manuais de autoajuda deram-lhe frutos imediatos. Em três meses, presumiu-se poeta, proclamou-se grande poeta e intitulou-se poeta genial.
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Uma noite, muitos anos atrás, o poeta Carlos Drummond de Andrade perdeu o bonde e a esperança. Estão aí duas palavras, já quase em desuso, que os jovens leitores talvez precisem procurar num dicionário: poeta e bonde. Já esperança acredito que saibam o que significa ou tenham ao menos uma ideia. Eu, quando jovem, julgava saber.
domingo, agosto 18
Ideias consoladoras
Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, — um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! — Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras. Bom Padre Chagas!
Machado de Assis, "Quincas Borba"
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! — Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras. Bom Padre Chagas!
Machado de Assis, "Quincas Borba"
Como aprendi o Português
Às vezes me perguntam como aprendi o português. Respondo geralmente que não o aprendi e provavelmente nunca hei de aprendê-lo. Mas a pergunta me evoca o meu primeiro encontro com o idioma em que, por circunstâncias de todo imprevisíveis, passei a exprimir-me com naturalidade e até a pensar.
Naquela época eu ensinava latim e italiano num ginásio de Budapeste. Uma vez por semana frequentava um café onde se reuniam meus amigos linguistas. Um deles estudava o sogdiano, outro preparava um ensaio sobre os pronomes voguis, um terceiro acabara de publicar dois grossos volumes de contos tcheremissos. Só interessados em idiomas exóticos, tinham verdadeira paixão pelas línguas difíceis e desprezavam minhas modestas excursões no domínio neolatino.
— Mas, afinal, você sabe espanhol? – perguntei certo dia a um deles, perito em linguística fino-úgrica.
— Ora essa! – respondeu-me.
— Mas sabe mesmo? – insisti.
— Ainda não experimentei – replicou altivo, como se se tratasse de andar a cavalo ou de bicicleta.
Calei-me, humilhado. Realmente o espanhol não se comparava com nenhum daqueles dialetos fabulosos. De mais a mais, era falado por um número excessivo de pessoas, e os meus amigos só apreciavam idiomas extintos ou, quando muito, falados por meia dúzia de pescadores analfabetos.
Assim, nem tive coragem de relatar-lhes que principiara a aprender o português – tanto mais que essa língua me parecia, de início, fácil demais: um desses começos de namoro em que tudo corre bem e nada faz prever as atrapalhações subsequentes.
O livrinho chegou-me às nove da manhã num dia das férias de Natal. Às dez, já eu tinha descoberto o único dicionário português existente nas livrarias de Budapeste, o de Luísa Ey, com tradução alemã. Atirei-me então às poesias com sôfrega curiosidade. Às três da tarde, o soneto “Sonho oriental”, de Antero de Quental, estava traduzido em versos húngaros; às cinco, aceito por uma revista, que o publicaria pouco depois.
De todos os escritores húngaros que eu conhecia, Desidério Kosztolányi era o único que se aventurara a abordar o estudo do português. Certa vez falou-me nesta língua, que lhe parecia alegre e doce como um idioma de passarinhos. A mim, sob seu aspecto escrito, dava-me antes a impressão de um latim falado por crianças ou velhos, de qualquer maneira gente que não tivesse dentes. Se os tivesse, como haveria perdido tantas consoantes? E olhava espantado para palavras como lua, dor, pessoa, veia, procurando apanhar o que nelas restava das palavras latinas, cheias e sonoras.
Era aliás justamente a pronúncia que me causava algum medo.
As nasais, tão numerosas, arrepiavam-me, tanto mais que a gramática, arranjada não sei onde, as cercava do maior mistério. É impossível, diziam Gaspey, Otto e Sauer, explicar a pronúncia de tais sons; a única maneira de aprendê-la era pedir a um natural do país que os pronunciasse grande número de vezes. Mas como ia eu arranjar em Budapeste um natural de Portugal? E entrei a meditar sobre enigmas fonéticos, como, p. ex., os diversos valores do x, que em húngaro nem existe e mesmo nas outras línguas não passa de uma letrinha à toa, ao passo que em português se encarnava de quatro maneiras diferentes.
Lembro-me ainda de algumas reações minhas ante os fenômenos do novo idioma. Foi com certa impaciência que acolhi ilogismos que ela me oferecia, totalmente esquecido dos que engolia sem protestos, a cada instante, na minha própria língua. Não me conformava, em particular, com o gênero feminino da palavra criança. Nem queria admitir que nomes tão franceses como chapéu ou paletó pudessem ser incorporados ao português sem mais nem menos. Mas reconhecia com alvoroço palavras cuidadosamente guardadas da velha estirpe latina e que outros idiomas românticos tinham malbaratado: lar e ônus vinham familiares, embelezados pela longa tradição. Vozes em que reencontrava vestígios da formação latina, como bebedouro e nascedouro, e mesmo horrendo e nefando, sorriam-me. Os vocábulos de origem árabe se apresentavam solenes, muito mais presos à origem do que realmente são; parecia-me até impossível que um alfaiate cortasse paletós e calças pelo modelo inglês, em vez de só fazer albornozes.
Não somente o vocabulário: fenômenos sintáticos também me provocaram reações sentimentais. A descoberta do infinitivo pessoal foi uma surpresa e abalou-me bastante o orgulho patriótico, pois julgava-o riqueza exclusiva do húngaro. Afeiçoei-me logo às formas mesoclíticas dos verbos: falar-te-ei, lembrar-nos-íamos apresentavam-me como que em corte anatômico palavras já irreparavelmente fundidas no francês ou no italiano, e faziam supor dotes de análise e síntese em todos os que as empregavam. Admirei também a sábia economia que se manifestava em expressões compostas de dois advérbios, como demorada e pacientemente, só imagináveis numa língua que teimasse em não se afastar de suas raízes etimológicas.
Aos poucos, sem ainda saber ler em voz alta, ia adivinhando no português uma melodia nova e diferente, e continuava familiarizando-me com o volumezinho das 100 poesias. Traduzi “Os cinco sentidos”, de Almeida Garrett, a romança da “Nau Catarineta”, e um punhado de quadras, das quais a começada por “O anel que tu me deste” ainda hoje me parece um milagre de simplicidade patética.
O problema consistia em arranjar outros livros. De Estrasburgo consegui um exemplar de Os Lusíadas, na Biblioteca Românica. Graças a uma boa tradução húngara e as reminiscências de Virgílio e de Tasso, pude tê-los sem grande dificuldade. Mas ainda não tinha conseguido um texto contemporâneo, um documento de português vivo.
Foi quando um dos livreiros, alertado por mim, desensebou um volume roto e sujo, de um autor português moderno – Samuel Ribeiro, se bem me lembro. Aí a coisa ficou ruim, pois logo na primeira página apareceram vinte palavras não registradas por Luísa Ey. Era uma história rústica, provavelmente meio regional, e o autor parecia divertir-se em chamar os bichos e as plantas pelos seus lindos mas incompreensíveis nomes alentejanos ou minhotos. Alguém, ao saber do meu embaraço, me apresentou a um funcionário do Consulado do Brasil a quem mostrei a página rebelde. Examinou-a com atenção e declarou-me que ou aquilo não era português, ou então no Brasil se falava outra língua. Em compensação, pronunciou para mim várias nasais, que procurei imitar sem muito êxito.
Deixei de lado o livro de Samuel Ribeiro e pus-me a ler poetas brasileiros.
Meu primeiro livro brasileiro foi uma Antologia de poetas paulistas, arranjada por intermédio de uma livraria húngara de São Paulo, cujo endereço obtivera por acaso. Lembro-me ainda desse volumezinho, de apresentação péssima, muito mal-organizado (e que depois nunca mais consegui encontrar aqui no Brasil).
Em seguida “adivinhei” e verti mais alguns poemas do livro. Salvo uma única exceção, eram todos, como mais tarde verifiquei com espanto, de autores que no Rio de Janeiro ninguém conhecia. Um acaso fez cair uma dessas traduções nas mãos do então cônsul do Brasil em Budapeste, que me chamou, me deu um volume de Bilac, outro de Vicente de Carvalho e três números antigos do Correio da Manhã.
A este jornal mandei, com breve carta, um recorte da “primeira poesia brasileira vertida para o húngaro”. Nunca recebi resposta a essa carta, mas um dia, com grande surpresa minha, chegou-me um envelope volumoso coberto de selos exóticos e cheio dos poemas, ainda inéditos, de um jovem poeta carioca, o qual, depois de ter lido no Correio um tópico a respeito de minha esquisita mania, me julgara a pessoa mais idônea para emitir a primeira opinião acerca de suas composições clandestinas.
Essa mensagem foi seguida de outras, escritas por outros leitores do jornal, todos poetas. Daí a pouco recebia regularmente farta correspondência do Brasil: cartas com versos datilografados ou recortados de jornais, revistas, livros. Estes me chegavam sem nenhum sistema, mandados por algumas repartições, por amigos e desconhecidos. Havia entre eles uns valiosos, outros regulares e alguns fracos. Mas faltava-me o fio condutor para me orientar naquela multidão de nomes novos e estabelecer uma escala certa de valores.
De certos poetas, tradicionalistas na expressão e na forma, não sabia se eram de 1850 ou de hoje. Ao mesmo tempo, tomava por originalíssimos alguns poetas de 15 anos (de quem recebia os inéditos), por lhes desconhecer os modelos. Assim, quando afinal obtive um volume de Jorge de Lima, a obra deste grande poeta não me deu mais a surpresa feliz de uma descoberta, pois já conhecera vários de seus discípulos.
Ao lado dessas incertezas, havia as da língua, pois ainda continuava com o dicionariozinho da sra. Ey, e um português-francês, não muito melhor, de Simões da Fonseca, ambos feitos na Europa, e que por isso ignoravam totalmente os brasileirismos. Aí tinha de recorrer de novo ao sistema arriscado das conjecturas.
Nem todas eram fáceis. No “Acalanto do seringueiro”, de Mário de Andrade, o uirapuru só podia ser pássaro. Mas quanto tempo não levei para atinar que o cabra resistente do mesmo poema não designava bicho, mas homem.
Noutros casos, a falta de noção equivalente no meio centro-europeu tornava a tradução quase impossível. Tive de dar tratos à bola para fabricar um termo composto de três palavras (kaucsukfacsapoló) para verter o próprio nome do seringueiro. Não me atrevi a empregá-lo senão depois de experimentá-lo em vários poetas amigos e verificar-lhes a reação favorável.
O que, porém, me atrapalhava sobretudo eram as palavras mais corriqueiras, mais simples. Os sábios glotologistas do meu café, embora com relutância, tiveram de concordar comigo quando lhes mostrei que uma das palavras brasileiras mais difíceis de traduzir e encaixar num verso húngaro era dezembro.
A publicação em jornais e revistas de algumas dessas traduções de poesias brasileiras motivou episódios curiosos. Numa das minhas aulas de latim, por exemplo, um aluno me pediu, no meio da expectativa zombeteira de seus colegas, que lhe explicasse um estranho poema lido por ele na véspera e pôs-se a recitar “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Embora não gostasse de interromper as minhas aulas, dessa vez não resisti à tentação e citei outros versos do poeta. Falei da iconoclastia necessária da poesia moderna, da salutar reação ao “poético” estereotipado, do valor profundo das sensações primitivas e virgens; mostrei como as exigências do lirismo e da lógica são diferentes; insisti sobre o poder emocional do elemento grotesco; disse da importância da colaboração do leitor com o poeta. A explicação transformara-se, nessa altura, em animada conversa, e por fim meus alunos concordaram comigo em que cada época tinha a sua expressão literária, diversa das anteriores. Chegados a esse resultado, pudemos voltar à leitura de Horácio. Já então os meus discípulos leram com interesse muito maior a ode em que o poeta romano, considerado até então por muitos deles um versificador de lugares-comuns, se desculpava da ousadia revolucionária com que introduzira na literatura latina formas e expressões “nunca antes divulgadas”.
O aparecimento das traduções num volume intitulado Mensagem do Brasil foi acolhido pela crítica com o interesse que o momento permitia. (Estávamos em agosto de 1939.) Pela primeira vez na Europa Central liam-se versos brasileiros e se podia entrever a existência no Brasil, até então só conhecido como produtor de café, de uma civilização digna de estudo e mesmo de admiração. O crítico Jorge Bálint – que mais tarde os nazistas haviam de assassinar – deu a seu artigo este título: “O Brasil chegou-se para mais perto”.
Foi essa, realmente, a minha impressão durante três dias. No quarto dia, os tanques alemães cruzaram a fronteira da Polônia. Uma cortina de fumaça passou a esconder o Brasil, a poesia, a alegria de viver.
Naquela época eu ensinava latim e italiano num ginásio de Budapeste. Uma vez por semana frequentava um café onde se reuniam meus amigos linguistas. Um deles estudava o sogdiano, outro preparava um ensaio sobre os pronomes voguis, um terceiro acabara de publicar dois grossos volumes de contos tcheremissos. Só interessados em idiomas exóticos, tinham verdadeira paixão pelas línguas difíceis e desprezavam minhas modestas excursões no domínio neolatino.
— Mas, afinal, você sabe espanhol? – perguntei certo dia a um deles, perito em linguística fino-úgrica.
— Ora essa! – respondeu-me.
— Mas sabe mesmo? – insisti.
— Ainda não experimentei – replicou altivo, como se se tratasse de andar a cavalo ou de bicicleta.
Calei-me, humilhado. Realmente o espanhol não se comparava com nenhum daqueles dialetos fabulosos. De mais a mais, era falado por um número excessivo de pessoas, e os meus amigos só apreciavam idiomas extintos ou, quando muito, falados por meia dúzia de pescadores analfabetos.
Assim, nem tive coragem de relatar-lhes que principiara a aprender o português – tanto mais que essa língua me parecia, de início, fácil demais: um desses começos de namoro em que tudo corre bem e nada faz prever as atrapalhações subsequentes.
Lembro-me ainda do dia em que o primeiro livro português me veio ter às mãos. Foi a antologiazinha As cem melhores poesias líricas da Língua Portuguesa, de Carolina Michaëlis. Possuíra outras antologias da mesma coleção: a francesa, a italiana, a espanhola. Inferi que devia haver uma portuguesa também, e mandei-a vir da Livraria Perche, de Paris.
O livrinho chegou-me às nove da manhã num dia das férias de Natal. Às dez, já eu tinha descoberto o único dicionário português existente nas livrarias de Budapeste, o de Luísa Ey, com tradução alemã. Atirei-me então às poesias com sôfrega curiosidade. Às três da tarde, o soneto “Sonho oriental”, de Antero de Quental, estava traduzido em versos húngaros; às cinco, aceito por uma revista, que o publicaria pouco depois.
De todos os escritores húngaros que eu conhecia, Desidério Kosztolányi era o único que se aventurara a abordar o estudo do português. Certa vez falou-me nesta língua, que lhe parecia alegre e doce como um idioma de passarinhos. A mim, sob seu aspecto escrito, dava-me antes a impressão de um latim falado por crianças ou velhos, de qualquer maneira gente que não tivesse dentes. Se os tivesse, como haveria perdido tantas consoantes? E olhava espantado para palavras como lua, dor, pessoa, veia, procurando apanhar o que nelas restava das palavras latinas, cheias e sonoras.
Era aliás justamente a pronúncia que me causava algum medo.
As nasais, tão numerosas, arrepiavam-me, tanto mais que a gramática, arranjada não sei onde, as cercava do maior mistério. É impossível, diziam Gaspey, Otto e Sauer, explicar a pronúncia de tais sons; a única maneira de aprendê-la era pedir a um natural do país que os pronunciasse grande número de vezes. Mas como ia eu arranjar em Budapeste um natural de Portugal? E entrei a meditar sobre enigmas fonéticos, como, p. ex., os diversos valores do x, que em húngaro nem existe e mesmo nas outras línguas não passa de uma letrinha à toa, ao passo que em português se encarnava de quatro maneiras diferentes.
Lembro-me ainda de algumas reações minhas ante os fenômenos do novo idioma. Foi com certa impaciência que acolhi ilogismos que ela me oferecia, totalmente esquecido dos que engolia sem protestos, a cada instante, na minha própria língua. Não me conformava, em particular, com o gênero feminino da palavra criança. Nem queria admitir que nomes tão franceses como chapéu ou paletó pudessem ser incorporados ao português sem mais nem menos. Mas reconhecia com alvoroço palavras cuidadosamente guardadas da velha estirpe latina e que outros idiomas românticos tinham malbaratado: lar e ônus vinham familiares, embelezados pela longa tradição. Vozes em que reencontrava vestígios da formação latina, como bebedouro e nascedouro, e mesmo horrendo e nefando, sorriam-me. Os vocábulos de origem árabe se apresentavam solenes, muito mais presos à origem do que realmente são; parecia-me até impossível que um alfaiate cortasse paletós e calças pelo modelo inglês, em vez de só fazer albornozes.
Não somente o vocabulário: fenômenos sintáticos também me provocaram reações sentimentais. A descoberta do infinitivo pessoal foi uma surpresa e abalou-me bastante o orgulho patriótico, pois julgava-o riqueza exclusiva do húngaro. Afeiçoei-me logo às formas mesoclíticas dos verbos: falar-te-ei, lembrar-nos-íamos apresentavam-me como que em corte anatômico palavras já irreparavelmente fundidas no francês ou no italiano, e faziam supor dotes de análise e síntese em todos os que as empregavam. Admirei também a sábia economia que se manifestava em expressões compostas de dois advérbios, como demorada e pacientemente, só imagináveis numa língua que teimasse em não se afastar de suas raízes etimológicas.
Aos poucos, sem ainda saber ler em voz alta, ia adivinhando no português uma melodia nova e diferente, e continuava familiarizando-me com o volumezinho das 100 poesias. Traduzi “Os cinco sentidos”, de Almeida Garrett, a romança da “Nau Catarineta”, e um punhado de quadras, das quais a começada por “O anel que tu me deste” ainda hoje me parece um milagre de simplicidade patética.
O problema consistia em arranjar outros livros. De Estrasburgo consegui um exemplar de Os Lusíadas, na Biblioteca Românica. Graças a uma boa tradução húngara e as reminiscências de Virgílio e de Tasso, pude tê-los sem grande dificuldade. Mas ainda não tinha conseguido um texto contemporâneo, um documento de português vivo.
Foi quando um dos livreiros, alertado por mim, desensebou um volume roto e sujo, de um autor português moderno – Samuel Ribeiro, se bem me lembro. Aí a coisa ficou ruim, pois logo na primeira página apareceram vinte palavras não registradas por Luísa Ey. Era uma história rústica, provavelmente meio regional, e o autor parecia divertir-se em chamar os bichos e as plantas pelos seus lindos mas incompreensíveis nomes alentejanos ou minhotos. Alguém, ao saber do meu embaraço, me apresentou a um funcionário do Consulado do Brasil a quem mostrei a página rebelde. Examinou-a com atenção e declarou-me que ou aquilo não era português, ou então no Brasil se falava outra língua. Em compensação, pronunciou para mim várias nasais, que procurei imitar sem muito êxito.
Deixei de lado o livro de Samuel Ribeiro e pus-me a ler poetas brasileiros.
Meu primeiro livro brasileiro foi uma Antologia de poetas paulistas, arranjada por intermédio de uma livraria húngara de São Paulo, cujo endereço obtivera por acaso. Lembro-me ainda desse volumezinho, de apresentação péssima, muito mal-organizado (e que depois nunca mais consegui encontrar aqui no Brasil).
Continha os retratos horrorosos de trinta poetas de São Paulo e uma poesia de cada um deles, geralmente um soneto. As dificuldades começavam pelo título, pois o Wörterbuch de Luísa Ey, naturalmente, não continha a palavra paulista.
Se não cheguei a entender a maioria dos poemas, adivinhei o sentido de alguns e acabei traduzindo um poemeto de Correia Júnior, que publiquei numa revista. Ao reler a minha versão, alguns anos mais tarde, já aqui no Brasil, descobri humilhado um enorme contrassenso. O poeta falava da rede na qual descansava a aguardar os sonhos; pois eu, que nunca tinha visto semelhante objeto, julguei tratar-se de uma imagem poética e pus no texto húngaro “a rede dos sonhos tecida pela imaginação”.
Se não cheguei a entender a maioria dos poemas, adivinhei o sentido de alguns e acabei traduzindo um poemeto de Correia Júnior, que publiquei numa revista. Ao reler a minha versão, alguns anos mais tarde, já aqui no Brasil, descobri humilhado um enorme contrassenso. O poeta falava da rede na qual descansava a aguardar os sonhos; pois eu, que nunca tinha visto semelhante objeto, julguei tratar-se de uma imagem poética e pus no texto húngaro “a rede dos sonhos tecida pela imaginação”.
Em seguida “adivinhei” e verti mais alguns poemas do livro. Salvo uma única exceção, eram todos, como mais tarde verifiquei com espanto, de autores que no Rio de Janeiro ninguém conhecia. Um acaso fez cair uma dessas traduções nas mãos do então cônsul do Brasil em Budapeste, que me chamou, me deu um volume de Bilac, outro de Vicente de Carvalho e três números antigos do Correio da Manhã.
A este jornal mandei, com breve carta, um recorte da “primeira poesia brasileira vertida para o húngaro”. Nunca recebi resposta a essa carta, mas um dia, com grande surpresa minha, chegou-me um envelope volumoso coberto de selos exóticos e cheio dos poemas, ainda inéditos, de um jovem poeta carioca, o qual, depois de ter lido no Correio um tópico a respeito de minha esquisita mania, me julgara a pessoa mais idônea para emitir a primeira opinião acerca de suas composições clandestinas.
Essa mensagem foi seguida de outras, escritas por outros leitores do jornal, todos poetas. Daí a pouco recebia regularmente farta correspondência do Brasil: cartas com versos datilografados ou recortados de jornais, revistas, livros. Estes me chegavam sem nenhum sistema, mandados por algumas repartições, por amigos e desconhecidos. Havia entre eles uns valiosos, outros regulares e alguns fracos. Mas faltava-me o fio condutor para me orientar naquela multidão de nomes novos e estabelecer uma escala certa de valores.
De certos poetas, tradicionalistas na expressão e na forma, não sabia se eram de 1850 ou de hoje. Ao mesmo tempo, tomava por originalíssimos alguns poetas de 15 anos (de quem recebia os inéditos), por lhes desconhecer os modelos. Assim, quando afinal obtive um volume de Jorge de Lima, a obra deste grande poeta não me deu mais a surpresa feliz de uma descoberta, pois já conhecera vários de seus discípulos.
Ao lado dessas incertezas, havia as da língua, pois ainda continuava com o dicionariozinho da sra. Ey, e um português-francês, não muito melhor, de Simões da Fonseca, ambos feitos na Europa, e que por isso ignoravam totalmente os brasileirismos. Aí tinha de recorrer de novo ao sistema arriscado das conjecturas.
Nem todas eram fáceis. No “Acalanto do seringueiro”, de Mário de Andrade, o uirapuru só podia ser pássaro. Mas quanto tempo não levei para atinar que o cabra resistente do mesmo poema não designava bicho, mas homem.
Noutros casos, a falta de noção equivalente no meio centro-europeu tornava a tradução quase impossível. Tive de dar tratos à bola para fabricar um termo composto de três palavras (kaucsukfacsapoló) para verter o próprio nome do seringueiro. Não me atrevi a empregá-lo senão depois de experimentá-lo em vários poetas amigos e verificar-lhes a reação favorável.
O que, porém, me atrapalhava sobretudo eram as palavras mais corriqueiras, mais simples. Os sábios glotologistas do meu café, embora com relutância, tiveram de concordar comigo quando lhes mostrei que uma das palavras brasileiras mais difíceis de traduzir e encaixar num verso húngaro era dezembro.
O nosso december, etimologicamente idêntico, mas que evocava noções de gelo, neve e miséria, não poderia sugerir a nenhum leitor húngaro a imagem de um Natal carioca, tórrido e abafado. Ou então, que significava a palavra Nordeste? Foi necessária uma longa carta de Ribeiro Couto (então cônsul na Holanda) para dar-me uma ideia aproximativa do complexo sentido geográfico, antropológico, sociológico e, sobretudo, poético, dessa denominação. Com sua compreensiva inteligência, o poeta de Província esboçou um sucinto retrato espiritual da região nordestina, da qual, à falta de outra documentação, me desenhou um mapa esquemático. Tive menos sorte com um jovem poeta esquerdista em cujos poemas encontrara inúmeras alusões aos morros cariocas. Pensando que eu não entendesse a palavra, respondeu à minha consulta com uma lista de sinônimos: colina, outeiro etc. Só depois de nova troca de cartas cheguei a entender que, contrariamente ao que se dava na minha cidade, onde os morros, cobertos de luxuosos palacetes, só abrigavam gente rica, no Rio eles eram sinônimos de favelas, isto é, “conjuntos de habitações populares toscamente construídas e desprovidas de recursos higiênicos”.
A publicação em jornais e revistas de algumas dessas traduções de poesias brasileiras motivou episódios curiosos. Numa das minhas aulas de latim, por exemplo, um aluno me pediu, no meio da expectativa zombeteira de seus colegas, que lhe explicasse um estranho poema lido por ele na véspera e pôs-se a recitar “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Embora não gostasse de interromper as minhas aulas, dessa vez não resisti à tentação e citei outros versos do poeta. Falei da iconoclastia necessária da poesia moderna, da salutar reação ao “poético” estereotipado, do valor profundo das sensações primitivas e virgens; mostrei como as exigências do lirismo e da lógica são diferentes; insisti sobre o poder emocional do elemento grotesco; disse da importância da colaboração do leitor com o poeta. A explicação transformara-se, nessa altura, em animada conversa, e por fim meus alunos concordaram comigo em que cada época tinha a sua expressão literária, diversa das anteriores. Chegados a esse resultado, pudemos voltar à leitura de Horácio. Já então os meus discípulos leram com interesse muito maior a ode em que o poeta romano, considerado até então por muitos deles um versificador de lugares-comuns, se desculpava da ousadia revolucionária com que introduzira na literatura latina formas e expressões “nunca antes divulgadas”.
O aparecimento das traduções num volume intitulado Mensagem do Brasil foi acolhido pela crítica com o interesse que o momento permitia. (Estávamos em agosto de 1939.) Pela primeira vez na Europa Central liam-se versos brasileiros e se podia entrever a existência no Brasil, até então só conhecido como produtor de café, de uma civilização digna de estudo e mesmo de admiração. O crítico Jorge Bálint – que mais tarde os nazistas haviam de assassinar – deu a seu artigo este título: “O Brasil chegou-se para mais perto”.
Foi essa, realmente, a minha impressão durante três dias. No quarto dia, os tanques alemães cruzaram a fronteira da Polônia. Uma cortina de fumaça passou a esconder o Brasil, a poesia, a alegria de viver.
Paulo Rónai, "Como aprendi o português e outras aventuras"
As cerejas
Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser. As raparigas daqui não sabem como são as cerejas, dizem que são como as pitangas. Ainda que sejam, nunca as vi com brincos de pitangas a rirem-se umas com as outras como as raparigas da metrópole fazem nas fotografias.
A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-se e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala.
Ficamos num silencio tão ceremonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto. A mãe pega na travessa da carne e serve-se com gestos contidos que costumava usar com as visitas. Quando pousa a travessa na mesa demora a mão sobre a toalha das dálias. Agora já não há ninguém para visitar-nos mas mesmo antes de isto ter começado era raro termos visitas. A minha irmã diz, ainda me lembro do dia em que aquele galo, o galo de louça que está na bancada de pedra mármore, caiu no chão e lascou a crista. Insistimos em pormenores insignificantes porque já começamos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de casa. O abião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos. No entanto o pai comprou bidões de gasolina que estão guardados no anexo. Talvez seja mesmo verdade, talvez o pai consiga matar a Pirata e queimar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé que não se vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante cinco séculos. Mesmo que o tio Zé prometesse que tomava conta da pirata não servia de nada, o pai acha que a única coisa que o tio Zé sabe fazer é desonrar a família. E é capaz de ter razão.
Dulce Maria Cardoso, "O Retorno"
A mãe insiste para que o pai se sirva da carne assada. A comida vai estragar-se, diz, este calor dá cabo de tudo, umas horas e a carne começa a esverdear, se a ponho na geleira fica seca como uma sola. A mãe fala como se hoje à noite não fôssemos apanhar o avião para a metrópole, como se amanhã pudéssemos comer as sobras da carne assada dentro do pão, no intervalo grande do liceu. Deixa-me, mulher. Ao afastar a travessa o pai derruba a cesta do pão. A mãe endireita-se e ajeita as côdeas com o mesmo cuidado com que todas as manhãs ordena os comprimidos antes de os tomar. O pai não era assim antes de isto ter começado. Isto são os tiros que se ouvem no bairro acima do nosso. E as nossas quatro malas por fechar na sala.
Ficamos num silencio tão ceremonioso que o barulho da ventoinha surge anormalmente alto. A mãe pega na travessa da carne e serve-se com gestos contidos que costumava usar com as visitas. Quando pousa a travessa na mesa demora a mão sobre a toalha das dálias. Agora já não há ninguém para visitar-nos mas mesmo antes de isto ter começado era raro termos visitas. A minha irmã diz, ainda me lembro do dia em que aquele galo, o galo de louça que está na bancada de pedra mármore, caiu no chão e lascou a crista. Insistimos em pormenores insignificantes porque já começamos a esquecer-nos. E ainda nem saímos de casa. O abião é um bocadinho antes da meia-noite mas temos de ir mais cedo. O tio Zé vai levar-nos ao aeroporto. O pai vai lá ter depois. Depois de matar a Pirata e de deitar fogo à casa e aos camiões. Não acredito que o pai mate a Pirata. Também não acredito que o pai deite fogo à casa e aos camiões. Acho que diz isso para não pensarmos que eles se ficam a rir. Eles são os pretos. No entanto o pai comprou bidões de gasolina que estão guardados no anexo. Talvez seja mesmo verdade, talvez o pai consiga matar a Pirata e queimar tudo. A Pirata podia ficar com o tio Zé que não se vai embora porque quer ajudar os pretos a formar uma nação. O pai ri-se sempre sempre que o tio Zé fala na grandiosa nação que se erguerá pela vontade de um povo oprimido durante cinco séculos. Mesmo que o tio Zé prometesse que tomava conta da pirata não servia de nada, o pai acha que a única coisa que o tio Zé sabe fazer é desonrar a família. E é capaz de ter razão.
Dulce Maria Cardoso, "O Retorno"
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