domingo, agosto 25

A cidade era a minha casa, o meu quintal, o mundo ao alcance dos pés

Se o quintal do poeta Manoel de Barros era maior do que o mundo, o meu quintal era a cidade, minha casa era a cidade, meu mundo era a cidade. Saía porta afora e me sentia no meu lugar. Atravessava a ponte trêmula de madeira, pegava o ônibus lotado e renascia: estava a caminho da escola, do comércio, das vendedoras de unha de caranguejo, de tapioca servida em folha de bananeira, de tacacá, caruru e vatapá.

Era como se eu morasse na Ceilândia e estudasse no Plano Piloto. E podia ir a pé, meia hora de caminhada. Aos 10 anos, eu só precisava do corpo para dominar a cidade. De ônibus ou de pés, percorria alegremente a distância entre a periferia mais pobre e o centro soberano de Belém. Igrejas, colégios, casarios, praças, palácios, Ver-o-Peso, baía do Guajará, comércio, arquiteturas várias, palacetes, galerias de mangueiras, tudo ao alcance de um corpo de metro e meio.

Era t­­udo demasiado do lado de fora e eu já existia em demasia do lado de dentro. Sem saber, lançava meus meteoros internos, corpo de menina, na escala urbana de Belém, corpo de cidade. Da janela do ônibus, ia acompanhando, fascinada, o caos vibrante da periferia, das casas e cortiços colados, da vala de siris enlameados, dos urubus dando rasantes de bom dia, da rua estreita e sem calçada, do cheiro de esgoto, do cheiro de água do rio, da gente andando que nem formiga a caminho do formigueiro. Tudo vibrava em mormaço e eu vibrava em tudo.

Tão estreita era a rua de paralelepípedo que eu via, da janela do ônibus, o lado de dentro dos casarios coloniais estreitos e compridos das ruas seculares, perto do centro da cidade. Corredores escuros e lá no fundo a silhueta de um morador sentado à mesa do café. Via as salas de poucos e pesados móveis, tudo sempre no mesmo lugar, os quadros de santos nas paredes, as crianças abrindo a porta e saindo para escola. Casa, calçada, rua, ônibus, carro, carroça, tudo tão perto que parecia uma cidade compacta da Idade Média.

O silêncio quase sepulcral tinha ficado em casa. A rua me devolvia a festa pagã contínua de uma cidade normal, daquelas que nasceram de movimentos humanos vários e que foram se constituindo vagarosamente. Uma cidade irradiada a partir de um centro, como um formigueiro, um cupinzeiro, uma colmeia, uma floresta de humanos semoventes, diversos e misturados.

A cidade do lado de fora abria cidades dentro de mim. Pra meu tamanho de menina, era um imenso e encantador parque de diversões. Quando eu via, naquele começo dos anos 1970, os palacetes em ruínas, eu não sabia que eram palacetes nem que tinham imenso valor arquitetônico, mas eles me sideravam. Mesmo corroídos, alguns sem teto, com as janelas e portas esburacadas, ficava fascinada por eles, sem saber por quê, sem me perguntar por quê. Enamorada, ia contando quantos predinhos faltavam para eu passar quase colada no palacete que reluzia aos meus olhos mesmo em ruínas. Muito depois fui saber que era o Palacete Bolonha, hoje plenamente restaurado.

Na adolescência, mudei de quintal. Dois mil quilômetros Brasil abaixo, parei em Goiânia, um centro de onde partem avenidas radiais, cidade planejada nos anos 1930, mas vivamente enriquecida pelo acaso. Morava num bairro periférico próximo, e do mesmo modo, ia e voltava a pé ao centro da cidade.

Já adulta, vim pra Brasília. Diferente de tudo quanto o meu corpo/cidade havia conhecido. E tive de inventar dentro de mim o inaudito lugar. A nova morada reacendeu os meus desertos. O meu corpo era pequeno demais para tantas lonjuras. Eu já não tinha mais o domínio da cidade aos meus pés. E precisei construir com palavras a estranha cidade de vazios infindos.

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