sábado, agosto 3

Asa da ema

Sem experiência de solidão, os novos presos eram barulhentos e inquietos: batiam nas grades a caneca de lata, andavam sem parar na cela, gritavam palavrões à janela. Seus brados não eram ouvidos na estrada, onde os carros erguiam nuvem de pó — o pó vermelho que ia mais tarde assentar nas mãos cruzadas de Trajano. A gente ao longe distinguia nas janelas o reflexo dos espelhos com que os prisioneiros descobriam a paisagem.

Um deles enfeitiçou-se pela mulher — não sabia se menina ou velha — que de um quintal acenara para a cadeia. O preso convenceu-se de que fora para ele. Anos depois — seria uma pessoa ou simples vestido secando no arame? — descrevia o seu romance com tal mulher.


Trajano sem bulir horas a fio, já não cocava os dedos limpando o sangue invisível. Nem subia na cama para olhar pela grade: o seu mundo da janela para dentro. Ecos da cidade distante, isolava-os de sua fonte: ouvia o sino, o apito, o zumbido, sem pensar no avião, no trem e na igreja. Debaixo da janela, os pingos no rosto, sem que pensasse: a chuva, está chovendo.

Pudera com o pior inimigo — o domingo. Vento aflitivo irrompia nos corredores: sineta de missa, a faixa de sol no chão, alegre vozeio feminino no pátio ... Todos os presos (muitos haviam ido ao barbeiro no sábado) olhavam as portas bem assim as vacas à passagem do trem. Outros dias, cubículo aberto algumas horas, podiam circular pelas galerias. Domingo, trancada a porta, satisfaziam-se nos baldes, que exalavam no fundo da cela. Moringas vazias...

Inútil rolarem a caneca na grade, sedentos, aspirando a cachaça no bafo dos guardas.

À janela o eterno imprudente com seu espelho. Os bem comportados, esses podiam receber visita e, se era mulher, depois que ela partia, procuravam o canto mais escuro. Trajano jamais recebeu visita: estirava-se no catre, sem se mexer, sem pensar em nada. Desprezava a réstia de sol que durante a manhã se oferecia a seus pés.

Alguns mastigavam bolas de papel, atiravam-nas contra o teto, ali grudadas pela saliva.

Das bolas por um fio pendiam fita vermelha e bandeirinha azul. Deitados, contemplavam as nuvens coloridas, agitadas pelo vento entre as altas grades e, no crepúsculo, farfalhantes folhas de laranjeira.

Outros guardavam migalhas para o ratão gordo que corria os cubículos — no de Trajano ele não entrava. O mais pobre dos presos, único que não se afligia com ladrão. Seus bens um pente, espelhinho redondo, medalha de cobre no pescoço. Os reclusos garatujavam na parede o bicho de duas costas, a lua, o sol, coração gotejando sangue. Na cafua de Trajano, manchas de umidade.

No seu oitavo ano, baixada ordem de alfabetização. Segundo os rumores, vingança do sargento da guarda: quem se opõe aos caprichos do carcereiro?

Desde a primeira aula, a professora reparou no moço de barbicha rala, cabelo molhado na testa e um remoinho atrás, por estar sempre deitado. Distribuía os cadernos, corrigida a lição e, antes de receber o seu, Trajano enxugava a mão na calça riscada.

Demais o calor, na sala abafada o odor sebento dos prisioneiros. O pó de giz suspenso no ar borrifava a saia preta de Gracinda. Todos a desnudavam por entre o piscar das pálpebras.

Nem um copiava a frase que ela escrevia no quadro: ASA DA EMA. Na primeira fila deu com ele e, no branco do olho, a pinta vermelha. Ao recolher os cadernos observou a mão que tremia.

Em casa, fechou a porta do quarto, antes de emendar as lições — único aluno de unhas limpas.

Como pudera deixá-las crescer sem quebrar: longas, em pontas, fantásticas meias-luas? Abrindo o caderno achou, em vez da lição e a ocupar toda a página, um desenho obsceno. O mesmo desenho no banheiro da escola a anunciar que um dos meninos se fizera homem. Não tinha poder de o destruir nem lugar seguro para escondê-lo — ou para a moça esconder-se dele.

Guardou-o entre seu corpo e o vestido. Desobedecendo ao pai, não voltou à penitenciária — exceção de Trajano, nem um preso aprendeu a ler.

A sombra do casarão arrastava-se pelo campo no fim da tarde, para atingir a estrada e, do outro) lado, a sua casa. Ao saber do pai que os prisioneiros, com o espelhinho na palma da mão, vigiavam a paisagem, surpreendeu no rosto de um aluno, dentro dai escola, a pinta vermelha no olho e, meu Deus, em qual deles? A veneziana do quarto dava para o presídio. Gracinda deixou de a abrir e despia-se no escuro. Uma noite postou-se nua diante da janela, era lua cheia para que a pudesse ver.

Trajano queixou-se de inchaço. O dentista não descobriu dente cariado e ficou de bochecha intumescida, lenço amarrado no queixo. As paredes cobertas; por imagem sórdida, repetida de alto a baixo, e nos espaços em branco a frase da cartilha: Asa da Ema.

Depois atormentado pelos bichos: a cabeça encheu-se de piolho, tiveram de a rapar.

Seu estrado fervia de percevejos. No sono o ratão mordeu - lhe o dedo grande do pé.

Provocou os tipos mais perigosos, sem que aceitassem o desafio. Agrediu o carcereiro, encerrado na solitária. Gritou até perder a voz e, quando saiu, havia roído tanto as unhas que os dedos sangravam.. Pendurado nas grades, rolava exausto ao chão. Mesmo à noite, espelho lá fora, sem nada enxergar — apenas, a um gesto convulso, o próprio rosto lívido. Nada viu, a não ser (os presos sofrem a influência da lua) a moça que se despia à janela e penteava os longos cabelos negros.

Lidava na horta, erguia a cabeça e afrontava o sol — queria ficar cego? Esfregando o cabo da colher no cimento fizera um estoque e cada noite afiava 3-ponta. Com restos de sabão modelou boneco que beijava da cabeça aos pés para enterrar-lhe um alfinete no peito. E, dormindo, sonhava com a professora nua.
Ziziava o sol em todas as vidraças, a mocinha de volta para casa. Trajano saltou o arame farpado e feriu os dedos nos cacos de vidro do muro. Diante da casa os dois se encontraram. O sargento estava almoçando. Gracinda não gritou, os cadernos espalhados pelo chão. Trajano surgiu na estrada — os pés descalços erguiam pequenas nuvens de pó. Cambaleava, cansado da fuga, limpou a boca nas costas dai mão — a mão crispada sobre o estoque. Chocou-se: contra a moça que estendeu os braços para o repelir; ou abraçar, e rolaram pelo chão.

A mãe de Gracinda veio à porta e pôs-se a gritar. Acorreu o sargento em socorro da filha, golpeada vinte e três vezes. Enquanto lhe mordia o rosto e rasgava a blusa de cambraia, beijando-a e gemendo de amor, o preso enterrava o estoque no próprio peito.

O sargento separou com dificuldade os corpos e, ainda que o moço estivesse morto, desfechou-lhe um tiro de fuzil na nuca, afundando a cara na terra vermelha. Arrastou o corpo para o quintal, atirou-o na fossa negra Gracinda enterrada em uniforme de normalista, véu branco de filo no rosto, para esconder a mancha dos beijos. O sargento não a viu no caixão (com a fita azul de filha de Maria, morreu virgem) nem acompanhou o enterro, defendendo contra os coveiros o corpo de Trajano. No casarão cinzento os presos seguiam no espelho o voo dos corvos que fechavam seus círculos. Já se infiltrava com o pó da estrada, por entre os corredores, no fundo das celas, sob a porta da solitária, a doce catinga dos mortos.

Dalton Trevisan, "Novelas nada exemplares"

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