quarta-feira, agosto 28

Eu e Jimmy

Lembro-me ainda de Jimmy, aquele rapaz de cabelos castanhos e despenteados, encobrindo um crânio alongado de rebelde nato.

Lembro-me de Jimmy, de seus cabelos e de suas ideias. Jimmy achava que nada existe de tão bom quanto a natureza. Que se duas pessoas se gostam nada há a fazer senão amarem-se, simplesmente. Que tudo o mais, nos homens, que se afasta dessa simplicidade de princípio de mundo, é cabotinismo, e espuma. Se essas ideias partissem de outra cabeça, eu não toleraria ouvi-las sequer. Mas havia a desculpa do crânio de Jimmy e havia sobretudo a desculpa de seus dentes claros e de seu sorriso limpo de animal contente.

Jimmy andava de cabeça erguida, o nariz espetado no ar, e, ao atravessar a rua, pegava-me pelo braço com uma intimidade muito simples. Eu me perturbava. Mas a prova de que eu já estava nesse tempo imbuída das ideias de Jimmy e sobretudo do seu sorriso claro, é que eu me repreendia essa perturbação. Pensava, descontente, que evoluíra demais, afastando-me do tipo padrão – animal. Dizia-me que é fútil corar por causa de um braço; nem mesmo de um braço de uma roupa. Mas esses pensamentos eram difusos e se apresentavam com a incoerência que transmito agora ao papel. Na verdade, eu apenas procurava uma desculpa para gostar de Jimmy. E para seguir suas ideias. Aos poucos estava me adaptando à sua cabeça alongada. Que podia eu fazer, afinal?


Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das ideias dos homens sobre a das mulheres. Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa, com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. Mas veio papai, muito sério e alto, com pensamentos próprios também, sobre... liberdade e igualdade das mulheres. O mal foi a coincidência de matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose e borda e canta no piano e faz bolinhos aos sábados, tudo pontualmente e com alegria. Tem ideias próprias, ainda, mas se resumem numa: a mulher deve sempre seguir o marido, como a parte acessória segue a essencial (a comparação é minha, resultado das aulas do Curso de Direito).

Por isso e por Jimmy, eu também me tornei aos poucos natural.

E foi assim que um belo dia, depois de uma noite quente de verão, em que dormi tanto como nesse momento em que escrevo (são os antecedentes do crime), nesse belo dia Jimmy me deu um beijo. Eu previra essa situação, com todas as variantes. Desapontou-me, é verdade. Ora, “isso” depois de tanta filosofia e delongas! Mas gostei. E daí em diante dormi descansada; não precisava mais sonhar.

Encontrava-me com Jimmy na esquina. Muito simplesmente dava-lhe o braço. E mais tarde, muito simplesmente acariciava-lhe os cabelos despenteados. Eu sentia que Jimmy estava maravilhado com o meu aproveitamento. Suas lições haviam produzido um efeito raro e a aluna era aplicada. Foi um tempo feliz.
Depois fizemos exames. Aqui começa a história propriamente dita.

Um dos examinadores tinha olhos suaves e profundos. As mãos muito bonitas; morenas.

(Jimmy era claro como um bebê.) Quando me falava, sua voz tornava-se misteriosamente áspera e morna. E eu fazia um esforço enorme para não fechar os olhos e não morrer de alegria.

Não houve lutas íntimas. Dormi (sic) apertava-me com o examinador à tarde, às seis horas. E encantava-me sua voz, falando-me de ideias absolutamente não jimiescas. Tudo isso envolvido de crepúsculo, no jardim silencioso e frio.

Era eu então absolutamente feliz. Quanto a Jimmy continuava despenteado e com o mesmo sorriso que me esquecera de esclarecer a Jimmy a nova situação.

Um dia, perguntou-me por que andava eu tão diferente. Respondi-lhe risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos pela boca do meu examinador. Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que Jimmy não entendeu nada, porque Hegel era um ponto do fim do programa e nós nunca chegamos até lá. Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D..., e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinador não me ouvisse), disse-lhe que, no caso, eu não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana. Inútil a digressão.

Jimmy olhava-me estupidamente e só soube perguntar:

– E eu?

Irritei-me.

Não sei, respondi, chutando uma pedrinha imaginária e pensando: ora, arranje-se! Nós somos simples animais.

Jimmy estava nervoso. Disse-me uma série de desaforos, que eu não passava de uma mulher, inconstante e borboleta como todas. E ameaçou-me: eu ainda me arrependerei dessa mudança súbita. Em vão tentei explicar-me com as suas teorias: eu gostava de alguém e era natural, apenas; que se eu fosse “evoluída” e “pensante” começaria por tornar tudo complicado, aparecendo com conflitos morais, com bobagens da civilização, coisas que os animais desconhecem em absoluto. Falei com uma eloquência adorável, tudo devido à influência dialética do examinador (aí está a ideia de mamãe: a mulher deve seguir... etc.). Jimmy, pálido e desfeito, mandou-me para o diabo a mim e as minhas teorias. Gritei-lhe nervosa, que não eram minhas essas maluquices e que, na verdade, só podiam ter nascido de uma cabeça despenteada e comprida. Ele gritou-me, mais alto ainda, que eu não entendera nada do que então me explicara com tanta bondade: que tudo comigo era tempo perdido. Era demais. Exigi uma nova explicação. Ele mandou-me de novo ao inferno.

Saí confusa. Em comemoração, tive uma forte dor de cabeça. De uns restinhos de civilização, surgiu-me o remorso.

Minha avó, uma velhinha amável e lúcida, a quem contei o caso, inclinou a cabecinha branca e explicou-me que os homens costumam construir teorias para si e outras para as mulheres. Mas, acrescentou depois de uma pausa e um suspiro, esquecem-nas exatamente no momento de agir... Retruquei a vovó que eu, que aplicava com êxito a lei das contradições de Hegel, não entendera palavra do que ela disse. Ela riu e explicou-me bem-humorada:

Minha querida, os homens são uns animais.

Voltávamos, assim, ao ponto de partida? Não achei que esse fosse um argumento, mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não há mesmo nada a fazer senão viver. Só continuava a me intrigar a mudança de Jimmy. A teoria é tão boa!
Clarice Lispector, "Todos os contos"

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