― Slowly! Let go him alone ...
Os cavalos meteram a trote e puseram-se a par. O de Roberto Clark vinha suado, com um pouco de espuma na barriga e sinal de sangue num ilhal. O de Margarida, enxuto, meteu a passo.
― Ah, não posso mais ... O tio desafiou-me e deixou-se ficar para trás! Assim não vale ...
― Largaste-te logo ... Eu bem te disse: prender e folgar ... prender e folgar ... E depois, deixaste-o fazer a curva a galope com a mão do outro lado. That’s dangerous! ...
Roberto Clark exprimia-se correntemente em português; só tinha um nada de entonação ingénua, cheia de ohs, que tanto divertia a sobrinha; às vezes hesitava um pouco, à procura de certas palavras, fazendo estalar os dedos como quem deixa fugir precisamente a que convinha. Era um rapaz alto, espadaúdo. Vestia um casaco de sport e calção encordoado, à Chantilly, um boné escocês enterrado até às sobrancelhas ruivas, debaixo das quais espreitavam dois olhinhos sem cor precisa, como que metidos n’água.
― Que bom, galopar! E depois, este não é como a Joia, que apanhou aquele passo escangalhado da charrette ...
― Quê? A égua de teu pai, o peru? ... Half-bred ... Já lhe disse que tem de vendê-la.
― Ah! Se o tio conseguisse! ...
― Com o dobro do dinheiro da Joia arranja-se um bom cavalo. Eu ponho o resto. É o meu presente de anos.
Margarida sorriu; mas mostrou-se reservada, lassou um pouco as rédeas do bridão e compôs o cabelo. Não sabia o que era fazer anos desde a última vez que os passara na Pedra da Burra, nas Vinhas, quando o avô ainda se mexia e teimava em meter-se ao Canal. Em Fevereiro havia muitos dias de mar bravo, as lanchas afocinhavam nas grandes covas de água cavadas pelo vento da Guia. Para tirar o avô das escadinhas eram duas pessoas: o Manuel Bana dentro da lancha a agarrá-lo por um braço, o cobrador nos degraus do cais, de mão estendida, e sempre aquele perigo de escorregar nos limos. Mas teimava; metia-se no vão da janela do pomar quase entalado pela mesa, estendia o baralho das paciências na coberta de tapete com a garrafa de whisky ao lado, a caixa dos charutos e dos sisos do whist aberta. Ficava ali tardes ... a ouvir a tesoura de Manuel Bana, que podava defronte.
Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
― Estás velha, hem? ...
― Velha, não; mas enfim ... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...
― Viajar ou envelhecer?
― Talvez as duas coisas ...
Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam discretamente. O verde-negro dos pastos, o verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas.
Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta ... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente ... gaivotas ... sem ninguém.
O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo.
Vitorino Nemésio, "Mau Tempo no Canal"
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